quinta-feira, 12 de novembro de 2020

Pensamento do Dia

 


Trump-19

É dia de festa para a Democracia. A queda de Trump já é a mais simbólica do século: com ele, cai o que de mais abjeto há no planeta azul. Com ele, cai o apogeu da corrupção moral, do chauvinismo, da mentira compulsiva, do narcisismo fútil, da ignorância atroz, do fascismo, do racismo assassino e do machismo violento. Se, lamentavelmente, a derrota não desinfeta num ápice o rasto da sua passagem pela América e pelo mundo, o seu enterro político já é a melhor notícia, quiçá a primeira grande boa notícia, da era covid-19.

Quer queiramos, quer não, Donald Trump fez História. Em quatro anos, criou uma nova forma de estar na política, suportada pela raiva e ignorância de um povo perdido, que rapidamente inspirou clones por toda a parte. Mais uma vez, vimos os Estados Unidos da América a ditar tendências – neste caso, as piores. Aqui, desengane-se quem considerar que Trump foi só um bronco indecente, ou um homem sem valores, ao leme do país mais poderoso do hemisfério. Não foi. Trump foi o Frankenstein da nova extrema-direita e o Godzilla do neoliberalismo selvagem, cuja pegada política abriu caminho ao discurso de ódio no mundo todo.

Há três dimensões no legado trumpista. Uma dimensão emblemática, por tudo o que a chegada àquele posto de uma figura com as suas caraterísticas representa per si. Uma dimensão de exercício, onde entram as decisões que marcaram o seu mandato (no plano ambiental, por exemplo, ou de política internacional). E uma dimensão infectocontagiosa, pelo modo como a sua liderança espalhou pelo globo um vírus bárbaro, destruidor dos valores humanistas. Se a covid-19 nasceu num mercado em Wuhan, o vírus Trump nasceu nas urnas americanas, em 2016. Por muito que as fórmulas dos novos populistas sejam, em parte, baseadas em táticas antigas, Trump gerou uma nova estirpe do vírus populista, hoje derrotado: o TRUMP-19.

Comecemos pelo simbólico. Imaginar que uma personagem como Donald Trump chegaria ao cargo mais influente do mundo é uma ideia tão delirante e aterradora que só Matt Groening, criador dos Simpsons, a poderia ter. E teve. Há 19 anos, Trump era eleito como Presidente dos EUA num episódio dos Simpsons – provando uma vez mais o quanto a série sintetiza, tantas vezes, de modo perfeito o pior da sociedade americana. Donald Trump é um empresário de 74 anos, dono de uma fortuna que não construiu, envolvido em incontáveis escândalos, fraudes, falências, casos de corrupção e 26 acusações de assédio sexual. Ninguém confiaria neste homem para tomar conta do gato ao fim-de-semana, quando mais de um país. Mas tomou. Quatro anos. Ter alguém com este perfil à frente da Casa Branca é o símbolo de uma sociedade em profundo declínio. Como muitos americanos, Trump é neto de quatro imigrantes, não deixando por isso de ser brutalmente racista e xenófobo. É o epíteto da podridão da própria História americana. Não espanta que o maior monumento da sua presidência seja um muro inacabado na fronteira com o México. No plano dos símbolos, o poder dessa imagem fala por si.

Seguimos para a ação. Trump destruiu tudo quanto as instituições democráticas não conseguiram salvar. Em quatro anos, colidiu com os esforços internacionais em defesa do ambiente, revelando uma irresponsabilidade aguda, anticientífica e criminosa. Em quatro anos, conseguiu pôr em risco relações, alianças diplomáticas históricas e acordos comerciais de interesse global, acicatando ânimos como uma criança mimada que faz birra e entorna o leite em cima do tabuleiro de jogo. Em quatro anos, subordinou uma superpotência à sua mentalidade isolacionista, nacionalista e tacanha, promovendo o cepticismo em relação à cooperação internacional. Em quatro anos, reverteu o progresso que Obama fizera no acesso público à saúde. Em quatro anos, criou um quadro fiscal para que os bilionários pagassem menos (ou nenhuns) impostos, asfixiando a classe média e os trabalhadores. Em quatro anos, abriu fendas na comunidade, exaltou movimentos extremistas e promoveu teorias conspiratórias. Em quatro anos, destruiu o trabalho de décadas de conquistas e lutas por direitos fundamentais. E continua. A destruição de um castelo de areia é, de facto, um processo sempre muito mais rápido do que a sua edificação.

