quarta-feira, 5 de agosto de 2020

Floresta no chão e fumaça no ar

O ministro do Meio Ambiente quer floresta no chão e fumaça no ar. Em plena crise de imagem do Brasil por causa do desmatamento, que gerou uma onda de alertas dos investidores contra o país, ele propõe suspender a meta de diminuição de queimada e desmatamento ilegais. O que o Brasil perde se Ricardo Salles ganhar? Riqueza natural, qualidade do ar, investidores internacionais, biodiversidade, futuro. Além de Salles, quem ganha com o desmatamento? Alguns poucos criminosos, como mostrou a revista “Veja” na edição desta semana, dando seus nomes e endereços.

A impressionante reportagem fez o ranking dos dez maiores desmatadores segundo as multas do Ibama. Imagens de satélite indicaram o antes e o depois. O campeão é Edio Nogueira, da Fazenda Cristo Rei, em Paranatinga, Mato Grosso, onde ele derrubou 24 mil hectares de mata nativa, equivalente a 22 mil campos de futebol. Ele usou aviões para jogar gigantescas quantidades de agrotóxico para matar as árvores, o que faz o fogo espalhar mais rapidamente. Edio recebeu uma multa de R$ 50 milhões, que dificilmente pagará, até porque o presidente Bolsonaro critica isso que ele chama de “indústria da multa”. A empresa de Nogueira, a Agropecuária Rio da Areia, coloca no site que fornece para a JBS, Marfrig e Minerva. A “Veja” procurou os frigoríficos, que negaram compras recentes. A Minerva disse que a última compra foi feita em 2015, a JBS admite que comprou, mas de outra empresa do mesmo grupo em Mato Grosso do Sul. A Marfrig parou de comprar deles em 2017. Seja como for, está lá no site. E como disse a revista, na reportagem de Edoardo Ghirotto e Eduardo Gonçalves, “é esse tipo de confusão que está estraçalhando a imagem do Brasil lá fora”.

O ponto é: quem ganha com o abandono da meta de reduzir o desmatamento e as queimadas ilegais? Esse empresário, que joga agrotóxico para matar as árvores antes de queimá-las, ganha. Não é o único, a revista dá a lista dos 10 maiores. No Pará, Amapá e Mato Grosso. Quem perde? O resto da sociedade brasileira.

O repórter Mateus Vargas, do “Estado de S. Paulo”, teve acesso ao documento em que Salles tenta contornar a meta de reduzir até 2023 o desmatamento e a queimada ilegais em 90%. Em troca, ele quer a aprovação do seu projeto, que definiu de Floresta+. Seria melhor chamá-lo de Floresta-, porque é proteger uma área de 390 mil hectares. O documento quer urgência na aprovação dessa ideia. Os técnicos do Ministério da Economia não gostaram. Oficialmente, o Ministério concordou com a proposta de redução da meta. A lorota que eles contam é que será para “adequar aos compromissos de zerar o desmatamento ilegal até 2030”. Ou seja, o plano plurianual pode ir mais devagar, em vez de ter a meta de reduzir a 90% em 2023 o desmatamento ilegal.

No Acordo de Paris, o Brasil propôs zerar em 2030, mas tem metas intermediárias. Em 2020, o Brasil teria que ter derrubado o desmatamento para o nível de 3 mil km2. Hoje, está em 10 mil e subindo. Mesmo se tivesse cumprindo o compromisso que firmou com outros países, destruiria uma área equivalente a duas vezes a cidade de São Paulo. O Ministério da Economia deveria pensar duas vezes antes de concordar.

Ricardo Salles também completou o trabalho de desmonte da presença de qualquer representação nos conselhos ambientais. Desta vez foi reduzida a participação de entidades civis e conselhos estaduais e municipais na comissão executiva para o controle do desmatamento ilegal e recuperação de vegetação nativa, Conaveg. Eles poderão ir, se convidados, mas sem direito a voto.

Esse é só mais um passo do programa “mais Brasília e menos Brasil” em cada conselho ambiental. Uma das decisões acabou travando o Fundo Amazônia. Salles tirou todas as ONGs, entidades científicas, empresariais e representantes dos nove estados amazônicos do conselho. Resultado: demoliu a governança.

