quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

Em horas a última folha do calendário vai ao chão. Um novo ano chega com 365 dias para se escrever uma História que não seja nunca com pitadas de ódio, irresponsabilidade, infâmia, calúnia, desprezo ao outro, egoísmo. Cada dia deve ser escrito como mais uma vitória da Humanidade acima de todos e de tudo.

Se não se fizer o dever do Homem, mas se render à Besta, haverá mais atraso, além do já acumulado. Será este um país escravizado pela escória em mais um ano aos tropeços, entristecido e famélico, enquanto o mundo muda rapidamente. Um destino só festejado pela mediocridade.

Que se pense, nestas poucas horas, nos dois anos de retrocesso para se criar em 2021 um recomeço em que todos sejam brasileiros, independente de raça, credo, cor, gênero ou função. Talvez assim comecemos a nos recuperar do desastre eleito a que milhões de abraçaram.

E nesta noite de silêncio, sem fogos, em que reverenciemos os mortos e doentes da pandemia e todos os outros sempre esquecidos, que saudemos a vinda de outro ano com uma descarga estrondosa para jogar no esgoto o cinismo dos que
não merecem consideração por não respeitarem nem leis nem homens e mulheres de qualquer idade. Aos pulhes, enfim, o esgoto.
Luiz Gadelha
Voltamos depois do feriadão

Carta a 2021: 'Mais do que antes, é importante conversar sobre recomeços'"

Querido 2021, seja bem-vindo!

Entre, a casa é sua.

Se não for pedir demais, nos devolva, por favor, todos os abraços que seu prezado antecessor nos roubou. Queremos também as gargalhadas dos parentes e amigos, o livre sorriso dos desconhecidos, a brisa no rosto. Gostaríamos ainda de ter de volta a alegria das viagens; a tumultuosa euforia dos estádios e dos grandes shows; todas as tardes em que não fomos beber cerveja com os amigos no boteco da esquina.

Não se esqueça de nos devolver aqueles jantares intermináveis, em que discutíamos o fim do mundo e como iríamos recomeçá-lo. Hoje, que sabemos muito mais sobre o fim do mundo, essas conversas antigas me parecem todas um tanto ou quanto ingênuas. Contudo, mais do que antes, é importante conversar sobre recomeços. Trocar sonhos. Debater utopias.

Peço em particular que me devolva os festivais literários — dos quais, em 2019, eu estava até (confesso) um pouquinho enfastiado. Durante o seu reinado, quero muito regressar a Paraty. Não posso perder a FliAraxá, a Flup ou a Flica, em Cachoeira.

Eu, que não sou de futebol nem de carnaval, agora sinto ânsias de me perder entre multidões, gritando, sambando, abraçando, me descobrindo nos outros. Quero dançar sem culpa. Quero poder voltar a abraçar meus velhos pais sem medo de os contaminar.

A maior invenção da Humanidade não foi a roda nem o fogo. Não foi o futebol, a feijoada, o samba, o xadrez, a literatura, sequer a internet. A maior invenção da Humanidade, querido 2021, foi o abraço. Olho para trás e vejo a primeira mãe, acolhendo nos braços o filho pequeno. O nosso pai primordial apertando contra o peito forte (e peludo) a mulher amada; dois amigos se consolando numa armadura de afeto. Depois desses primeiros abraços, alguma coisa mudou para sempre. O mundo continuou perigoso, sim, o mundo será sempre perigoso, mas passamos a ter o conforto de um território inviolável. Foi o abraço que fundou a civilização.
José Eduardo Agualusa

Pensamento do Dia

 


Retrospectivas

Retrospectivas de fim de ano servem para passar o passado a limpo e organizar nossas lembranças, que, sem elas, seriam histórias sem nexo. O retrospectivista mais desatento da História foi Luís XVI, que, na véspera da Revolução Francesa, escreveu no seu diário: “Tudo calmo, nenhuma novidade no reino”. A tradição de recapitular os principais acontecimentos do ano teria começado no ano 1, quando um viajante no deserto anotou no seu caderno de viagem a presença daquela estranha estrela no céu da Judeia, brilhando mais do que as outras, como que mostrando um caminho, e disse “Epa”.

