quinta-feira, 15 de setembro de 2022

Pensamento do Dia

 


Incomunicável

O saudoso comunicador da TV Abelardo Chacrinha Barbosa, especialista em cunhar bordões, adorava dizer que “estava ali para confundir, não para explicar”. Sem saber ele profetizou nosso presente de hoje. E olha que naquela época o celular ainda não havia aprisionado corações e mentes como agora. Nos nossos dias até a respiração é digitalizada. No metrô, nas ruas, na bicicleta, todos olham para a telinha. É mais fácil você encontrar alguém pelas redes sociais mesmo que ela esteja passando por você no mesmo momento, na rua.

Contemplação é uma palavra que saiu de circulação, assim como várias outras que o povo deixou de falar e sobretudo, de escrever. É claro que para escrever você precisa ler e a linguagem quer a internet nos trouxe e estabelece como base é a linguagem cifrada, resumida, abreviada. Lemos pouco, todos sabemos e mesmo no celular, as mensagens podem ser faladas e não escritas. A preguiça e a falta de hábito em escrever transformou a mensagem de áudio na maneira mais comum de se comunicar. A língua se simplifica, se empobrece, e comunica através do básico, sem espaço para a interpretação ou para a abstração.

Pois é, abstração. Chegamos ao núcleo do problema. Abstração e abreviação não costumam viver bem juntas. Uma requer a abertura da mente, a colocação no espaço e no tempo, a permissão para a mente viajar e elaborar. A outra é a jato e tudo que é a jato pode ser perigoso. Um texto escrito no celular tem tantas abreviações e simplificações que fica difícil de entender. O texto falado é repetitivo, ilustra sem abstrair o que está sendo dito. Repete frases e diálogos que retratam um fato, sem a conclusão da interpretação pessoal e da abstração que se resume a um conceito criado. É mais rico e facilita a expressão.


Estou falando de coisas que a juventude viciada na telinha nem tem ideia do que seja. A leitura é fundamental. Começa nos livros, nos jornais e revistas, nos computadores, celulares e tvs e mesmo cifrada precisa alimentar a imaginação. Não pode só passar a informação abreviada que interessa. Não pode também só repetir o que já vinha sendo dito nas redes e, principalmente, não pode alimentar as mentiras.

Essa simplificação favorece o não aprofundamento. Fulano disse isso. Ok, mas de onde ele tirou? Não interessa. O que interessa é a rede de mentiras que se estabelece com um intuito muito claro. Parafraseando o Chacrinha, essa gente está ai para confundir e não para informar.

Um país que tem mais celulares que gente poderia até se dar bem se houvesse um projeto de desenvolvimento social usando o poder do aparelho no bom sentido. Mas de uns tempos pra cá o que vemos é um país cada vez mais alienado, mais conduzível, mais influenciável que chega ao cúmulo de se dizer imbrochável. A maioria dos apoiadores do presidente concorda sem saber o que significa. Essa virilidade tóxica se estabelece porque não se pensa sobre ela. Não se abstrai. Não abstraímos sobre a barbárie que vivemos e o estrago que ela pode causar.

Mas ainda dá tempo. Precisamos voltar para a escola, abrir nossos livros, trocar ideias e pensar, refletir, mesmo que o pensamento vá sem direção, sem destino, apenas solto no ar. Já experimentou? É muito bom.

O macho fascista

Itália, 1938. “O homem fascista é pai, marido e soldado.” Esse slogan publicitário circula como propaganda oficial de Mussolini. A frase estampa pôsteres e outros materiais do regime.

Um desses pequenos cartazes pode ser visto numa cena do filme Um Dia Muito Especial (Una Giornata Particolare), de Ettore Scola. A produção de Carlo Ponti, lançada em 1977, narra o encontro improvável de um radialista (Marcello Mastroianni) e de uma dona de casa (Sophia Loren) que, no domingo de 8 de maio de 1938, ficam sozinhos num prédio de apartamentos em Roma. Naquele dia, Hitler e alguns de seus ministros visitam a cidade. Todas as outras pessoas que moram no edifício, vestidas com suas melhores roupas, foram aplaudir o Führer e o Duce, que discursam diante do Monumento Nacional a Victor Manuel II. O radialista não se sente parte dos festejos, uma vez que, além de intelectual, é gay (não é pai, nem marido, nem soldado). A dona de casa tem que lavar roupas e, aos poucos, percebe que o fascismo só lhe reserva um papel subalterno. Ela deseja desejar outra vida.