O vice-presidente Hamilton Mourão recebe educadamente os investidores, empresários, banqueiros. Promete a todos que o governo vai melhorar o combate ao desmatamento ilegal. Com isso, ele ganha tempo e tenta reconstruir a credibilidade do governo. Quando saem propostas assim, de reduzir a meta que foi estabelecida no plano plurianual de redução do desmatamento ilegal, Mourão fica falando sozinho. Ou ele está falando só para inglês ver?

Bolsonaro percebeu que precisa dos pobres para se reeleger

Há momentos históricos que escancaram os problemas estruturais das nações, colocando-as numa situação inescapável de escolha sobre o futuro. A pandemia atual assemelha-se, neste sentido, à época da abolição. Em ambas as conjunturas o país se viu diante da necessidade de enfrentar injustiças profundas. No fim do século XIX, Joaquim Nabuco disse que, além de libertar os escravos, seria preciso acabar com a obra da escravidão, suas consequências e estrutura mais profunda. Hoje, além criar um programa de transferência de renda que atinja mais pessoas e com mais benefícios, é fundamental atacar a desigualdade em sua plenitude.

A comparação entre esses dois períodos é um exercício relevante porque os escravos foram soltos, mas não incluídos efetivamente na sociedade brasileira. Os negros continuaram sendo a parcela mais discriminada do país, mantendo-se, em geral, em situação de grande vulnerabilidade em termos de renda, moradia, escolaridade e representatividade política. Discute-se no Brasil agora como turbinar o Bolsa Família, rebatizado pelo governo de Renda Brasil. Não está ainda muito claro como esse programa funcionará, de modo que é necessário avisar que transferir renda é algo necessário, porém completamente insuficiente no combate à pobreza e (mais ainda) à desigualdade.


Claro que já foi um grande avanço a concordância do governo de repassar mais recursos aos mais pobres. Em 2011, Bolsonaro chegou a propor o fim do Bolsa Família e seu primeiro ano de mandato aumentou a fila das famílias não contempladas. O ministro Guedes também nunca foi um entusiasta desse tipo de medida. Ele acreditava basicamente que o crescimento econômico alavancado pelo mercado desregulado melhoraria a vida dos mais pobres.

O presidente e seu ministro da Economia mudaram de opinião por três razões. A primeira é que a pandemia exigiu a criação do auxílio-emergencial para aqueles que ficaram sem atividade e renda. Segundo o IBGE, essa transferência chegou a quase metade da população brasileira, um número impressionante. Já se sabe que houve várias fraudes e é provável que uma parcela favorecida, como pequenos comerciantes, só precisariam desse recurso em situações extraordinárias. Mesmo assim, o governo e a sociedade brasileira assustaram-se com o tamanho da pobreza e da desigualdade revelado pela crise sanitária.

Essa nova percepção da desigualdade fez com que diversos grupos sociais e políticos, com visões de mundo diferentes, defendessem mais firmemente a ampliação ou criação de formas de transferência de renda mais amplas. Criou-se um consenso tão forte que, mesmo que o governo não apresente nenhuma proposta, será aprovada até 2022 alguma proposta no Congresso Nacional que mudará o perfil vigente dessas políticas, seja com um perfil mais focalizado no combate à pobreza, seja com uma distribuição mais universal, transformando-se numa renda básica de cidadania. De todo modo, essa é a segunda razão que levou à mudança de opinião no núcleo governamental: se não fizerem nada, algo será aprovado, independentemente do Executivo.

Na verdade, o que mais convenceu o governo a alterar sua posição inicial foi o efeito do auxílio emergencial na popularidade de Bolsonaro. Se não fossem esses recursos, e na quantidade que foram distribuídos, a incompetência no combate à pandemia teria levado o apoio ao governo à casa dos 20%, patamar que poderia ter levado até ao processo de impeachment. O presidente percebeu que para ter os pobres ao seu lado, especialmente os das regiões mais empobrecidas do país, não vai bastar a combinação de moralismo religioso com defesa da liberdade dos mais fortes. E sem namorar esse contingente populacional, não há como pleitear a reeleição.

A mudança da posição do governo tem de ser aplaudida, pois seria muito pior se a opção fosse pelo darwinismo social puro, que era marcante no discurso inicial do ministro da Economia e da própria Presidência da República. Se o benefício aprovado tivesse sido de R$ 200, como queria o Executivo, o país teria tido uma explosão social. E a decisão de ampliar o Bolsa Família, com que nome seja, também é louvável, porque distribui recursos para quem mais precisa e diminui o abismo social brasileiro, com efeitos civilizatórios e de alavanca econômica, com o aumento do consumo.

