terça-feira, 12 de janeiro de 2021

O Dia D e a Hora H do impeachment de Bolsonaro

Uma vez que no próximo dia 1º sejam eleitas as novas direções do Congresso brasileiro, certamente deputados e senadores se verão diante do desafio de refletir sobre a abertura de um processo de impeachment contra Bolsonaro.

Alega Rodrigo Maia (DEM-RJ), atual presidente da Câmara, que não haveria tempo até lá para que o processo fosse aberto. Bobagem! Maia guarda na gaveta mais de 20 pedidos que recebeu. Só depende dele escolher um e aceitá-lo.

Não o fará sob a alegação de que isso tumultuaria a eleição do seu sucessor. A questão será enfrentada pelo novo presidente da Câmara. Se Arthur Lira (PP-AL), candidato de Bolsonaro, se eleger, não haverá processo tão cedo.

Se o eleito for Baleia Rossi (MDB-SP), apoiado por Maia, partidos do centro e da esquerda, o processo poderá ser aberto. Motivos para isso não faltam. Há aos montes. Se o processo não vingar, é o que menos importa. O certo deve ser feito.

A esse respeito, em conversa, ontem, com um grupo de devotos, Bolsonaro comentou: “Vocês não sabem o tamanho da minha paciência. Eu sou imbrochável, tá ok? Então, vão ter que me aturar. Só papai do céu me tira daqui, mais ninguém”.

Paciência é tudo o que ele não tem. Ninguém é “imbrochável”. Se por “papai do céu” quis se referir a Deus, fique sabendo que Deus, também citado no preâmbulo da Constituição que vige, deu autonomia aos humanos para que façam suas escolhas.

Melhor deixar Deus de fora disso. Fazer o certo só dependerá do Congresso.

A mentira como ferramenta política

Em um telegrama para Washington em 1944, George F. Kennan, conselheiro da Embaixada dos EUA na Moscou de Stalin, alertou sobre o poder oculto mantido por mentiras, observando que o governo soviético "tinha comprovado algumas coisas estranhas e perturbadoras sobre a natureza humana."

A mais importante entre elas, escreveu ele, é que, no caso de muitas pessoas, “é possível fazê-las sentir e acreditar em praticamente qualquer coisa”. Não importa o quão falso algo possa ser, ele escreveu, “para as pessoas que acreditam nisso, torna-se verdade. Ela conquista a validade e todos os poderes da verdade.”

A visão de Kennan, gerada por sua experiência na União Soviética, agora tem uma ressonância assustadora para os EUA, onde dezenas de milhões acreditam em uma "verdade" inventada pelo presidente Donald Trump: que Joe Biden perdeu a eleição de novembro e tornou-se presidente eleito apenas por meio de fraude.

Mentir como ferramenta política não é novidade. Nicolau Maquiavel, escrevendo no século 16, recomendou que um líder tentasse ser honesto, mas mentir ao dizer a verdade “o colocaria em desvantagem”. As pessoas não gostam de ser enganadas, observou Maquiavel, mas "aquele que engana sempre encontrará aqueles que se permitem ser enganados.”

A disposição, e até mesmo o entusiasmo, de ser enganado tornou-se nos últimos anos uma força motriz na política em todo o mundo, principalmente em países como Hungria, Polônia, Turquia e Filipinas, todos governados por líderes populistas adeptos a contar meias verdades ou inventá-las completamente .

Janez Jansa, um populista de direita que em 2018 tornou-se primeiro-ministro da Eslovênia - o país natal de Melania Trump - foi rápido em abraçar a mentira de Trump de que ele venceu. Jansa o parabenizou após a eleição de novembro, dizendo "está muito claro que o povo americano elegeu" Trump e lamentando "fatos negados" pela grande imprensa.

Até o Reino Unido, que se considera um bastião da democracia, foi vítima de mentiras evidentes, mas amplamente aceitas, votando em 2016 para deixar a União Europeia após alegações do lado pró-Brexit de que sair do bloco significaria 350 milhões de libras a mais, ou US$ 440 milhões, todas as semanas para o serviço de saúde do país.

Aqueles que propuseram essa mentira, incluindo o político do Partido Conservador que desde então se tornou o primeiro-ministro do Reino Unido, Boris Johnson, mais tarde admitiram que ela havia sido um "erro" - embora só depois de terem vencido a votação.