E, por último, o efeito viral do trumpismo. Pela mão de Steve Bannon, acessor e arquiteto de toda a estratégia eleitoral, Trump instalou um regime assente na manipulação, na mentira e no ataque aos pilares da democracia. Comprovada a eficácia da fórmula, facilitada pelas redes sociais, não tardaram a surgir réplicas mundo fora, como cogumelos. Bolsonaro no Brasil, Modi na Índia, Erdogan na Turquia, Kaczyński na Polónia, Salvini na Itália, Strache na Áustria, Le Pen em França, Abascal em Espanha, entre vários outros fenómenos – todos tomaram notas e se inspiraram para as suas estratégias. A infecção, no entanto, ultrapassa a camada política. Com Trump na Sala Oval, as sociedades viram erguer-se da campa os valores mais sórdidos, muitos deles julgados extintos. Trump legitimou, inspirou e motivou o renascimento dos valores contrários aos do pensamento humanista e igualitário. Trump (e os seus tenebrosos fantasmas) percebeu que, minando a verdade com fake news e conspirações, destilariam a raiva das populações em votos.

Natural e legítimo, o descontentamento popular que uma economia mundial desigual, ineficaz e corrupta justifica, foi ateado por Trump com mensagens de ódio. A manipulação pela alienação no seu auge. Primeiro, descredibilizou a justiça, depois, atacou os media e, já na eleição, o sistema de votos – que alega ser fraudulento sem a mínima prova. Mais uma vez, a criança chorona. Seria ridículo, se não fosse dramático. Se as populações não acreditarem na justiça, nos media e no sufrágio, é impossível que a Democracia sobreviva. Olhemos em volta. É fácil perceber que os cogumelos populistas seguidores de Trump estão a tentar fazer o mesmo em todo o lado. Portugal não é exceção.

É dia de festa para a Democracia. O 46º presidente dos EUA está eleito e não é Trump. Se a passagem do energúmeno deixou marcas, às quais teremos de estar atentos, a sua derrota é a prova de que é com Democracia que se salva a Democracia. Fechada a caixa de pandora, é hora de exorcizar demónios e virar a página. Esta foi, de longe, a primeira grande boa notícia da era covid-19.

Bolsonaro é a mais perfeita tradução do seu (des) governo

Em dia de fúria, o presidente Jair Bolsonaro teve pelo menos um momento de argúcia. Foi quando desabafou, em cerimônia no Palácio do Planalto: “Não estou preocupado com a minha biografia. Se é que eu tenho biografia”. De fato, não está. Do contrário, não teria feito o que fez em um período de poucas horas.

Começou o dia celebrando o falso insucesso da vacina chinesa contra a Covid-19. Depois disse que o Brasil, temeroso do vírus, não passa de um país de maricas. Por fim, afirmou que se não houver entendimento com o futuro governo de Joe Biden em torno do futuro da Amazônia, chegará a hora de usar a pólvora.

Biden ameaça o Brasil com sanções econômicas se Bolsonaro não cuidar melhor da Amazônia, onde aumenta o desmatamento e multiplicam-se os focos de incêndio. Bolsonaro tenta vender aos brasileiros a ideia de que outros povos querem ocupar a Amazônia porque ela é muito rica em minérios. Daí a referência a guerra.

Foram os chineses que inventaram a pólvora. Segundo garantiu há oito anos o general Maynard Marques Santa Rosa, ex-secretário de Política, Estratégia e Assuntos Internacionais do Ministério da Defesa, as Forças Armadas do Brasil não possuem munição suficiente para sustentar uma hora de combate.

Bravata pura de Bolsonaro! Que mereceu, uma hora mais tarde, a resposta indireta do embaixador americano no Brasil. Viralizou nas redes sociais o vídeo postado pelo embaixador sobre a passagem de mais um aniversário do Corpo de Fuzileiros Navais dos Estados Unidos. Uma demonstração de força bem a propósito.

O saldo do dia em que Bolsonaro despiu a fantasia recém-vestida de presidente normal e reconciliou-se com o que sempre foi, é e será, pode ser resumido assim:

* Aumentou a desconfiança em relação a uma vacina promissora como tantas outras que estão sendo testadas aqui e lá fora;

* Aumentou também a desconfiança nas decisões técnicas da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, até aqui amplamente respeitada no exterior;

* O Supremo Tribunal Federal sentiu-se obrigado a interferir na questão dando um prazo de 48 horas para que o governo explique por que suspendeu os testes com a Coronavac;

* Outra vez, os governadores se uniram contra o presidente da República e o acusaram de politizar o combate à pandemia.

O que mais, além do medo de não se reeleger em 2022, levaria Bolsonaro a comportar-se da forma estúpida e amadora como se comportou criando uma uma nova crise? Não é possível que a derrota do seu ídolo Donald Trump o tenha afetado tão gravemente a ponto de ele perder o juízo.