Brasil, 2022. Aqui não existe fascismo propriamente dito, mas traços do fascismo estão em toda parte. A misoginia autoritária é um desses traços. Falocentrismo armado. O ódio aos intelectuais é outra peculiaridade da mesma doutrina, assim como a repressão às artes, o desprezo pelas universidades e os ataques incessantes contra a imprensa.

Qualquer cidadão que adote a profissão de jornalista se vê sujeito a perseguições e intimidações. Se esse cidadão for uma cidadã, seus riscos são redobrados. A mentalidade instalada no poder abomina repórteres com a mesma fúria que oprime a liberdade feminina. Autoridades do governo federal e seus apoiadores dirigem insultos às jornalistas mulheres, em ofensas repletas de insinuações de cunho sexual. Para eles, a condição feminina é um handicap: na mulher, o desejo é doença, fraqueza e déficit de virtude, ao passo que, no homem, o desejo é vigor, coragem e força. Para o macho fascista, a mulher que deseja e é livre padece de alguma demência contagiosa. Deve ser combatida, desqualificada, achincalhada – e queimada, como bruxa. Nada o apavora mais que uma cidadã que pense por si e não se dobre. Esse é o sujeito que bate em mulher, se não com as mãos, com palavras ultrajantes.

O homem fascista, o que é? Um mau pai, um marido insensível e um soldado covarde. Quando se aventura na política, é uma fraude. Machista.

O Brasil não é mais o mesmo

Faltando três semanas para o primeiro turno das eleições, deixando um pouco de lado a dança das pesquisas, podemos perceber que mudanças políticas importantes estão tomando corpo na nossa realidade política. Embora a disputa, como quase sempre ocorre, esteja polarizada entre personalidades, é muito difícil compreender o que estamos vivendo se nos ativermos apenas aos perfis dos personagens. Estas eleições transcendem, e muito, a estreiteza dos dois candidatos principais.


As manifestações do dia 7 de setembro foram impressionantes em termos de espontaneidade e mobilização. Não me lembro de ter visto antes tanta gente na Esplanada em Brasília. Em São Paulo, na avenida Paulista a quantidade de gente reunida foi tão grande quanto a dos maiores eventos políticos ali já realizados. No Rio de Janeiro foi a mesma coisa. Podemos discutir indefinidamente se os eventos foram apropriados para a data, mas o fato político, que não se pode questionar honestamente, é que Bolsonaro é capaz de mobilizar mais gente do que qualquer outro político brasileiro neste momento atual.

As nossas eleições, para dizer a verdade, foram sempre um pouco frias em termos de participação popular. Nunca testemunhei grandes concentrações espontâneas ou comícios que chamassem a atenção. Na verdade, nunca conhecemos eleições duramente polarizadas em que vencer era uma questão existencial, a ponto de cada eleitor se tornar um ativista ou um militante.

Os atos de 7 de setembro revelam a emergência de um sólido movimento conservador, organizado e militante, de abrangência nacional, que se apoia na figura de Bolsonaro, mas não se resume a ele e certamente poderá sobreviver a ele. O que isto tem de importância para o futuro do país é que este movimento não pode ser simplesmente derrotado porque ele reflete realidades humanas e sociais que não se apagam com uma derrota, ou com uma vitória eleitoral. A pluralidade democrática determina que este movimento, suas aspirações e interesses, sejam assimilados e reconhecidos nas políticas de Estado e de governo, sob pena de nos tornarmos uma sociedade dividida e um país paralisado.

Em contraposição à emergência conservadora, é difícil não admitir que as chamadas forças progressistas perderam muito de sua força e do apelo que tiveram no passado. O próprio PT é hoje muito menor do que o Lula. A levar em conta as pesquisas de opinião, o PT está encolhendo em todo o país e está presente nas eleições para Governador em pouquíssimos Estados, na maioria deles relegado a segundo plano. Até onde se pode ver, a candidatura favorita de Lula, apesar da vantagem clara nas pesquisas, não tem grande poder de mobilização popular, parecendo encarnar hoje uma espécie de maioria silenciosa, exatamente o contrário do que sempre foi. Em grande medida ele é o único recurso para derrotar o Bolsonaro, um instrumento de defesa, não um projeto de futuro.