No jornalismo, uma retrospectiva de fim de ano é obrigatória e fácil de fazer. Basta juntar fatos e feitos que se destacaram durante o ano e pronto. O ano de 2020, que termina hoje, esteve cheio de notícias destacáveis, como todos os anos. É só reuni-las e teremos um típico ano com seus altos e baixos, esperando sua inclusão na retrospectiva. Como todos os anos. Certo?



Você deve estar brincando com os pobres autores de retrospectivas e com a humanidade em geral. Nenhum outro ano na nossa História foi tão diferente dos outros quanto 2020. Nenhuma outra retrospectiva foi — e continua sendo —tão inverossímil. Um vírus mal-intencionado surgiu não se sabe de onde decidido a acabar conosco e, mesmo se não conseguir, a alterar a vida sobre a Terra e a relação entre as pessoas de maneira inédita, com efeitos imprevisíveis no futuro de cada um.

Retrospectivas por vir terão que recorrer à ficção ou ao delírio para contar como foram 2020 e seus desdobramentos. Elas podem muito bem ser sobre a guerra da vacina que fatalmente acontecerá em poucos anos, ricos contra pobres lutando pela sobrevivência.

Prevê-se que retrospectivas do futuro se ocuparão do comportamento de jovens, em 2020 e depois, que desafiaram as recomendações de como enfrentar o vírus assassino e continuaram fazendo festas sem qualquer proteção, sugerindo que o vírus, além de todos os seus crimes, criará uma geração de desinformados, de alienados ou de suicidas.

Bolsonaro, 'personalidade do ano' do crime organizado e da corrupção

Jair Bolsonaro foi eleito a “Personalidade do ano” por seu papel na promoção do crime organizado e da corrupção, segundo o Organized Crime and Corruption Reporting Project (Projeto de Reportagem de Crime Organizado e Corrupção) – um dos maiores consórcios de jornalismo investigativo do mundo.

Eleito como candidato anticorrupção, Bolsonaro se “cercou de figuras corruptas, usou propaganda para promover sua agenda populista, minou o sistema de justiça e travou uma guerra destrutiva contra a Amazônia”, diz a premiação.

O presidente brasileiro chamou atenção por sua hipocrisia, superando fortes concorrentes, como o presidente americano Donald Trump, o turco Recep Erdogan e o oligarca ucraniano Ihor Kolomoisky, que integraram a lista de finalistas.

Vladimir Putin, Nicolás Maduro e Rodrigo Duterte figuram entre os ‘vencedores’ de anos passados.

Segundo Louise Shelley, diretora do Centro Transnacional de Crime e Corrupção (TraCCC) da George Mason University, que participou do painel do prêmio, “todos são populistas causando grandes danos aos seus países, regiões e ao mundo”.

Vacina antidesfaçatez

Oportunidades desperdiçadas para controlar a disseminação da Covid-19 em 2020 serão transferidas, com acréscimo de dificuldades, para o próximo ano. Históricas experiências do Brasil — desde as campanhas contra a febre amarela, DST/aids, dengue, chicungunha e zica — foram substituídas por charlatanismo, ameaças à Organização Mundial da Saúde e descuido proposital com a organização da prevenção, da vigilância de casos e do atendimento adequado a doentes. Desprezo pelas recomendações científicas, corte de recursos para pesquisa, presença irrelevante ou aliada automaticamente aos países ricos nos debates internacionais sobre o acesso universal ao conhecimento e inovações tecnológicas nos impediram de compartilhar plenamente o legado de 2020: ampla utilização de intervenções não farmacológicas para eliminar a transmissão de uma doença respiratória e produção rápida de testes e vacinas.