Maior do que o medo de não se reeleger deve ser o medo de assistir ao colapso da carreira política do seu filho mais velho Flávio Bolsonaro, réu pelos crimes de peculato, lavagem de dinheiro e organização criminosa no esquema de desvio de dinheiro público à época em que era deputado estadual no Rio de Janeiro.

O presidente acidental eleito há dois anos transformou-se num presidente atormentado. Ruim para ele, pior para o país.

Bolsonaro criminoso

A contabilidade passava de uma dúzia de crimes de responsabilidade cometidos pelo presidente da República quando ele deu uma freada por orientação do Centrão. Não porque não tivesse outras barbaridades para dizer, mais ameaças a proferir, novos crimes para cometer. Mas sim porque precisava dar uma envernizada no seu perfil para que o agrupamento mais fisiológico do Congresso pudesse dele se aproximar. Há dois dias, o escorpião venenoso não conseguiu se conter e voltou a seu estado natural de irresponsável maior da República. Desta vez, o alvo do seu atentado criminoso não foi o Congresso, o Supremo ou a democracia. Agora, ele preferiu golpear a saúde do povo brasileiro.

Além de festejar um hipotético fracasso da vacina que está sendo testada pelo Instituto Butantan, órgão do governo de São Paulo, onde identifica um inimigo na figura do governador, disse em rede social que ganhava mais uma sobre João Doria. E mentiu categoricamente ao afirmar que a CoronaVac causava morte, invalidez e anomalias. Foi um crime contra a dignidade, a honra e o decoro do cargo que ocupa, previsto na lei do impeachment. Mas deste mato não sai cachorro. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, único com poder para dar andamento a pedidos de afastamento do presidente, já sentou em cima de mais de 30. Se um novo ocorrer, vai ser aquecido sob a mesma pilha gorda.


Talvez o Tribunal de Contas da União possa identificar um outro crime, de interferência indevida do presidente numa agência reguladora, se tocar para valer a investigação solicitada pelo Ministério Público. Difícil não enxergar essa interferência diante do que se viu antes e logo depois da decisão da Anvisa de suspender as pesquisas do Butantan. Para começar, a nota noturna da Anvisa suspendendo os testes já apontava o caminho pelo qual transitaria o capitão logo em seguida. Ao afirmar que houve um evento adverso grave, e mesmo já sabendo se tratar de possível suicídio, listou o que podem ser esses eventos (morte, invalidez, anomalias), dando munição a Bolsonaro.

Todos os erros cometidos pela Anvisa parecem deliberados. 1) A agência não esperou nem sequer o amanhecer para tomar a decisão de suspender a pesquisa. 2) A Anvisa não aceitou a ponderação do Butantan sobre a morte do homem que testara a vacina por não a considerar formal (queria um boletim de ocorrência da polícia), ao contrário do Comitê Internacional Independente e da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa. 3) O contra-almirante Antônio Barra Torres, presidente da agência, disse não ser parceiro do Butantan. Patético. Os responsáveis pelos testes mereciam confiança, e o BO poderia se ver depois; claro que a Anvisa poderia esperar mais detalhes antes de suspender os testes. E, evidentemente, todos deveriam estar do mesmo lado contra a pandemia. 

O contra-almirante e os dois subordinados que deram entrevista explicando a decisão apressada foram instrumentos do presidente. O que Bolsonaro queria era ter um ganho político sobre Doria na reta final da eleição municipal. Seu candidato a prefeito de São Paulo, Celso Russomanno, vai tão mal que talvez nem chegue ao segundo turno. Doria, por sua vez, torce para que ele avance e seja o adversário de Bruno Covas, para dar uma coça em Bolsonaro. As explicações da trinca da Anvisa, Barra Torres, Alessandra Bastos Soares e Gustavo Mendes, na entrevista de terça-feira foram ridículas. Mesmo sabendo desde a véspera que a morte não se devia à vacina, insistiram que o aspecto formal era inevitável. Não era. Tanto que recuaram 24 horas depois.

Sabia-se desde sempre que o contra-almirante era um bolsonarista sem máscaras. Nos bastidores da Anvisa comenta-se que o mandato da diretora Alessandra Bastos Soares vence em abril do ano que vem, e ela busca sua recondução para o cargo. Talvez isso explique a condescendência com decisão baseada em premissas tão frágeis. Sobre o papel do técnico Gustavo Mendes, que disse na entrevista estar falando em nome de todos os seus colegas sem apresentar procuração, sabe-se na Anvisa que ele é daqueles quadros em que os chefes podem sempre confiar.