quarta-feira, 26 de junho de 2019

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Lobbies à solta

Qual a sua Constituição favorita, leitor? Eu me divido entre a de 1891, a única verdadeiramente laica, e a de 1934. Meu flerte com a Carta varguista, confesso, não tem a mais nobre das motivações. É que ela trazia, entre os direitos e garantias individuais (art. 113), um dispositivo que concedia imunidade tributária para jornalistas.

Sim, é isso mesmo que você leu. O lobby dos jornalistas conseguiu inscrever na Constituição que representantes da classe não precisariam pagar impostos diretos. O mecanismo desaparece na Carta de 1937, mas volta na de 1946. A festa só acabou de verdade em 1964, quando o governo militar fez aprovar uma emenda constitucional que reintroduziu o IR para escribas.


Tudo isso foi para dizer que um bom lobby é essencial para quem pretende andar de carona (“free ride”) à custa da sociedade. Categorias poderosas, como os advogados, insuperáveis nessa matéria, conseguem meter na legislação dispositivos que obrigam o cidadão a utilizar seus serviços mesmo que não desejem. Quem acaba pagando o preço são os grupos mais pobres, menos organizados e que não conseguem inspirar compaixão pública.

Faço essas reflexões porque vivemos um momento em que os lobbies estão a toda, tentando cavar uma regaliazinha na reforma da Previdência, que entra em fase final na Câmara. Não digo que todos os pleitos são injustos. Muitos deles parecem razoáveis, se considerarmos as dificuldades enfrentadas por diversos segmentos sociais.

O problema é que não podemos raciocinar aqui pela lógica das partes. Precisamos pensar antes no todo. A reforma da Previdência extrai sua justificativa moral do fato de propor regras universais, que idealmente igualariam todos os cidadãos, do mais humilde celetista ao mais abonado servidor público. Cada diferenciação que os parlamentares introduzirem, mesmo que isoladamente justa, torna a reforma menos defensável.

Tempo de sonâmbulos

A crise da democracia é o controle do poder político pelo poder financeiro, que é cego, que vê só os interesses imediatos, não tem consciência do destino da humanidade. A prova é a degradação da biosfera, que é evidente, e que vemos na degradação da Amazônia ou na poluição das cidades, por exemplo, mas que é ignorada em detrimento de um benefício imediato. Assim, damo-nos conta de que vivemos em uma época de cegueira e de sonambulismo
Edgar Morin

Era uma vez um governo

O presidente Jair Bolsonaro passou de uma campanha eleitoral, que foi teoricamente encerrada em novembro de 2018, a outra, que teoricamente deveria começar em 2022. É a campanha permanente, sem pontes ou escalas, sem uma paradinha para exercer o governo, por pequena que seja. Um matemático poderia dizer, depois de alguns cálculos, que houve, de interregno, dois meses, neste ano, nos quais Bolsonaro governou: nomeou ministros, tomou posse das gavetas e da caneta, encenou algumas reuniões ministeriais e ouviu preleções de Paulo Guedes, o ministro da Economia. Mas em seguida desfez muito do que havia supostamente feito, desnomeando ministros, assinando decretos espetaculares logo em seguida revogados por contrariarem a Constituição, deixando os conflitos e crises tomarem conta do seu espaço. Uma balbúrdia, desta vez autêntica e visível.

Bolsonaro, nesse período, entrou em conflito com os demais Poderes, desafiou-os, mas enfrentou também, por nada, gente do governo, o seu. Fez o que depois poderia desfazer. É recorde o que já trocou de primeiro e segundo escalão. Decretos e medidas provisórias de que teve que recuar, um bom número. O presidente, à moda Lula, recorre com frequência ao "não sabia", só que, no seu caso, o desconhecimento alegado é das leis, da Constituição e dos princípios que deveriam determinar seus atos como presidente.

Ele não parece ler o que sanciona ou veta. O Palácio trabalha com o fígado e o governo vai sendo tocado pela equipe econômica, cuja produção não se conhece pois só poderá ser revelada após a aprovação da reforma da Previdência. O setor da da infraestrutura também trabalha, mas os investidores não dão as caras. No mais é um blá-blá-blá ideológico sem fim de ministros, aliados, gurus, filhos e quem mais esteja na linha de frente da campanha eleitoral da reeleição.

Que ninguém pense que o eleitorado de Jair Bolsonaro está insatisfeito com sua performance. Ao contrário. Não foi escolhido por ser um expert em políticas públicas, ou na preservação das instituições democráticas.

Ele cultiva com maestria aquele segmento de eleitores que estiveram ao lado dele no primeiro turno, 34,4% do eleitorado brasileiro são seus seguidores do peito. Se perdeu um ou outro pelo caminho, deve ter ganhado outros. Na verdade, quando atua, o faz para cultivar esse grupo do primeiro turno.