Se este quadro é verdadeiro, o que temos pela frente é um grande desafio. Está ficando claro que o sistema partidário ruiu inteiramente e já não realiza minimamente a mediação política entre a sociedade e o Estado. Um sistema político numa sociedade complexa e cheia de carências não pode se apoiar apenas em personalidades que, por natureza, são efêmeras. Os movimentos, por sua vez, não são substitutos perfeitos dos partidos políticos, porque carecem da organização e da estrutura que são necessárias para a ação política permanente. E as maiorias silenciosas não tem estrutura ou comando para assegurar seu protagonismo.

Continuo convencido de que estamos diante de duas escolhas insatisfatórias. Nenhuma delas reúne as condições para liderar nosso pais para a mudança e o progresso. A política está dividida hoje em lados que não se reconhecem e que, portanto, não podem cooperar entre si.

Nada disto, no entanto é destino. A história é contingente e tudo pode mudar. Este é o Brasil que temos. Antes de mudá-lo precisamos reconhecê-lo e aceitá-lo como ele é. Este sempre será o primeiro passo se quisermos transformá-lo.

Receita para uma guerra civil

Quando a guerra civil começou em Angola, em 1975, eu tinha 15 anos. Vivi aqueles dias com mais euforia do que inquietação. Acreditava, como a maioria dos angolanos, que a guerra era um episódio terrível, mas que depressa passaria, e que depois disso viveríamos dias luminosos num país independente e mais justo.

Lembro-me que dançávamos enquanto os morteiros explodiam, e balas tracejantes riscavam as noites. Os jovens militantes dos diferentes movimentos saíam das festas para fazer a guerra e voltavam ao amanhecer para terminar as cervejas, como se os combates fizessem parte da folia.

Logo a euforia acabou, mas os tiros não. Finalmente, a 22 de fevereiro de 2002, o líder da guerrilha, Jonas Savimbi, foi morto em combate. A bala que o matou foi a última a ser disparada. Contudo, já Angola estava destruída.

Não consigo imaginar pior tragédia para um país do que uma guerra civil. Uma guerra civil começa antes que alguém dispare o primeiro tiro, e as suas consequências prolongam-se décadas para além do último morto.

A receita para uma guerra civil exige, em primeiro lugar, a criação de uma cultura de exclusão. Regra geral, os movimentos em confronto não defendem posições novas. A novidade é a agressividade com que as defendem e a convicção de que não existe conciliação possível entre os diferentes projetos.


Amigos de toda uma vida zangam-se. Famílias separam-se. As mães proíbem os filhos de conversar sobre política à hora das refeições. Emergem líderes messiânicos, com um discurso de ódio, eventualmente exibindo armas de fogo, enquanto exploram velhos rancores partidários e fraturas sociais.

Logo surgem os primeiros assassinatos e atentados com motivação política. O Estado vai-se esboroando e perdendo terreno.

Muitas vezes, a cultura de exclusão, que serve de gatilho à guerra, é importada, obedecendo a interesses ou estratégias de outros países. Foi o que aconteceu em Angola, com os Estados Unidos e a União Soviética a combaterem no terreno através não só dos movimentos angolanos, mas também de tropas sul-africanas, cubanas e zairenses, bem como de mercenários portugueses, ingleses e americanos.

No limite, uma guerra civil pode destruir completamente um país, apagando-o dos mapas, como aconteceu com a Iugoslávia. Viajando pela Sérvia ou pela Croácia anda é possível encontrar pessoas que continuam a reconhecer-se como iugoslavos: “Antes de a guerra começar”, disse-me um desses órfãos, “eu nem sequer sabia que a minha família era sérvia ou que os meus vizinhos eram muçulmanos. Éramos todos iugoslavos, falávamos a mesma língua e tínhamos um destino comum”.

É possível identificar no momento que se vive hoje no Brasil alguns dos ingredientes necessários para o desastre. Em épocas assim, a primeira vítima costuma ser o bom senso.

Quero acreditar, porém, que ainda exista espaço para um diálogo o mais aberto possível, de forma a permitir a convergência de todas as forças políticas e da sociedade civil que defendam a paz e a democracia. Ao longo das próximas semanas assistiremos a um combate entre construtores de pontes e construtores de muros. Pobre Brasil se os construtores de muros ganharem.

O Brasil, um país amado no mundo inteiro pela sua cultura, pela sua alegria e generosidade, não pode permitir que o ódio se alastre e triunfe.

José Eduardo Agualusa (O Globo, 12.10.2018)