Em 2021, estaremos diante de ameaças sanitárias não superadas, somadas a eventuais viroses emergentes com potencial de transmissão global, e das visíveis e grandes falhas do sistema público de saúde. Necessitamos de uma infraestrutura de saúde pública moderna e do restabelecimento de uma gestão unificada da saúde. A garantia de suprimentos estratégicos, como equipamentos de proteção individual e testes, e da integração do país nas redes mundiais de pesquisa para restabelecer a gestão da pandemia é uma atribuição de âmbito nacional. Critérios padronizados e transparentes para a aprovação e alocação de recursos orçamentários — incluindo compras e produção de vacinas e a garantia de assistência para casos graves — são medidas objetivas para o enfrentamento de fenômenos que não respeitam limites administrativos.

Cada sociedade tem uma faixa, maior ou menor, de fanáticos, de pessoas que falam e agem sem considerar consequências nefastas de suas atitudes. No transcorrer do ano, a dose de dissimulação e irresponsabilidade foi excessiva e constante. O presidente Bolsonaro assinou a Medida Provisória 1.015, em 17 de dezembro, prevendo o gasto de R$ 20 bilhões com a vacinação, cuja justificativa técnica baseia-se no “cumprimento do dever do Estado de garantir a todos o direito à saúde” e no contato (memorandos de entendimento) com “empresas desenvolvedoras”. Poucos dias depois, declarou não aceitar pressão, não ter pressa e que “os interessados em vender para a gente” devem se apresentar.

O ministro da Economia, no fim de outubro, cometeu um erro crasso ao afirmar a diminuição da pandemia e a retomada da economia. Dois meses depois, o mandatário — que não prorrogou o auxílio emergencial no contexto de aumento do desemprego e de pessoas vivendo em situação de pobreza — disse que só a vacinação “em massa” pode sustentar a recuperação econômica.

Ora tem, ora não tem pandemia; ora a saúde é direito, ora é uma coisa que se compra se alguém quiser vender. O Poder Executivo federal mente descaradamente. Está mais que comprovada a indisposição de ocupantes de cargos estratégicos para resolver a crise sanitária. A Presidência da República e seus ministérios se recusam a processar democraticamente divergências e conflitos. Um quadro institucional incapacitado para diferenciar verdade, ou pelo menos verossimilhança, da falsidade requer atenção urgente de órgãos legislativos, judiciários, estados e prefeituras. Constata-se uma tendência assustadora de condenar idosos, trabalhadores de baixa renda, negros e indígenas à categoria de semimortos. Divergências entre quem considera que as políticas implementadas foram instáveis e ineficazes e os que as avaliam como excelentes podem ser julgadas, em 2021, pelo confronto com princípios básicos, como o direito à saúde e à vida. A administração de interesses, valores e ambições diferenciados requer profundo respeito às esperanças por justiça.

Um SUS grande, potente, efetivamente universal e de qualidade não é um procedimento eletivo ou substitutivo, um estepe para usar quando fura o auxílio pecuniário e se apela para a vacina. É essencial para que nos tornemos perene e progressivamente mais iguais.

Obscurantismo na luz

“Casa Grande e Senzala” é uma das mais substanciais obras iluminadoras do passado, mas obscurece ao dar a ideia de que o Brasil é uma democracia racial. Quando publicado, fazia menos de 50 anos da Lei Áurea, depois de mais de três séculos de escravidão. Mesmo assim, sugere que a relação entre senhores e escravos, especialmente com escravas, indicaria falta de racismo, apesar da exploração brutal contra eles.

No caso das relações sexuais tratava-se de ato de violência, não gesto de tolerância. Apesar dessa violência ter mestiçado a cor de nossa gente, ela era produto do machismo, da supremacia branca e do poder escravocrata. Ela não quebraria o racismo porque a fábrica do racismo não está na genética que mestiça a pele, mas na educação que forma a mente: tolerante ou racista, conforme os ensinamentos. Não é a cama, é a escola que constrói a democracia racial.

Apesar de seu texto genial que ilumina muito do nosso passado, “Casa Grande e Senzala” obscureceu o papel da educação na construção do Brasil que somos, porque não analisa a formação da mente escravocrata por falta de educação para os escravos e educação preconceituosa para os senhores. Ausência de educação para uns e promoção da ideia de supremacia branca para outros.