O percentual de votação de primeiro turno (o segundo não vale nesta análise porque tem o voto dos sem opção) é uma montanha de votos. Ele cultiva isso de forma sistemática, incansável, ampla, mesmo que crie casos e entre em conflitos com todos. Suas questões são ideológicas. É sobre isso que sabe falar e o que agrada aos seus. Os eleitores se mantem fieis aos sentimentos que ele expressou a e continua a expressar agora, na campanha contínua.

Quando Bolsonaro faz algumas declarações esquisitas, não fica absolutamente diminuído perante seus eleitores. Ao contrário, reforça os laços, a identificação é automática.

"Ao contrário do que muitos têm comentado, a imagem do presidente está preservada ou até mais forte hoje do que estava no momento da sua eleição", assinala o cientista político e sociólogo Antonio Lavareda, um especialista em campanhas e análise de pesquisas, antecipadas ou não. Na última pesquisa XP/ Ipespe, diz Lavareda, presidente do Instituto, Bolsonaro tem 34% de Ótimo/Bom - mesmo percentual do eleitorado total que obteve no primeiro turno. E 46% têm a expectativa de que irá fazer um governo ótimo ou bom no restante do mandato. Mais que os 39,2% que votaram nele no segundo turno".

Para Lavareda, Bolsonaro não é produto do marketing ou uma equipe de propaganda, só. Esses ajudam, com sugestões, como Duda Mendonça e João Santana ajudaram Lula com dicas. Mas só a sua participação não seria suficiente se o candidato não fosse talhado para fazer o que tem feito Bolsonaro e o que fazia Lula. "É assim mundo afora, em todos os lugares. Bill Clinton fazia ele próprio as perguntas a serem incluídas nas pesquisas, conduzindo sua campanha no detalhe".

O comentário do presidente sobre a Fórmula 1, está semana, foi a coisa mais emblemática disso. Falando sobre a transferência da Fórmula 1 para o Rio, alfinetou João Doria, dizendo que se for candidato a presidente não precisa se preocupar com a saída do circuito de São Paulo, mas se for candidato à reeleição sim. Nomeou seu adversário, um deles, e tentou criar-lhe algum constrangimento. A tamanha distância, ninguém, a não ser Bolsonaro, pode declarar-se candidato com retorno positivo.

"O que acho melhor de tudo isso, sinceramente, é que ele faz tudo com a maior clareza possível. Se há alguma coisa da qual não pode ser acusado, se isso for tomado como defeito, é de mineirice. Esse é o menos mineiro de nossos presidentes", afirma Lavareda.

Apesar do comentário sobre Doria, o PT e Lula continuam sendo o alvo preferencial da campanha ideológica de Bolsonaro. Já colocou também na roda de adversários Rodrigo Maia, presidente da Câmara. Enquanto não surgem novos atores o presidente ruma para outras regiões onde ainda não é rei, como o Nordeste, periferias de grandes cidades, pequenas cidades do interior.

Sua presença frequente em programas de TV de grande audiência nessas áreas é com este objetivo. A exibição em viagens internacionais vazias, a presença em estádios de futebol, as bravatas e a defesa insistente no porte de armas estão nesse arsenal de questões aleatórias, porém impregnadas de barulho eleitoral.

Bolsonaro está mobilizando em sua campanha séquitos de seguranças e infraestrutura da Presidência, como fez no rali do último fim de semana, mas quem se importa com legalidade a esta altura? Dizem que o presidente, paraquedista que é, vai até pular de paraquedas brevemente, sem reciclagem.

Há um mistério a impedir a completa transparência desse Bolsonaro munido da gana da reeleição. O que fará com Sergio Moro, o ministro da Justiça pop, à frente dele em pesquisas sobre intenção de voto. A história que ambos contam sobre nomeação para o Supremo Tribunal Federal é claramente diversionista.

Gente fora do mapa


Bolsonaro deflagra campanha para 2022 e já encara João Dória como adversário

Noite de segunda-feira em jantar na mansão do empresário Paulo Marinho, o presidente Jair Bolsonaro deflagrou antecipadamente o debate pela sucessão de 2022, afirmando-se como candidato a reeleição e acentuando, ao mesmo tempo, que terá como adversário o governador João Dória.

Disse o presidente da República aos jornalistas: “Dória deve se preocupar mais com o Brasil do que apenas com São Paulo”.

Reportagens de Daniel Gullino e Gustavo Maia, O Globo, e de Renata Agostini, O Estado de São Paulo, focalizaram a reunião que se destinou a trazer de volta para o Rio a Fórmula 1 no ano de 2021. A competição deixaria de se realizar em Interlagos, São Paulo. Daí porque esteve presente Chase Carey, diretor executivo da Fórmula 1.

O governador Wilson Witzel participou do jantar e apoiou a mudança. O prefeito Marcelo Crivela não estava na lista de convidados de Paulo Marinho, que é suplente do senador Flávio Bolsonaro.