Mentiras maiores e mais corrosivas, aquelas que não apenas mexem com números, mas remodelam a realidade, encontraram apoio extraordinário na Hungria. Lá, o líder populista Viktor Orbán classificou o investidor e filantropo George Soros, um judeu nascido na Hungria, como o mentor obscuro de um plano sinistro para minar a soberania do país, substituir os húngaros nativos por imigrantes e destruir os valores tradicionais.

A força desta teoria da conspiração antissemita, disse Peter Kreko, diretor executivo da Political Capital, um grupo de pesquisa em Budapeste há muito crítico de Orban, reside em seu apelo a uma "mentalidade tribal" que vê todas as questões como uma luta entre "o bem e mal, preto e branco ”, enraizado nos interesses de uma tribo particular.

Na Polônia, o profundamente conservador Partido Lei e Justiça de Jaroslaw Kaczynski, no poder desde 2015, promoveu sua própria teoria da conspiração multifuncional e que muda a realidade. Ela gira em torno da alegação repetidamente desmascarada do partido de que a morte em 2010 de dezenas de autoridades poloneses, incluindo o irmão de Kaczynski - o presidente da Polônia na época - em um acidente de avião no oeste da Rússia foi o resultado de um complô orquestrado por Moscou e ajudado, ou ao menos encoberto pelos rivais do partido em Varsóvia.

Embora especialistas poloneses, russos e independentes tenham culpado o mau tempo e o erro do piloto pelo acidente, a crença de que foi um crime ressoou entre os defensores obstinados do Lei e Justiça. Isso alimentou e reforçou a visão de que os líderes do governo de centro anterior não são apenas rivais políticos, mas traidores em conluio com o inimigo há séculos da Polônia, a Rússia, além da ex-elite comunista da Polônia.

A conveniência de mentir em grande escala foi demonstrada pela primeira vez há quase um século por líderes como Josef Stalin e Adolf Hitler, que cunharam o termo "grande mentira" em 1925 e ascenderam ao poder com a mentira de que os judeus foram responsáveis pela derrota da Alemanha na 1ª Guerra. Para os ditadores alemães e soviéticos, mentir não era apenas um hábito ou uma maneira conveniente de dar fim a fatos indesejáveis, mas uma ferramenta essencial de governo.

Testou e fortaleceu a lealdade ao forçar os subordinados a aplaudir declarações que sabiam ser falsas e reuniu o apoio de pessoas comuns que, de acordo com Hitler, "são mais facilmente vítimas da grande mentira do que da pequena mentira" porque, embora possam mentir em seu dia a dia sobre coisas pequenas, “nunca passaria pela cabeça delas fabricar mentiras colossais”.

Ao promover uma mentira colossal de sua autoria - que ele obteve uma "vitória eleitoral esmagadora inviolável" - e se apegando a ela apesar de dezenas de decisões judiciais estabelecendo o contrário, Trump ofendeu seus oponentes políticos e deixou até mesmo alguns de seus apoiadores de longa data balançando a cabeça em relação à sua mentira.

Ao abraçar essa grande mentira, no entanto, o presidente escolheu um caminho que geralmente funciona - pelo menos em países sem sistemas jurídicos fortemente independentes e meios de comunicação, assim como outras organizações, que trabalham com verificação da realidade.

Depois de 20 anos no poder na Rússia, o presidente Vladimir Putin, por exemplo, mostrou que Kennan estava certo quando, escrevendo da capital russa em 1944, disse: “Aqui os homens determinam o que é verdadeiro e o que é falso”.

Muitas das mentiras de Putin são relativamente pequenas, como a alegação de que jornalistas que expuseram o papel do serviço de segurança da Rússia em envenenar o líder da oposição Alexei Navalny estavam trabalhando para a CIA. Outras não são, como sua insistência em 2014 de que os soldados russos não desempenharam nenhum papel na tomada da Crimeia da Ucrânia ou nos combates no leste da Ucrânia. (Ele mais tarde reconheceu que "é claro" que eles estavam envolvidos na anexação da Crimeia.)

