Em 2021, estaremos diante de ameaças sanitárias não superadas, somadas a eventuais viroses emergentes com potencial de transmissão global, e das visíveis e grandes falhas do sistema público de saúde. Necessitamos de uma infraestrutura de saúde pública moderna e do restabelecimento de uma gestão unificada da saúde. A garantia de suprimentos estratégicos, como equipamentos de proteção individual e testes, e da integração do país nas redes mundiais de pesquisa para restabelecer a gestão da pandemia é uma atribuição de âmbito nacional. Critérios padronizados e transparentes para a aprovação e alocação de recursos orçamentários — incluindo compras e produção de vacinas e a garantia de assistência para casos graves — são medidas objetivas para o enfrentamento de fenômenos que não respeitam limites administrativos.
Cada sociedade tem uma faixa, maior ou menor, de fanáticos, de pessoas que falam e agem sem considerar consequências nefastas de suas atitudes. No transcorrer do ano, a dose de dissimulação e irresponsabilidade foi excessiva e constante. O presidente Bolsonaro assinou a Medida Provisória 1.015, em 17 de dezembro, prevendo o gasto de R$ 20 bilhões com a vacinação, cuja justificativa técnica baseia-se no “cumprimento do dever do Estado de garantir a todos o direito à saúde” e no contato (memorandos de entendimento) com “empresas desenvolvedoras”. Poucos dias depois, declarou não aceitar pressão, não ter pressa e que “os interessados em vender para a gente” devem se apresentar.
O ministro da Economia, no fim de outubro, cometeu um erro crasso ao afirmar a diminuição da pandemia e a retomada da economia. Dois meses depois, o mandatário — que não prorrogou o auxílio emergencial no contexto de aumento do desemprego e de pessoas vivendo em situação de pobreza — disse que só a vacinação “em massa” pode sustentar a recuperação econômica.
Ora tem, ora não tem pandemia; ora a saúde é direito, ora é uma coisa que se compra se alguém quiser vender. O Poder Executivo federal mente descaradamente. Está mais que comprovada a indisposição de ocupantes de cargos estratégicos para resolver a crise sanitária. A Presidência da República e seus ministérios se recusam a processar democraticamente divergências e conflitos. Um quadro institucional incapacitado para diferenciar verdade, ou pelo menos verossimilhança, da falsidade requer atenção urgente de órgãos legislativos, judiciários, estados e prefeituras. Constata-se uma tendência assustadora de condenar idosos, trabalhadores de baixa renda, negros e indígenas à categoria de semimortos. Divergências entre quem considera que as políticas implementadas foram instáveis e ineficazes e os que as avaliam como excelentes podem ser julgadas, em 2021, pelo confronto com princípios básicos, como o direito à saúde e à vida. A administração de interesses, valores e ambições diferenciados requer profundo respeito às esperanças por justiça.
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