A arrancada do presidente da República, como acontece invariavelmente na política, produzirá diversos reflexos. Um deles a reforma previdenciária, outro a reforma tributária. A Câmara Federal empenha-se em se tornar responsável pelo menos por grande parte das duas reformas.

O amanhecer das eleições de 2022 começou a influir no próprio presidente da República. Ele revogou o decreto que ampliava em larga escala a posse e o porte de armas no país. Com isso retirou de sua preocupação uma derrota no Supremo e outra no Senado. A matéria, sai, portanto, das pautas do STF e da Câmara alta.

Mas os reflexos não terminam aí. Rodrigo Maia é mais um concorrente em potencial à sucessão presidencial. Sendo assim, na verdade ele não tem interesse na vitória do projeto do governo. Pelo contrário. Votará por uma reforma, mas aquela que resultar do texto elaborado pela própria Câmara dos Deputados.

Aliás, vale frisar que o presidente da Casa já se mostra favorável aos substitutivos das duas reformas. É fundamental observar que os dois projetos interessam profundamente à mão de obra ativa do país, hoje na escala de 110 milhões de pessoas. Mas há também 32 milhões de aposentados do INSS, além dos aposentados e pensionistas do funcionalismo federal. Ainda persiste a dúvida se a reforma da Previdência vai se estender ou não aos estados e municípios.

Rodrigo Maia sem dúvida incentivou que as Comissões Técnicas elaborem substitutivos capazes de fazer com que a aprovação das matérias se tornem aceitáveis pela população. Na dança de interesses, pelo que sinto, está se verificando um afastamento gradativo do Ministro Paulo Guedes de toda a movimentação em torno dos projetos do Governo.

O retraimento forçado de Paulo Guedes e as candidaturas de João Dória e Rodrigo Maia, além da tentativa de reeleição de Bolsonaro jogaram para cima as articulações políticas na busca de consequências eleitorais.

O amanhecer da sucessão surgiu no horizonte de Brasília muito mais rapidamente do que se poderia presumir.

Nosso cérebro atrapalha o combate às mudanças climáticas

Sabemos que o aquecimento global está acontecendo. É consenso também que as mudanças climáticas são resultado do aumento das emissões de carbono pelas atividades humanas, como a degradação da terra e a queima de combustíveis fósseis. Por fim, sabemos que precisamos de uma solução urgente.

Um recente relatório internacional de especialistas em clima alerta que a Terra deve registrar um aquecimento médio de 1,5°C nos próximos 11 anos.

Quando isso finalmente ocorrer, podemos esperar um "aumento dos riscos para a saúde, meios de subsistência, segurança alimentar, abastecimento de água, segurança humana e crescimento econômico".

Os mesmos especialistas também descobriram que o aumento da temperatura já alterou os sistemas humanos e naturais de maneira profunda, resultando em condições meteorológicas mais extremas, o derretimento de calotas polares, a elevação do nível do mar, secas, enchentes e a perda crescente de biodiversidade.

Apesar de sabermos disso tudo, não mudamos até agora nossos comportamentos em uma escala grande o suficiente para impedir as mudanças climáticas. Por quê?


A resposta pode estar em nossa própria evolução. Os mesmos comportamentos que nos ajudaram a sobreviver estão hoje atuando contra nós.

Mas é importante lembrar-se de uma coisa. De fato, nenhuma outra espécie evoluiu de modo a criar um problema tão grande - mas nenhuma outra espécie evoluiu com uma capacidade tão extraordinária de resolvê-lo.
Vieses cerebrais

A dificuldade de trabalharmos em conjunto para pôr fim ao aquecimento global se deve à forma como nossos cérebros evoluíram nos últimos 2 milhões de anos.

"Os seres humanos são muito ruins em entender as tendências estatísticas e as mudanças de longo prazo", diz o psicólogo político Conor Seyle, diretor de pesquisa da One Earth Future Foundation, uma incubadora de programas que foca na promoção da paz a longo prazo sediada no Colorado, nos Estados Unidos.

"Evoluímos para prestar atenção às ameaças imediatas. Superestimamos ameaças que são menos prováveis, mas mais fáceis de lembrar, como o terrorismo. Por outro lado, subestimamos ameaças mais complexas, como as mudanças climáticas", explica.

Nas fases iniciais da existência humana, enfrentamos uma série de desafios diários à nossa sobrevivência e à nossa capacidade de reprodução - de predadores a desastres naturais. Muita informação pode confundir nossos cérebros, levando-nos à inação ou a escolhas erradas que podem nos colocar em perigo.

Como resultado, nossos cérebros evoluíram para filtrar informações rapidamente e se concentrar no que é imediatamente essencial para nossa sobrevivência e reprodução. Também evoluímos para lembrar tanto das ameaças, para que fossem evitadas no futuro, quanto das oportunidades, para que pudéssemos lembrar encontrar fontes de alimento e abrigo.