O perigo já não está mais na continuidade do liberalismo selvagem. Bolsonaro o abandonou porque sabe que essa trilha levaria seu governo à bancarrota política. O temor agora está na possibilidade de o novo programa ser apenas um instrumento eleitoral pouco preocupado com a luta mais ampla contra a desigualdade. Uma escolha como essa seria desperdiçar a oportunidade que a história nos legou com a crise da covid-19, seguindo o mesmo roteiro trágico do Brasil após a abolição da escravatura.

Para evitar essa repetição trágica, as políticas sociais pós-pandemia deveriam se guiar pelo conceito de desigualdade multidimensional, isto é, há vários fatores que a originam e a caracterizam, e a transferência de renda é fundamental, mas insuficiente. Parafraseando Nabuco, é preciso não só repassar recursos preferencialmente aos mais pobres, mas atacar a obra da desigualdade, entidade construída profundamente por séculos.

Seguindo essa linha de mudança, cinco aspectos são fundamentais daqui para diante. Em primeiro lugar está o aprofundamento e aprimoramento dos programas de transferência de renda. A maioria dos analistas concorda sobre ampliar a base de pessoas (sobretudo nos centros urbanos) e o montante distribuído, mas há dúvidas quanto à abrangência dos beneficiados, à forma de financiamento e o valor aí embutido, bem como em relação ao próprio desenho. Esta é a discussão que o país precisa urgentemente fazer nos próximos meses, o que implica um debate profundo para evitar decisões rápidas e erradas.

Dos vários aspectos presentes nesta complexa discussão, destaco um: é necessário ter condicionalidades para os beneficiários, de maneira que a transferência do recurso seja acompanhada pela criação de capacidades familiares e/ou individuais que permitam, ao longo do tempo, a saída das pessoas de sua situação inicial de pobreza. Para as famílias pobres com crianças e jovens, a vinculação à educação e à saúde devem permanecer como no Bolsa Família e serem aperfeiçoadas.

Um exemplo: se o valor da transferência aumentar para os grupos familiares que têm adolescentes na escola, há grandes chances de se reduzir a alta evasão escolar no ensino médio, permitindo a essa juventude ter oportunidades que seus pais não tiveram. Daí ser uma política de combate intergeracional da pobreza.

No caso de famílias ou indivíduos mais pobres que não têm filhos, é preciso pensar num outro arco de condicionalidades. Cursos profissionalizantes podem ser um caminho, mas não creio ser o único. O incentivo ao trabalho na comunidade deveria ser uma outra forma de ser beneficiário desse programa de transferência de renda, criando assim capacidades comunitárias de combate aos problemas sociais.

Uma visão dimensional de combate à pobreza e à desigualdade exige, em segundo lugar, uma política de ampliação e melhoria da qualidade dos serviços públicos. De nada adiantarão programas de transferência de renda aos mais pobres sem a melhoria das políticas públicas universais. E aqui está uma das maiores contradições atuais do governo: no mesmo momento em que ele acena acertadamente com a ampliação do Bolsa Família, a gestão da saúde, da educação, dos serviços assistenciais, das políticas urbanas de moradia, das ações no campo cultural, entre as principais, encontram-se em estado deplorável. O problema é que o presidente Bolsonaro e equipe se colocaram, desde o início, contra o ideário da Constituição de 1988 de expansão do “welfare state”.

Além disso, o bolsonarismo é contrário a outro aspecto essencial no combate à desigualdade: é preciso ter ações que levem em conta a cor, o gênero e a região da vulnerabilidade social brasileira. A mudança social não será alcançada apenas transferindo renda. É fundamental garantir direitos iguais a todos, já que as diferenças sociais do país não são fruto simplesmente de um impessoal processo meritocrático.

Dar mais recursos, serviços e direitos aos mais pobres ajuda a combater a desigualdade, mas numa evolução mais lenta. Neste sentido, um quarto ponto é estratégico: reformar o sistema tributário é peça-chave para se obter, ao mesmo tempo, dinheiro para as políticas sociais e redução das diferenças sociais no financiamento do Estado brasileiro.

A obra da desigualdade se alicerça, por fim, no comportamento da maior parte da elite brasileira, que acredita estar acima do restante dos cidadãos. O exemplo do desembargador paulista se tornou famoso nos últimos dias, mas vale ressaltar que tal comportamento é mais comum do que se imagina.