Gilberto Freyre não é o único que obscurece ao iluminar. Sergio Buarque de Hollanda escreveu um livro iluminador das Raízes Brasileiras, mas obscureceu nossa realidade, mesmo sem ter a intenção, por dar origem ao estereótipo do “homem cordial”. O homem brasileiro pode ser informal, simpático, divertido, mas se fosse cordial não aceitaria a brutalidade que jorra por todos os poros de nossa sociedade. Sergio Buarque de Hollanda formulou o conceito de “homem cordial” para indicar a aceitação das maldades sem revolta política; não queria, mas obscureceu nossa realidade, ao dar origem ao falso estereótipo de que somos plenos de cordialidade e não de aceitação e conivência com a maldade.

Por quase toda nossa história, o brasileiro branco praticou a maldade da escravidão. Depois da Abolição, continuamos campeões de desigualdade, de analfabetismo, exclusão social, violência, destruição de florestas e genocídio contra povos indígenas; implantamos um sistema de apartação, mas acreditamos ter índole cordial. Isto faz com que nossos intelectuais, poetas, músicos e escritores de ficção raramente manifestem horror diante de nossa realidade. Muitas vezes glamourizam a pobreza e a desigualdade. Castro Alves é uma das exceções.

Poucos de nossos intelectuais foram tão iluminadores como o grande Celso Furtado, com diversos de seus livros, especialmente “Formação Econômica do Brasil”. Além de iluminar o passado, inspirou o futuro com propostas para romper as amarras do atraso e promover o desenvolvimento econômico do Brasil. Furtado avançou no papel do progresso tecnológico, da criatividade e da cultura na indução ao desenvolvimento, mas, ao concentrar sua interpretação na economia, teve reduzida a importância da educação de base universal como vetor do progresso ou causa do atraso.

Os intérpretes da nossa formação – uma das exceções é Darcy Ribeiro - ajudaram a alienar a consciência nacional da importância da educação como fator de progresso. Esta é uma característica dos intérpretes brasileiros e também dos latino-americanos. Eduardo Galeano formulou a formidável metáfora das “veias abertas” para explicar o atraso latino-americano, devido ao saque imperialista de nossas riquezas materiais, obscurecendo que nosso atraso decorre sobretudo dos “neurônios tapados”, por falta de cuidados educacionais por opção de nossos dirigentes, de direita ou de esquerda, nestes 200 anos de independência.

Com a obra “Dependência e Desenvolvimento na América Latina”, Fernando Henrique Cardoso deu contribuição iluminadora ao identificar a dependência econômica como uma das causas de nosso atraso, mas reduziu a culpa de nossa elite dirigente e não deu importância à falta de qualidade e de equidade na educação de base. Tampouco que a falha foi nossa e não de nações estrangeiras. Stephen Zweig, no livro “Brasil: País do futuro” iluminou nosso potencial, mas passou a ideia de que bastava esperar. O progresso chegaria sem esforço.

Nossos textos básicos precisam ser conhecidos e respeitados pelo que iluminaram do nosso passado. Mas, para que iluminem o futuro, é preciso saber o que eles obscurecem: um país racista, violento, desigual e atrasado por não cuidar da educação de sua população.

Paisagem brasileira

 


O vírus também ataca os direitos humanos

Michelle Bachelet já alertou. A alta-comissária de Direitos Humanos da ONU identificou o perigo em abril e acaba de insistir no final deste ano: a crise sanitária desatada pela covid-19 pode acabar infectando o organismo da democracia e das liberdades. E não há vacina contra esse vírus, “exceto mais direitos humanos”, como disse a ex-presidenta chilena. Desde que a pandemia foi declarada, em março passado, deixando quase dois milhões de mortos, aproximadamente 82 milhões de contagiados e o planeta em polvorosa, alguns regimes autoritários aproveitaram o medo de suas sociedades para transformar as máscaras em focinheiras e o confinamento em estados de exceção encobertos.