Essas evoluções biológicas garantiram nossa capacidade de nos reproduzir e sobreviver ao fazer com que nossos cérebros economizassem tempo e energia para lidar com grandes quantidades de informações. No entanto, essas mesmas funções são menos úteis em nossa realidade moderna e provocam erros quando temos que tomar decisões racionais. São os chamados vieses cognitivos.

"Vieses cognitivos que garantiram nossa sobrevivência inicial dificultam o enfrentamento de desafios complexos e de longo prazo que agora ameaçam nossa existência, como as mudanças climáticas", diz Seyle.

Os psicólogos identificaram mais de 150 vieses cognitivos que todos compartilhamos. Desses, alguns são especialmente importantes para explicar nossa inação sobre as mudanças climáticas.

Desconto hiperbólico: Damos mais valor ao presente do que ao futuro. Durante a maior parte de nossa evolução, foi mais vantajoso nos concentrarmos no que pode nos matar ou nos devorar agora, não mais tarde. Esse viés agora impede nossa capacidade de agir para enfrentar desafios mais distantes, lentos e complexos.

Nossa falta de preocupação com as futuras gerações: A teoria evolucionista sugere que nos preocupamos mais com apenas algumas gerações de nossas famílias. Em outras palavras: dos nossos bisavós aos nossos bisnetos. Sendo assim, apesar de sabermos o que precisa ser feito para lidar com as mudanças climáticas, temos dificuldade em observar por que devemos nos sacrificar para as gerações futuras.

O efeito espectador: Tendemos a acreditar que sempre haverá alguém que vai lidar com uma crise por nós. Desenvolvemos essa característica ao longo de nossa evolução. Se um animal selvagem ameaçador está pronto para atacar nosso grupo, seria um desperdício de esforço se cada membro entrasse em ação - sem mencionar que isso colocaria desnecessariamente mais pessoas em perigo. Em grupos menores, era claro quem agiria contra essas ameaças, então, essa tática funcionava. Mas, hoje em dia, esse pensamento nos leva a supor (muitas vezes erroneamente) que nossos líderes devem estar fazendo algo sobre o aquecimento global. E, quanto maior o grupo, mais forte esse viés se torna.

A falácia do custo irrecuperável: Somos inclinados a manter o mesmo curso mesmo diante de resultados negativos. Quanto mais tempo, energia ou recursos investimos nesse curso, maior a probabilidade de continuarmos com ele - mesmo que não seja o mais ideal. Isso ajuda a explicar, por exemplo, nossa dependência contínua de combustíveis fósseis como fonte primária de energia apesar de décadas de evidência de que podemos - e devemos - fazer a transição para energia limpa e um futuro sem carbono.

Esses vieses cognitivos evoluíram por um bom motivo. Mas agora estão prejudicando nossa capacidade de responder ao que poderia ser a maior crise que a humanidade já criou ou teve que enfrentar.

Pensamento do Dia


A unanimidade burra

Toda unanimidade é burra, já dizia o filósofo Nelson Rodrigues. Mas como resistir a modas que submergem a paisagem com violência apocalíptica?

Décadas atrás, o grande poeta Czesław Miłosz (1911-2004) escreveu a sua "Mente Cativa", uma meditação sobre a forma como os intelectuais poloneses se entregaram nos braços das sereias marxistas.

Contava Miłosz, então no exílio, que essa rendição era voluntária. Só raramente, muito raramente, havia violência estatal.

Os intelectuais marchavam pelo materialismo histórico e engoliam todo o jargão correspondente ("luta de classes", "falsa consciência", "forças de produção" etc.) porque sentiam o medo da irrelevância. Não no sentido mais prosaico de não terem como publicar os seus livros se persistissem no erro do pensamento livre.

Esse medo da irrelevância era de outra ordem: se o marxismo, enquanto teoria científica da história, representava a última palavra na explicação dos assuntos humanos, ninguém queria ficar para trás. Ninguém queria perder esse trem.

No fundo, ninguém queria devotar a vida inteira tentando provar que a Terra era redonda quando Marx e Engels tinham garantido que ela era plana.


Hoje, relendo a prosa que os "intelectuais orgânicos" nos deixaram, percebemos que foram eles os verdadeiros perdedores da história: as suas páginas são monumentos ao vazio, à irrelevância e à estupidez.

Mas é um erro pensar que as sereias da unanimidade burra desapareceram depois da queda do Muro de Berlim. Que o digam Tyler Cowen e Alex Tabarrok, dois professores da Universidade George Mason, que partilharam no seu site Marginal Revolution vários estudos estatísticos sobre as palavras ou expressões que passaram a dominar o New York Times nos últimos anos.

Alguns dos termos são óbvios porque exprimem realidades geopolíticas incontornáveis (ex.: China). Outros foram decrescendo de importância porque a "destruição criativa" do capitalismo não perdoa (ex.: General Motors).

Mas o que mais impressiona na contabilidade são palavras ou expressões que literalmente não existiam --e que explodiram de um dia para o outro, passando a deter uma importância hegemônica.