Mas há diferenças entre o líder russo e o derrotado americano, disse Nina Khrushcheva, professora e especialista em propaganda soviética e outras formas de propaganda da New School em Nova York. “As mentiras de Putin não são como as de Trump: são táticas e oportunistas”, disse ela. “Elas não tentam redefinir todo o universo. Ele continua a existir no mundo real.”

Apesar de sua admiração declarada pelo presidente da Rússia e pelo sistema que ele preside, disse ela, Trump, ao insistir que ganhou em novembro, não está imitando tanto a Putin, mas se aproximando mais à era de Stalin, que, após arquitetar um período de fome catastrófico que matou milhões no início dos anos 30, declarou que "viver se tornou melhor, camaradas, viver se tornou mais alegre".

“Isso é o que a grande mentira é”, disse Nina. “Abrange tudo e redefine a realidade. Não há lacunas nela. Ou você aceita a coisa toda ou tudo desmorona. E foi o que aconteceu com a União Soviética. Ela entrou em colapso. ”

Se o universo de Trump entrará em colapso agora que alguns aliados saíram de cena e o Twitter arrebatou seu megafone mais potente para transmitir mentiras, é uma questão em aberto. Mesmo depois do cerco ao Capitólio por arruaceiros pró-Trump, 174 integrantes do Congresso votaram contra o resultado da eleição. Muitos milhões ainda acreditam nele, sua fé fortalecida por bolhas de mídia social que muitas vezes são hermeticamente fechadas como a propaganda da era soviética.

“O controle ilimitado da mente das pessoas”, escreveu Kennan, depende “não apenas da capacidade de alimentá-las com sua própria propaganda, mas também de ver que nenhum outro sujeito as alimenta com a dele”.

Na Rússia, Hungria e Turquia, a percepção de que o “outro sujeito” não deve ser permitido a oferecer uma versão rival da realidade levou a uma pressão constante a jornais, emissoras de televisão e outros meios de comunicação fora de sintonia com a linha oficial.

O presidente Recep Tayyip Erdogan, da Turquia, fechou mais de 100 veículos de imprensa e, por meio de intimidação da polícia tributária e outras agências estatais, forçou os principais jornais e canais de televisão a transferir o comando para partidários do governo.

A ascensão de Trump também ajudou a capacitar um primo da grande mentira - um boom na desinformação nas mídias sociais e na ficção da teoria da conspiração de extrema direita.

Isso foi mais notavelmente personificado pela expansão global do QAnon, um fenômeno outrora obscuro que afirma que o mundo é dirigido por uma conspiração de poderosos políticos liberais que são pedófilos sádicos. Trump não repudiou os discípulos do QAnon, muitos dos quais participaram do caos no Capitólio na última quarta-feira. Em agosto, ele os elogiou como pessoas que “amam nosso país”.

Até certo ponto, cada nova geração fica chocada ao saber que os líderes mentem e que as pessoas acreditam neles. “Mentir nunca foi tão difundido como hoje. Ou mais desavergonhado, sistemático e constante”, escreveu o filósofo francês Alexandre Koyré em seu tratado de 1943, Reflexões sobre a mentira.

O que mais afligia Koyré, no entanto, era que as mentiras nem precisam ser plausíveis para funcionar. “Pelo contrário”, escreveu ele, “quanto mais grosseira, maior, mais imperfeita a mentira, mais prontamente ela é acreditada e seguida”.

Pensamento do Dia

 


Ainda dá tempo

O presidente Jair Bolsonaro tem um projeto de poder muito perigoso. Ele, que cultiva desde o início de sua carreira os grupos militares, e sempre foi representante corporativo deles, como tenho debatido aqui nos últimos dias, tem marcado presença em várias formaturas, não apenas das três Armas - Exército, Marinha e da Aeronáutica -, mas também das polícias Militar, Federal, e Rodoviária Federal.

Dois projetos de lei que estão na Câmara, de autoria de deputados bolsonaristas, revelados pelo jornal Estado de S. Paulo, restringem o poder dos governadores sobre braços armados do estado, com mudanças na estrutura das polícias Civil e Militar, certamente saíram dessa tentativa de Bolsonaro de cooptar as Forças Armadas e as forças policiais auxiliares, que fazem parte do sistema de defesa nacional, mas não têm nenhum tipo de autonomia funcional, que sempre quiseram. Ainda dá tempo de pará-lo.