Vários especialistas em direitos humanos consultados por este jornal salientam que entre os males trazidos pela pandemia, além da crise sanitária e econômica, será preciso incluir um retrocesso das liberdades, inclusive nas democracias. O último estudo do Idea (Instituto para a Democracia e a Assistência Eleitoral, na sigla em inglês), um organismo intergovernamental com sede na Suécia e em parte financiado pela União Europeia, informa que quase a metade dos países democráticos (43%) e a maioria dos não democráticos (90%) adotaram medidas “ilegais, desproporcionais, indefinidas ou desnecessárias” desde o início da pandemia. Em seu relatório sobre o estado da democracia no mundo, o organismo enquadra 162 dos 195 em uma das três seguintes categorias: democracias (99), regimes híbridos (33) e regimes autoritários (30). Os critérios para isso são parâmetros como a existência de eleições confiáveis, o respeito aos direitos humanos e a igualdade entre os sexos.

O relatório afirma que neste ano houve uma erosão do Estado de direito sem igual nas últimas décadas. Por exemplo, em termos de liberdade de expressão, uma das restrições mais comuns, pela primeira vez desde 1975 há mais países em retrocesso do que em ascensão, uma tendência que já vinha sendo vista desde 2014. “Os elementos mais preocupantes se dão no que chamamos de regimes híbridos, como a Rússia, Turquia, Marrocos, Afeganistão e Paquistão, e nas democracias frágeis ou de baixa qualidade, como Polônia, Hungria, Índia, Filipinas e Sérvia, onde as ações do Executivo estão minando os princípios democráticos, uma tendência que, se não for revertida, poderia ter chegado para ficar”, afirma Alberto Fernández, um dos autores do relatório do Ideia, falando por telefone de Estocolmo.

“Embora ainda seja cedo para calibrar o impacto da pandemia e seja complicado tirar conclusões, foram aprovadas medidas que poderiam se manter no tempo, como as restrições à liberdade de imprensa ou de informação, que inclusive se tornaram leis em alguns países, enquanto outras, como as limitações de movimento ou de reunião, ninguém espera razoavelmente que se mantenham além da emergência sanitária”, acrescenta Fernández. Os Estados que se orgulham de terem enfrentado o vírus de maneira mais eficaz e com menor perda de vidas, segundo o cômputo da Universidade Johns Hopkins, conseguiram isso, argumenta o estudo, à custa de ignorar os direitos humanos, como ocorreu por exemplo na China, onde os médicos que alertaram para os primeiros sinais de epidemia em Wuhan foram silenciados e muitos jornalistas estrangeiros foram expulsos, ou em Cuba.

Em países como Islândia, Finlândia, Nova Zelândia, Noruega, Coreia do Sul, Taiwan e Uruguai, as medidas adotadas contra o vírus, segundo o relatório, em geral não violaram os direitos fundamentais, embora em muitas partes da Europa e nos Estados Unidos, com uma grande tradição democrática, os decibéis da polarização política tenham subido. “Reagiram de maneira eficaz à pandemia sem solapar as liberdades”, diz Fernández. Não foi assim, porém, na Hungria, Polônia, Ucrânia, Rússia, Eslováquia, Eslovênia, Belarus e Azerbaijão, onde a covid-19 serviu como pretexto para cercear liberdades básicas e para adiar eleições – uma medida eventualmente justificada pelo risco de contágio, mas muito bem aproveitada pelos regimes não democráticos ou autoritários, já que, das 185 votações previstas neste ano até outubro, 93 haviam sido adiadas, e só 92 aconteceram de fato – ou para silenciar críticos, quando não diretamente para esmagar a oposição, como em Bangladesh ou no Camboja.