Anote, leitor: masculinidade tóxica; racismo sistêmico; transfobia; ableísmo; islamofobia; discurso de ódio; "mansplaining"; apropriação cultural; microagressões; "safe space"; "fat shaming"; identidade de gênero; interseccionalidade.

À primeira vista, nada de anormal: novas realidades implicam novos nomes para compreensão e estudo. Sempre assim foi: a história da ciência é também a história da terminologia científica.

O que é anormal, porém, é a predominância de conceitos ou categorias que remetem para fenômenos vitimários, como se o mundo se tivesse transformado numa nova caricatura marxista, com novos opressores e novos oprimidos.

Fato: o proletariado já não existe como sujeito histórico (mentira, claro, o proletariado continua a existir, mas agora vota na extrema direita porque foi abandonado pela esquerda tradicional).

Mas, no seu lugar, existem as mulheres, os negros, os muçulmanos, os gordos, os trans —novas classes de vítimas que sofrem às mãos dos homens, dos brancos, dos cristãos, dos belos, dos hétero.

O fato de essas palavras ou expressões aparecerem em força com o novo milênio, ou seja, depois do colapso do comunismo, só reforça a velha ideia de que nada se perde, nada se ganha, tudo se transforma. É o mesmo roteiro maniqueísta interpretado por atores diferentes.

E quem fala em marxismo fala em "intelectuais orgânicos": como no passado, e tendo o New York Times como cobaia, eles pensam e escrevem com a cartilha ideológica do momento.

Um filme que não tenha um compromisso com a "inclusividade" é tão herético como era o "sentimentalismo burguês" para os censores do realismo socialista. Um livro com personagens sexistas ou misóginas é tão intolerável como era o formalismo para os sacerdotes da estética moscovita.

Sim, as notícias da morte do marxismo foram manifestamente exageradas. Mas, se a história ensina alguma lição, é que aqueles que marcham com o "espírito do tempo" acabam por desaparecer quando esse espírito desaparece também.

Um dia, olharemos para os dogmas mentais do presente com o mesmo espanto com que olhamos para os dogmas pseudocientíficos do passado.

E a pergunta, inevitável, será semelhante: "Como foi possível escrever e acreditar em tanto lixo?".
João Pereira Coutinho

Sob Bolsonaro, coalizão foi trocada por trincheira

Tendo produzido um novo modelo de relacionamento com o Congresso, Jair Bolsonaro dedica-se a transformar a novidade que criou num problema. O capitão extinguiu o chamado presidencialismo de coalizão, eufemismo para o regime de cooptação no qual o Executivo comprava apoio parlamentar. Fez muito bem. O problema é que Bolsonaro colocou no lugar o presidencialismo de trincheira.


No novo modelo, o presidente da República não faz alianças, ele recruta súditos e elege inimigos. Entrincheirado no Planalto, Bolsonaro transforma ideias fixas em medidas provisórias e decretos. Manda publicar. E ponto. Começa a notar que sua estratégia esbarra num ponto fraco, pois numa democracia a decisão do presidente é ponto de partida, não ponto final. A vontade do soberano está sujeita ao crivo do Legislativo.

No Planalto, manda quem pode. No Congresso, manda quem tem mais votos. Para contornar a inanição legislativa, o presidente leva a edição de decretos às fronteiras da inconstitucionalidade. E os congressistas derrubam o que se imaginava decretado. Derrubam também artigos de medidas provisórias. O presidente os ressuscita na MP seguinte. E leva um corretivo do Supremo. Sobram tiros e falta diálogo no presidencialismo de trincheira.

Há uma montanha de problemas. Cavando de um lado, o Congresso ajeita a reforma da Previdência e tenta colocar em pé uma agenda própria. Cavando do outro lado da montanha, o governo também se equipa para lançar sua pauta. Se os combatentes se encontrarem no meio do caminho, farão um túnel. Se não se encontrarem, o que parece mais provável, cavarão dois túneis. Nessa hipótese, Executivo e Legislativo continuarão trafegando em duas vias, uma na contramão da outra. Se descobrissem o valor de um dedo de prosa, as trincheiras poupariam muito tempo.

Como está hoje um país cujo nome me escapa?

Ecoam em minha cabeça afirmações dos governantes, dos atuais, do presidente tosco de um país cujo nome agora me escapa. “Somos a nova política, acabou a velha política”. Será que foi isso que George Orwell imaginou ao criar a “Velhafala” e a “Novilíngua”? E quando vejo a vida idealizada naquele que ainda é um dos romances mais assustadores que já li? 1984, romance de George Orwell, tornou-se clássico desde sua publicação, um ano antes de seu autor morrer, em 1950. O lugar-comum diz que clássico é o livro que permanece atual, pode ser lido em qualquer época, tempo, data. Estremeci quando li pela primeira vez, aos vinte e poucos anos. Em seguida, enfrentei Admirável mundo novo, de Aldous Huxley, lido nos silêncios das tardes da Biblioteca Pública Mário de Andrade, de Araraquara. Ah, se todos soubessem a riqueza de uma biblioteca, não sairiam de lá. Fiquei siderado com o livro de Huxley, que mostra um Estado Mundial, assim estabelecido: Comunidade, Identidade, Estabilidade. Aquilo, que aparentemente é um paraíso, é na verdade um inferno onde o Homem foi desumanizado. Quantos sabem que este romance foi idealizado a partir do quinto ato da peça A tempestade, de Shakespeare?