Transformar a PM numa polícia independente, que não seja uma força auxiliar, acaba criando uma quarta força armada, o que é temerário. Já há uma preocupação muito grande com essa bolsonarização dos quartéis e da Polícia Militar, com mais de quatro mil militares em diversos escalões no governo, da ativa e da reserva, inclusive no ministério, numa tentativa de influenciar ideologicamente as forças auxiliares e as baixas patentes das Forças Armadas.



O primeiro levante de uma PM na Nova República aconteceu em 1997 em Minas, e o ex-deputado Marcus Pestana, que era secretário do governo, lembra que o Estado Maior perdeu totalmente o controle da tropa. “Como se falava na época, os coronéis começaram a obedecer ao cabo (Cabo Júlio foi o líder simbólico na época)”. Conquistaram espaços parlamentares corporativos, e nunca mais os princípios da hierarquia e disciplina foram os mesmos.

Os projetos de seus aliados criam ainda uma nova estrutura na organização das Polícias Militares, com cargos de oficiais superiores. Teríamos, pois não creio que os projetos sejam aprovados, generais de quatro, três e duas estrelas nas Polícias Militares. Vários governadores estaduais, que perderiam na prática o comando das polícias militares e civis, estão se movimentando, e o de São Paulo, João Doria reagiu: “Não há nenhuma razão que justifique, exceto a militarização desejada pelo presidente Jair Bolsonaro para intimidar governadores através de força policial militar”.

Os projetos preveem mudanças na estrutura das polícias, estabelecendo mandatos de dois anos para os comandantes-gerais da PM, dos Bombeiros e delegados-gerais de Polícia Civil, escolhidos por uma lista tríplice. O ministro da Justiça e Segurança Pública, André Mendonça, confirmou que seu ministério está acompanhando a tramitação dos projetos, e tem se reunido com representantes das categorias envolvidas e deputados federais.

As propostas de bolsonaristas são a concretização de um projeto de poder militar que sustente os avanços de Bolsonaro sobre as limitações que as instituições democráticas lhe impõem. O presidente da República usa seus poderes para, de um lado, dar protagonismo aos militares em seu governo, ao mesmo tempo que cuida de seus proventos e dos projetos que mais lhes são caros, como o submarino nuclear.

Os projetos de defesa nacional são importantes, mas não poderiam ser prioridades neste momento de pandemia e crise social aguda. Ao mesmo tempo que se queixa de que o país “está quebrado” e que não pode fazer nada, Bolsonaro permite o contigenciamento de verbas sociais e para o combate da COVID-19, e proíbe o bloqueio das verbas militares.

Censura descabida

A anunciada decisão do ministério da Justiça de processar Rui Castro, e por tabela Ricardo Noblat, que transcreveu parte da crônica do primeiro, por um suposto incentivo ao suicído dos presidentes Trump e Bolsonaro, seria cômico se não fosse trágico.

Muito antes deles, Jair Bolsonaro, em campanha, convocou seus apoiadores no Acre a “fuzilar esses petralhas”, segurando um tripé simulando uma metralhadora. Ainda como deputado, Bolsonaro sugeriu que os militares na ditadura deveriam ter assassinado 30 mil brasileiros, a começar pelo ex-presidente Fernando Henrique.

Mas, na época, havia governos democráticos no país.

Bolsonaro, soldados e policiais

A presença de militares e ex-militares no governo federal é uma característica da administração de Jair Bolsonaro. Desde a redemocratização do País, nunca houve, por exemplo, tantos ministros de Estado com histórico profissional vinculado às Forças Armadas. Logicamente, essa característica do governo Bolsonaro desperta uma natural apreensão, seja pelos possíveis efeitos que essa participação pode provocar na imagem e no comportamento das Forças Armadas, seja porque, em um Estado Democrático de Direito, os militares têm uma função institucional muito clara – bem distante da política.

É preciso, no entanto, destacar outra característica do governo de Jair Bolsonaro em relação aos militares que, sem muitas vezes receber a devida atenção, pode ter efeitos especialmente desastrosos. Trata-se da tentativa constante do presidente Bolsonaro de estabelecer uma relação direta, de natureza político-ideológica, com soldados e policiais, desrespeitando os limites do cargo e as respectivas esferas dessas categorias.