Em outras zonas do mundo, como a América Latina e a África ―que tem o pior comportamento, com 76% de países com as liberdades em semáforo vermelho, só atrás do Oriente Médio―, a crise sanitária agravou a corrupção, a fragilidade das instituições, a pobreza, a desigualdade e a exclusão dos grupos mais vulneráveis, entre eles as mulheres, os imigrantes e as minorias raciais. Além disso, em oito países, entre eles o México e o Chile, coube às Forças Armadas controlar a pandemia e a segurança. Regimes como os da Venezuela, Cuba e Nicarágua se tornaram ainda mais autoritários, segundo o documento.

“Desde que a pandemia estourou, a democracia e os direitos humanos se deterioraram em 80 países”, adverte por email Amy Slipowitz, coautora do último estudo da organização Freedom House, intitulado Democracia sob confinamento. Segundo ela, “esta deterioração é particularmente preocupante nas democracias incipientes e nos Estados altamente repressivos”. Segundo o relatório dessa organização norte-americana, feito com a participação de mais de 400 jornalistas, trabalhadores sociais, ativistas e especialistas sobre 192 países, a lista inclui tanto ditaduras como democracias que rebaixaram os seus padrões.

Para a Freedom House, a pandemia acentuou a desconfiança na democracia, uma tendência latente que se exacerbou a partir da Grande Recessão de 2008. Embora a emergência sanitária diminua com a difusão de vacinas nos próximos anos, Slipowitz acredita que esse padrão será mantido. Ou seja, que continuará a propagação das chamadas fake news ou desinformação, tão bem manejadas neste ano por presidentes como Donald Trump e Jair Bolsonaro; será mais fácil para os Governos autoritários controlarem a população alimentando o pânico, ou crescerá o controle dos Estados através da videovigilância, como ilustra o caso da China. “No momento, todos os Governos deveriam assegurar-se de que as medidas de emergência são proporcionais e temporárias. Também deveriam garantir que a população tenha acesso a informação confiável sobre a pandemia, permitir a realização de eleições livres e confiáveis com medidas sanitárias adequadas, identificar e punir as violações de direitos humanos e combater a corrupção”, conclui Slipowitz.

O ano que não vai acabar

Vencemos os últimos dez meses dizendo cobras e lagartos com 2020. Repetimos aos quatro ventos que este tem sido o pior ano da história, o das nossas maiores angústias. Tudo por conta da pandemia. Mas, olha quem finalmente está se despedindo e, em vez de dizermos adeus Ano Velho, insistimos no desdém: já vai tarde, vaza!

Neste ano carregamos a sensação de que perdemos os vínculos com o mundo. Mas se a nossa medida para julgarmos 2020 for a pandemia, é preciso revermos os conceitos. Sabemos que, enquanto o imunizante não for liberado, a pandemia persistirá; irá muito além das festas de fim de ano, continuará por alguns meses em 2021.

Ou será que 2020 ficará como o ano que não se acabou? O fato é que acusamos tudo pelas nossas dores, mas nos esquecemos de falar das nossas responsabilidades. Sem querer ser a de palmatória do mundo, muitas pessoas parecem não ter consciência da gravidade do que estamos vivendo e acreditam-se invulneráveis.



Uma frase de Nietzsche diz algo como “sabemos que sofremos, mas não por que sofremos”. Sem fazermos a nossa parte, 2020 vai embora, mas continuaremos vivendo o pior ano, o pior mês, o pior dia, a pior hora.

Diga-se o que quiser de 2020. Mas, é inegável, porém, que foi o ano em que recebemos muitos aprendizados para o crescimento humano. Nunca convivemos tão de perto e coletivamente com os conceitos e a importância dos sentimentos nobres.

A pandemia nos obrigou a revisitar nossa humanidade. O primeiro sentimento foi o da coragem. Se chegamos até aqui, somos sobreviventes de momentos que pareciam não ter saída. Tivemos e temos a coragem de enfrentarmos o que nos restava viver dessa dor.

Muitos de nós nem percebeu que neste ano tão dramático a generosidade esteve em alta. Quem é realmente grande, foi generoso; ofereceu aos mais vulneráveis o que lhes faltava. Aprendemos que compaixão pode até ser uma palavra de aparência cafona, mas nunca foi tão essencial. Seu apelido é empatia.