Anos mais tarde me encantaria também com Fahrenheit 451, de Ray Bradbury. Dizíamos que eram utopias, mas então veio uma nova palavra, distopia. Só muito depois fui conduzido à raiz de tudo, o livro de Thomas Morus, ou Thomas More, Utopia, palavra que em grego significa “Não Lugar”, ou “Lugar Nenhum”. Publicado em 1516, em latim, e na altura de 1520, em inglês. Nos últimos tempos, o “Não Lugar” passou a ser estudado na antropologia da supermodernidade, é um lugar onde todos estão, ou passam, mas não pertencem a eles, como hospitais, hotéis, estações, rodoviárias, shoppings e aeroportos.


Até hoje não consegui ler outra distopia famosa, Nós, do russo Ievgueni Zamiátin, publicado em 1924. Fiz esta breve introdução, uma vez que meu romance Não verás país nenhum, de 1982, acabou sendo considerado uma distopia no Brasil. E a ele seguiu Desta terra nada vai sobrar a não ser o vento que sopra sobre ela, meu livro mais recente, publicado em setembro do ano passado. Sem ter planejado, acabei fechando uma trilogia, se inserirmos meu Zero, de 1975. Mas nada é por acaso. O que começou com uma ditadura parece caminhar nas fímbrias de um novo e estranho período, onde o governo atual começa a negar a história do Brasil ao desmentir o Golpe de 1964, transformando-o em acomodação de camadas da história, ao rastejar diante do Trumpismo, ao saudar a bandeira americana, ao ter orgasmos por ter sido hospedado na Blair House (que é destinada a isso, hospedar estadistas estrangeiros, mesmo que não o sejam) e afirmar que o aquecimento global foi invenção de Karl Marx (1818-1883)...

1984, o livro. Já se foram 35 anos daquela data fatídica. Mas não é que está tudo acontecendo agora? Vejam só? Não estamos lendo os jornais, ouvindo as notícias de cada momento? “Viva Stroessner e Pinochet”; “Foi um banho de sangue no Chile, mas a economia foi recuperada, aqui precisamos de um banho de sangue.”

Refazer a história hoje em 2019. Orwell — pseudônimo de Eric Arthur Blair — já documentava em seu romance:

“O Departamento de Documentação não passava de um ramo do Ministério da Verdade, cuja função primeira não era reconstruir o passado e sim abastecer os cidadãos com jornais, filmes, livros escolares, programas de televisão, peças dramáticas, romances — com todo tipo imaginável de informação, ensino, ou entretenimento, de estátuas a slogans, de poemas líricos a tratados de biologia, de cartilhas, de ortografia a dicionários de Novafala... Havia uma série de departamentos dedicados especificamente à literatura, à música, ao teatro em benefício do proletariado. Ali eram produzidos jornais populares contendo apenas e tão somente esportes, crimes e astrologia, romances sem qualidade, curtos e sensacionalistas, filmes com cenas e mais cenas de sexo e canções sentimentais compostas de forma totalmente mecânica por uma modalidade especial de caleidoscópio conhecida como versificador”.

Acaso não conhecemos aquele subator de subfilmes pornôs que hoje é o consultor nacional para projetos culturais?

Não parece uma fotografia, um documentário sobre este país cujo nome me escapa, em que a ministra da Mulher vê Deus nos galhos de uma goiabeira, em que a terra não é mais redonda, e sim plana, e uma excursão científica (????????) vai dar uma volta ao mundo para provar que somos planície? Em que uma deputada exige que alunos devem levar os celulares às aulas e gravar quando os professores emitirem opiniões que ofendam a religião, o Deus, a moral (qual moral?), ou tentarem pregar ideologias.

Atravessemos este livro que nos assustou por décadas pelo que predizia e comparemos aqui e ali com a realidade deste país cujo nome está na ponta da língua e agora me escapa. Em 1984 há a Liga Juvenil Antissexo. Há a concessão a delinquentes da medalha da Ordem do Mérito Conspícuo, assim como hoje, aqui, sabemos que muitos milicianos cariocas foram agraciados com diplomas e elogios, mesmo estando numa penitenciária cumprindo penas. Há em Orwell o grupo que se ocupa da destruição das Palavras Inúteis como os antônimos. Afinal, diz um dos personagens, para que uma palavra que é exatamente o contrário das outras? Como usá-la? Afinal a Novafala estrutura o âmbito do pensamento.