Nossos líderes, incluindo o presidente Bolsonaro, deveriam lutar para que tivéssemos uma elite com cara e valores diferentes dos atuais, sem se colocar como uma classe imune às leis. Só assim destruiríamos umas das obras mais profundas da escravidão, identificada por Nabuco: todo mundo quer ser senhor no Brasil. A luta pela igualdade, assim, começa com o repasse de recursos aos mais pobres, todavia, tem de chegar a alma profunda de nosso país, marcada pela força dos privilégios.
Fernando Abrucio

Só com máscara


Paulo Guedes vai ter que dar um jeito de arrumar mais um dinheirinho para a gente dar continuidade a essas obras que têm impacto social e na infraestrutura gigantesco
Flávio Bolsonaro

Pandemia evitou a demissão de Paulo Guedes, mas agora não tem mais desculpas

O estranho governo de Jair Bolsonarro é envolto em dúvidas, todo nebuloso, mas uma coisa é certa – se não tivesse havido a pandemia de coronavírus, o ministro da Economia, Paulo Guedes, já teria rolado ladeira abaixo, junto com o posto Ipiranga e tudo o mais. E não é por mera coincidência que três de seus mais importantes assessores já tenham se desligado, a começar pelo secretário do Tesouro, Mansueto Almeida.

É impressionante que Guedes tenha assumido o cargo sem haver esboçado um programa econômico, exatamente como ocorreu com o petista Antonio Palocci, ao assumir o ministério da Fazenda em 2003. O PT não tinha nenhum plano para a economia, quem colocou o governo para andar foi a dupla Carlos Lessa e Darc Costa, dois grandes craques em política econômica.

Lessa e Darc, presidente e vice do BNDES, colocaram o banco a serviço do país, recriaram a indústria naval, apoiaram os setores produtivos e as exportações, especialmente o agronegócio, incentivaram os micros e pequenos empresários com o cartão BNDES, e o resultado foi a subida do PIB, que chegou a 7,5% em 2010, último ano de Lula.

Quando deixou o governo, por se desentender com Palocci, o professor Lessa deu uma aula à Nação, ao atacar a postura da Fazenda e prever que a alta da economia seria um “voo de galinha”, logo iria desabar. Não deu outra, e até agora não ocorreu a retomada da economia.

Palocci tinha a desculpa de ser médico, mas Guedes é economista e se julga um gênio, embora seja apenas genioso.


Desde o início do governo, Guedes se mostrou todo enrolado, não sabe o que fazer. Como uma espécie de samba de uma nota só, fica repetindo que é preciso vender Petrobras, Eletrobrás, Banco do Brasil, Caixa Econômica e algo que mais que tenha dado certo e propicie lucro e segurança ao país.

Ao assumir, em 1º de janeiro de 2019, Guedes não tinha nenhum plano, deveria ter seguido a linha de Meirelles, que se mostrara acertada, mas a vaidade não permitiu. Com a reforma da Previdência, prometeu que o país economizaria R$ 100 bilhões por ano, perfazendo R$ 1 trilhão em dez anos, mas ninguém pensou em interná-lo.

Em fevereiro deste ano, entregou a Bolsonaro seu projeto de reforma tributária. Apesar de não saber da briga entre José Lins do Rego e Oswald de Andrade, o presidente poderia ter repetido a frase do escritor paulista, dizendo: “Não li e não gostei”, porque simplesmente recusou a proposta de Guedes, sem entrar no mérito.

Guedes aproveitou a pandemia e ficou escondido atrás do coronavírus até 21 de julho, quando enviou ao Congresso a primeira parte da reforma, envolvendo a tributação sobre o consumo.

Não se trata de reforma, mas de aumento de impostos. Atualmente, paga-se 0,65% de PIS e 3% de Cofins, num total de 3,65%, que o farsante Guedes quer elevar para 12%, mais do que triplicando o valor para os empresários. Os banqueiros, porém, pagariam apenas 5,8%, a pretexto de que as instituições financeiras “não apropriam nem permitem a apropriação de créditos”. Entenderam? Claro que não vai. É só mais uma desculpa para favorecer os bancos.

Bolsonaro também proibiu Guedes de recriar a CPMF, mas o ministro de uma nota quer ressuscitá-la com outro nome. Em tradução simultânea, isso não vai dar certo e Bolsonaro vai deletar o ministro.