Essa atitude do presidente Bolsonaro pode ser observada, por exemplo, em sua frequente participação em solenidades de formatura de militares ou de policiais. Segundo levantamento do jornal O Globo, de janeiro de 2019 a dezembro de 2020, Bolsonaro participou de 24 formaturas de membros do Exército, da Marinha, da Aeronáutica e das Polícias Militar, Federal e Rodoviária Federal. Na primeira metade do seu governo, esteve presente em 16 solenidades de formatura das Forças Armadas e em 8 de Polícias.



Não é demais lembrar que a presença do presidente da República numa solenidade das Forças Armadas não tem, por si só, nada de reprovável. Como dispõe a Constituição, o presidente da República é o comandante supremo das Forças Armadas. O que desperta preocupação no comportamento de Jair Bolsonaro são dois pontos: a alta frequência de sua participação nesses eventos – a revelar que não é algo circunstancial, mas tática política, com objetivo e método – e, principalmente, a mensagem que vem transmitindo às novas gerações de formandos de militares e policiais.

Estivesse apenas a exercer o papel de comandante supremo das Forças Armadas, o presidente Bolsonaro certamente aproveitaria esses eventos para recordar os deveres e princípios constitucionais relativos aos militares e às forças de segurança. No entanto, ele tem usado essas solenidades como palanque político-ideológico, difundindo ideias estranhas ao Estado Democrático de Direito.

No mês passado, por exemplo, o presidente Bolsonaro utilizou a cerimônia de formatura de soldados da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro para atacar a imprensa. “Não se esqueçam disso, essa imprensa jamais estará do lado da verdade, da honra e da lei. Sempre estará contra vocês. Pensem dessa forma para poderem agir”, disse Jair Bolsonaro.

A imprecação contra a imprensa parece ter sido retirada de algum discurso de Hugo Chávez. Sua fala não é condizente com o cargo de presidente da República, e menos ainda é adequada a uma formatura de policiais militares ou mesmo de estudantes.

É tão fora de prumo o comportamento do presidente Jair Bolsonaro nas formaturas de militares e de policiais que sua constante presença nesses eventos, mais do que manifestação de prestígio para as respectivas carreiras, vem causando apreensão nas altas patentes. Não é para menos. Conhecem quão árduo é formar as tropas dentro do genuíno espírito militar e quão fácil é contaminar a soldadesca com questões político-ideológicas.

Desde o início, a trajetória política de Jair Bolsonaro foi marcada pela proximidade com policiais e militares de baixa patente. Suas campanhas eleitorais para o Legislativo sempre foram voltadas para essas categorias. Isso, no entanto, não lhe dá o direito de usar o cargo de presidente da República para fazer agremiação política com soldados e policiais.

Como gosta de lembrar, Jair Bolsonaro é o comandante supremo das Forças Armadas. Deve atuar, portanto, como tal. Essa competência constitucional traz graves deveres. Descumpri-los é abrir caminho para o desastre.

Quando polícia de Estado vira milícia...

Todas as forças democráticas do país devem reagir vigorosamente contra as concretas medidas que objetivam politizar as polícias para transformá-las em órgãos de governos e não do Estado.
Golpes contra a democracia não ocorrem mais ostensivamente, mas vão se insinuando aos poucos e contam com a letargia dos acomodados. Quando estes despertam, já é tarde demais
Fábio Trad, deputado (PSD)

Onde falhou, onde falha, a democracia?

“Não desprezes a serpente por ser pequena, pois ela pode crescer e transformar-se num dragão!”

Isto dizia o mestre ao gafanhoto, seu discípulo, numa série de artes marciais muito popular na minha geração.

Embora popular, aparentemente, continuamos a desprezar em alguns casos, não as cobras, mas as lesmas, sem nos darmos conta de que vão corroendo tudo o que foi plantado e, mais do que isso, reproduzem-se a larga velocidade.

Durante muito tempo, pensei que as frases mortais de “isto não há-de ser nada”, “depois logo se vê” e “a malta desenrasca” eram marca registada do bom povo português.



Os acontecimentos dos últimos anos vieram provar que, apesar de não haver povo mais desenrascado que o nosso (a maior parte das vezes às três pancadas, mas enfim), na generalidade, as democracias deitaram-se à verdadeira sombra da bananeira, desdenhado dos sinais e abrindo portas a movimentos que estão à vista de todos.