Circulemos por um novo país, cujo nome me escapa agora. Sim, para quem não sabe, estou copiando a frase inicial de Dom Quixote: “Num lugarejo de La Mancha, cujo nome ora me escapa, não há muito viveu um fidalgo desses de lança em armeiro, adaga antiga, rocim magro e cão bom caçador”. Neste país (o que há com minha memória?), um governante explosivo, de fala reduzidíssima, que decora cartões com frases curtas, uma vez que não articula nenhuma frase coerente, se propõe estadista e declara: “A reforma das leis econômicas que podem nos salvar não tem mais nada a ver comigo, está com o Parlamento. A bola está com ele, bola pra frente...”. Vamos ver o que o professor decide, como diria um exausto jogador de futebol a uma rádio no final do primeiro tempo de um jogo truncado. Lava as mãos como Pilatos, dá as costas e vai para o “uatsap” comunicar.

Fiquei perplexo ao reler em Orwell a existência dos “Dois Minutos de Ódio produzidos pelos meios de comunicação, que se estendem para as Semanas de Ódio”. Esse é o trabalho hoje das redes sociais, que muitos bem-pensantes chamam de insociais, porque espalham ódio como uma epidemia que contamina, destrói famílias, amizades, ligações, amores.

Nesta sociedade de Orwell, comandada pelo Partido Único, a privacidade desapareceu, as câmeras estão por toda parte, disseminadas, a anonimidade tornou-se impossível, sabe-se onde estamos o tempo inteiro, sabem o que estamos fazendo, com quem estamos, o que pensamos (e para isto no meu romance Desta terra... criei os thinkingchips). Não sabemos onde, mas tudo é registrado e guardado, não sabemos quando tal material será usado e assim devemos ser cautelosos.

Não há teletelas, mas há as telinhas dos celulares, as telas de tevê, as câmeras que nos espionam e levam nossas imagens ao mundo, às agências governamentais, ao Facebook, ao Instagram e a outras redes sociais. Como é que não há mais Polícia de Ideias?

E o que são as redes, principalmente quando comandadas por energúmenos que as conduzem para o mal, que é a propagação de seus ensinamentos, ideias, ideologias, religião, crenças, filosofias?

Orwell mostra que naquele país dele, Oceânia, existe o Ministério da Pujança, a Polícia das Ideias, o Departamento de Ficção (este departamento é igual a um conhecido Ministério da Educação deste país cujo nome me escapa, muitíssimo perto de nós, plena fantasia, perigosa fantasia, mergulhado na confusão, mixórdia de ideias, há meses sem um único projeto dedicado ao essencial de uma Nação, a formação de cidadãos). Há o Ministério do Amor. Estremeci ao reler o ritual (para nós censura) a que são submetidas publicações em um recinto secreto, invisível. Ele é assim descrito:

“Depois de efetuadas todas as correções e uma vez procedida a inclusão de todas as emendas, a edição era reimpressa, o original destruído e a cópia corrigida era arquivada no lugar da outra. Esse processo de alteração contínua valia não apenas para os jornais como também para os livros, periódicos, panfletos, folhetos, filmes, trilhas sonoras, desenhos animados, fotos — enfim para todo tipo de literatura ou documentação que pudesse ter algum significado político ou ideológico”.

Isso existiu aqui na ditadura. Mas como? Não houve ditadura, foi apenas uma correção de rumos... Há também neste romance uma seção em que os nomes das pessoas são “vaporizados” ou expurgados, assim como Stalin fazia com as figuras dos inimigos nas fotos oficiais, eliminando-os para sempre.

Ao elogiar Pinochet — o que causou indignação ao atual presidente do Chile —, Stroessner (tido pelo nosso governo como um grande estadista) e o torturador Ustra, o chefe desta nação cujo nome está na ponta da língua segue as determinações deste outro país que Orwell retrata em 1984, uma das mais fortes distopias da literatura universal. Que parece tornar-se realidade hoje, aqui e agora, e daqui a pouco.

O Partido Único domina tudo, vê tudo, sabe tudo, vigia tudo, controla tudo, busca aniquilar as consciências. E se todos os outros aceitarem a mentira imposta pelo Partido — se todos os registros contarem a mesma, a única, história —, a mentira torna-se história. “Quem controla o passado, controla o futuro. Quem controla o presente, controla o passado”, rezava... O indivíduo só precisava obter uma série interminável de vitórias sobre a memória. Controle da realidade era a designação adotada... “Mostrar-se cem por cento confiável ao contar mentiras construídas laboriosamente, defender ao mesmo tempo duas opiniões que se anulam uma a outra, sabendo que são contraditórias e acreditando nas duas. Considerando que o Partido mantém absoluto controle sobre todos os registros e sobre todas as mentes de seus membros, decorre que o passado é tudo aquilo que o Partido decide que ele seja.”