Os tolerantes acumularam conhecimento. E, no movimento contrário, os intolerantes ficaram expostos. Aprendemos que a temperança não é a mesma coisa que privação da alegria e do prazer. É viver com moderação.

Finalmente, foi um ano em que pudemos sentir na pele que a solidariedade será sempre maior que o egoísmo e que o amor é quem continua a comandar as nossas relações. Ah, sim, a gratidão é um prolongamento da alegria de quem recebeu solidariedade.

Quem aprendeu com a dor, plantou uma árvore. Do contrário, o sofrimento com a pandemia terá sido uma experiência inútil que nos acompanhará em 2021 e por toda a vida. Feliz Ano Novo!

Ser do bem não é pra qualquer um


Acima de tudo, devemos cuidar, não de parecer, mas de ser homem de bem
Sócrates

A vacina acima de todos

A ironia demolidora de Oscar Wilde pregava: “Não sou suficientemente jovem para saber tudo”. O meu caso é cruel: sou suficientemente velho para esquecer tudo. Acrescento um “quase” para não parecer autoflagelação.

Curiosamente, uma das primeiras coisas que aprendi e não esqueci foi o valor das vacinas para a saúde das pessoas.

Nascido e criado na minha querida Vitória de Santo Antão (1946), atrevessei a precariedade da época, a partir da expectativa de vida ao nascer entre 45,5 e 48 anos. Minha família vivia dos modestos recursos de um jovem e principiante dentista. Enquanto isso, minha mãe tomava conta da economia (etimologicamente “regra da casa” por isso elas são as maiores “ministras da fazenda” do mundo), segurando custos, reciclando roupas, livros, cadernos, desperdício zero, receita e despesa equilibradas.

Quando olho pelo retrovisor, compreendo que eles construíram sólidos pilares de uma educação para a vida.

Certa vez, fui ao comércio com meu pai e, ao passar pela farmácia, cumprimentou Dr. Arnaud Gurgel, a quem dirigiu uma pergunta, no mínimo, insólita: “Gurgel, quando chega uma vacina contra queda?” O farmacêutico abriu um largo sorriso, confirmando a fama de gozador de meu pai e, antes de qualquer resposta, veio a justificativa “meus filhos, Gurgel, já caíram do muro, brincando de equilibrista, da furtiva visita à mangueira da vizinha, haja topada, braço quebrado”. “Coisa de menino, Krause – Dr. Gurgel era cerimonioso, não usava apelidos – a medicina vai avançar, mas vacina para queda é coisa de sua cabeça”.

Perguntei na bucha: “Pai, o que é vacina?” “Remédio que evita doenças, outros remédios e protege a saúde de todo mundo. O Governo paga”.

Graças a Deus, aos avanços da ciência médica e à cultura familiar da prevenção faz tempo que estou na prorrogação, e, ainda mais agora, sob a ameaça real de uma Pandemia, tragédia de proporções globais cujas consequências materiais e emocionais rivalizam com os efeitos das guerras mundiais.

Mais uma vez a Ciência vem se mostrando ágil e eficaz; a Política, revelando o lado sombrio de lideranças que coloca interesses imediatos e pessoais no lugar sagrado do interesse público e abraça a irracionalidade em troca da oportunidade de construir elos de união e solidariedade nacional e internacional.

Comprovada a eficácia, respeitável público tome a vacina! e, juntos, roguemos a Papai Noel que faça chegar aos sem sapatos o presente da dose que salva.

A vacina acima de todos!

Gustavo Krause

Mensageiro da morte

O presidente da República gosta da tortura. Ele a defende, tem prazer em falar dela e fustigar as vítimas. Foi o que Jair Bolsonaro fez ontem, mais uma vez, com a ex-presidente Dilma Rousseff. Ela foi brutalmente torturada aos 22 anos, sobreviveu e construiu sua vida. E agora, aos 73 anos, ouve do chefe de governo do país palavras de deboche e ironia sobre o seu sofrimento. É desumano e, além disso, é crime.