Recordo dois momentos que marcaram esta minha (nossa) arrogância democrática, que nos deixaram estarrecidos e cujas repercussões ainda hoje não temos bem noção.

Uma foi o Brexit. Estou certa que, tal como eu, muitos foram dormir com a firme convicção de que o “não” iria ganhar e, depois, foi o que se viu e o que mais se verá.

O mesmo aconteceu com a eleição de Trump, a quem todos chamavam de “palhaço”, “demagogo” e que jamais entraria na Casa Branca. Pois bem, ele é efetivamente tudo isso, só que o grande problema neste momento é tirá-lo da Casa Branca, onde chegou pelo voto dos americanos, independentemente de se colocarem questões pertinentes acerca da influência externa que terá existido.


É dos livros e da vida que o poder, quando exercido durante muito tempo (mesmo que em alternância partidária, mas sem que tal signifique alternativa ), assume a falsa sensação de impunidade.A grande questão é esta: a democracia, os grandes partidos, deixaram de saber ler os sinais e sobretudo tornaram-se surdos relativamente ao que o povo precisa e quer.

Se perguntarmos à maioria dos dirigentes europeus, para não dizer mundiais, qual a perceção do povo acerca do exercício da governação, quais os seus anseios, medos e reparos, não sabem. Pior: não querem saber, arvorando-se em guardiões do sentir dum eleitorado, do qual, na maioria dos casos, nunca fizeram parte, já que toda a sua vida foi serem políticos profissionais. Do mundo, do trabalho, das condições de vida, do seu eleitorado, nada sabem!

Ora é exatamente esta ignorância, esta sobranceria intelectual e política que a maioria dos dirigentes têm, que deixa espaço a Trumps, Pens, Chegas e outros quejandos.

Se repararmos nos discursos de todos eles, não vemos uma única solução que não seja um claro atentado aos Direitos Humanos. E, mesmo quando não é dito em voz alta, é murmurado de maneira a fazer-se ouvir (veja-se o debate Ana Gomes/André Ventura, sobre a amputação das mãos a ladrões. Resposta em surdina e quase em modo off : “a alguns não fazia mal”).

Este tipo de argumentário faz sentido numa vasta camada da população que assiste a situações que contradizem os princípios de alguns partidos nos quais depositaram o seu voto, a sua esperança e a sua confiança e que, por isso mesmo, se sentem traídos,. Pouco lhes importa que os extremismos não tenham resposta. O que lhes importa é que as respostas dadas ou omitidas pelos restantes defensores da democracia nada lhes diz ou são contrárias à prática.

Onde falhou, onde falha a democracia?

Muito sociólogos já manifestaram as suas opiniões e, em muitos casos, estou perfeitamente em concordância. Mas a maioria omitiu algo que penso que devia ser uma regra basilar: nenhum dirigente político, nenhum representante do povo deveria poder exercer o cargo sem que tivesse tido um determinado número de anos de trabalho fora da política, no mundo real. Claro que haverá génios que saem das faculdades. Mas, mesmo a esses, falta-lhes algo que não se aprende em nenhum banco de escola, nem sequer em nenhum doutoramento. Falta-lhes Mundo, falta-lhes senso comum, falta-lhes a noção da realidade.

E são estas falhas que partidos extremistas (e não faço distinção entre extremismos de direita ou de esquerda, pois ambos são igualmente perigosos) vão usar como arma de argumentação junto da população. Aqui alguns dirão “população menos esclarecida, com menos literacia”.

Erro basilar e de arrogância, uma vez mais. Para além de não ser totalmente verdade, há algo que é incontestável e que dever-se-á manter: o voto dum doutorado em democracia vale tanto quanto o do analfabeto.

Olhamos o passado e verificamos que praticamente todas as ditaduras tiveram o apoio popular. Pelo menos, as que perduraram no tempo.

Não quero o meu País sob a bota cardada ou os polainitos duma ditadura!

Mas, para tal, é preciso que os partidos democratas, grandes e pequenos, façam um exercício de mea culpa, olhem sem preconceitos para o seu interior e hajam em conformidade sem receios ou tibiezas. Sobretudo que hajam rápido.

Porque os tempos, como canta Bob Dylan, estão a mudar. E, infelizmente, não me parece que para melhor.