Bolsonaro comete crimes reiterados na cara do país e das instituições. Tortura é crime hediondo e ele tem prazer em falar disso, sempre tentando pôr em dúvida a palavra da vítima. Ele exalta torturadores e os tem por heróis. Bolsonaro defende a ditadura e já foi para a rua, como presidente da República, defender o fechamento do Congresso e do Supremo.

O que faz o país? Nada. Ele permanece presidente e continua usufruindo da sua extensa impunidade. Ele não foi cassado, em 2016, quando no plenário da Câmara elogiou o torturador a quem chamou de o “terror de Dilma Rousseff”. Deveria ter sido. Foi o que eu escrevi na época.

É crime. Mas também é sadismo. O prazer de sentir a dor do outro, de lembrar ao outro o seu sofrimento em meio a gargalhadas. Dilma o chamou de sociopata. E ele é. Somos governados por um sociopata. Dilma o chamou de fascista. E ele é. Dilma o chamou de “cúmplice da tortura e da morte”. E é o que ele tem sido ao longo de sua vida e de sua presidência.



O Brasil quer olhar o futuro. Um país com tantos desafios e dores precisa olhar o futuro. Bolsonaro está preso a um passado cujo pior lado ele se compraz em lembrar. Ele não elogia a ditadura militar por um eventual acerto econômico ou obra de engenharia. Ele gosta é da brutalidade com que eram tratados os que se opunham a ela. É isso que Bolsonaro faz questão de lembrar.

Essa sociopatia é a mesma que ele tem demonstrado ao longo de toda essa pandemia. Ele brinca com a tortura dos anos 1970, da mesma forma como nunca demonstrou solidariedade a quem estava perdendo entes queridos para o coronavírus. Expôs ao país durante o ano inteiro as palavras da sua perversidade. O “e daí?”, o “eu não sou coveiro”, o “todos vão morrer um dia”. Foram inúmeras as demonstrações de desprezo pela vida humana.

São quase 200 mil mortos ao fim de nove meses. Doloroso tempo. Tempo de temer a morte, de se preocupar com parentes adoecidos, de se proteger do vírus, de tentar respirar. Tempo de médicos e enfermeiros lutarem sem trégua num esforço épico pela vida humana. Tempo de cientistas mergulharem em laboratório para conseguir em período recorde vacinas contra o mal.

O presidente do Brasil continuou no seu achincalhe. Sabotou todas as orientações médicas, ofendeu quem se protegia, promoveu a disseminação do vírus, espalhou mentiras, estimulou invasão de hospitais, tentou manipular estatísticas, aparelhou o Ministério da Saúde e a Anvisa. Agora, depois de longo padecimento, os brasileiros veem cidadãos de inúmeros países, inclusive vizinhos nossos, serem vacinados. Enquanto isso o presidente diz que “não dá bola” para vacina.

O Brasil está chegando ao final de um ano em que o mundo inteiro viveu uma assombração. Nós vivemos duas. Como todos os outros países, tivemos que lutar contra um inimigo invisível que tentava tirar de suas presas o ar dos pulmões. Mas tivemos também um presidente que tripudiou sobre a dor do país como um verdadeiro mensageiro da morte.

Dilma, a jovem que foi torturada e presa por mais de dois anos, chegou ao governo em 2011 e virou comandante em chefe das Forças Armadas. Nunca usou o cargo para perseguir os militares. A Comissão da Verdade foi uma exigência do país, e o que ela buscou foi a informação sonegada por tantas décadas. Outros países fizeram antes essa procura e foram mais duros com os torturadores. Dilma entregou aos brasileiros a Lei de Acesso à Informação, uma importante arma da cidadania. Todos os que leem esta coluna sabem o quanto divergi de muitas decisões do governo dela. Concordar ou discordar das administrações é o cotidiano do jornalista. O fundamental na vida, contudo, são os valores. O sentimento de empatia, de solidariedade, de compaixão, Bolsonaro não tem. E isso ele prova quando fala sobre o passado da ditadura ou sobre o presente da pandemia.