O que temos testemunhado? Idas e vindas, declarações e desmentidos, ideias desencontradas, incongruentes, que causam mal-estar aos mais lúcidos Assustei-me quando percebi que no romance Desta terra nada vai sobrar... foi eleito um presidente sem coração, outro sem memória, outro sem ideias e pensamentos, outro sem cérebro.

Trago um breve trecho do final de 1984, um diálogo entre o personagem principal e um defensor do Partido Único e das normas sobre as quais está alicerçado o novo regime:
“Winston se recupera o suficiente para conseguir falar:
— Vocês não podem, disse com voz fraca.
— O que você quer dizer com isso, Winston?
— Vocês não podem criar um mundo assim como você acaba de descrever. É um sonho. É impossível.
— Por quê?
— É impossível criar uma civilização baseada no medo, no ódio e na crueldade. Uma civilização assim não pode perdurar.
— Por que não?
— Ela não teria vitalidade. Ela se desintegraria. Ela cometeria suicídio.
— Bobagem. Você está com a sensação de que o ódio provoca mais exaustão do que o amor. E por que seria assim? E se fosse, que diferença faria?...”
Concluo: que diferença está fazendo? Cada um de nós, que tem consciência, moral e ética sabe a diferença.

Paisagem brasileira

Milho Verde ( MG), Baptista Gariglio

O presidente e as agências

O presidente Jair Bolsonaro vem reiteradas vezes criticando a parte do novo marco jurídico das agências reguladoras, recentemente aprovado pelo Congresso, que trata da indicação dos dirigentes daqueles órgãos. Em sua mais recente manifestação a respeito, Bolsonaro informou que vetará o trecho que estabelece que o nome do dirigente será escolhido a partir de uma lista tríplice, elaborada por uma comissão de seleção pública, que avaliará os candidatos. “A decisão até o momento para indicar o presidente das agências é minha. A partir desse projeto, (haverá) uma lista tríplice feita por eles (o Congresso). Então, essa parte será vetada”, explicou o presidente, revelando desconhecer o teor do que foi aprovado.


O projeto, chamado de Lei Geral das Agências Reguladoras, não tira do presidente da República, em nenhum momento, a prerrogativa de escolher os dirigentes desses órgãos. Apenas altera o modo como as indicações são feitas. Não serão mais aceitos candidatos que sejam políticos, parentes de políticos ou ligados de alguma forma a empresas do setor, e o texto exige comprovação de experiência para o exercício do cargo. Os candidatos serão então submetidos a uma comissão de seleção – cuja composição tem de ser avalizada pelo presidente da República. Em seguida, a comissão escolhe os nomes dos finalistas, na forma de lista tríplice, que igualmente é submetida ao presidente. O nome escolhido pelo presidente é submetido então ao Senado, que pode rejeitá-lo – nesse caso, o presidente pode indicar outro nome, “independentemente da formulação da lista tríplice”, conforme se lê no parágrafo 6.º do artigo 5.º da lei aprovada.

Ou seja, a palavra do presidente da República é decisiva em todas as etapas do processo de preenchimento de vagas de direção nas agências reguladoras. Não há nada parecido com usurpação de prerrogativas, como Bolsonaro dá a entender – o presidente chegou a dizer que o Congresso quer transformá-lo em uma “rainha da Inglaterra”, isto é, num chefe de Estado sem poder para governar. Mesmo depois de o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, ter esclarecido que “o presidente não perde prerrogativa alguma” – algo que poderia ter sido verificado por meio de uma simples leitura do projeto aprovado –, o Palácio do Planalto manteve a interpretação de que o presidente Bolsonaro estava sendo preterido.

Mais grave do que isso, porém, é a visão que o presidente Bolsonaro tem das agências reguladoras. Esses órgãos, criados nos anos 90 para dar ao Estado capacidade regulatória para proteger o interesse público em meio às privatizações, devem ser autônomos, isto é, livres de qualquer influência política que possa distorcer sua função de promover a qualidade e a continuidade da prestação dos serviços públicos por empresas privadas. Bolsonaro, no entanto, acredita que deve ter influência nas agências. “As agências têm um poder muito grande e essa prerrogativa de o presidente (da República) indicar o presidente (da agência) é importante porque nós teremos algum poder de influência nessas agências”, declarou. O porta-voz da Presidência, Otávio Rêgo Barros, informou que, na opinião de Bolsonaro, o presidente deve “manter o poder discricionário” na escolha dos diretores das agências porque é necessário que esses órgãos tenham “um alinhamento com as propostas das políticas públicas do governo”.

Ora, a função das agências reguladoras, como órgãos de Estado, não é alinhar-se ao governo – o projeto aprovado prevê, justamente por isso, que os mandatos dos dirigentes não sejam coincidentes com o do presidente da República. Mas o atual presidente não concorda com isso. Nesse ponto, parece disposto a agir como o ex-presidente e hoje presidiário Lula da Silva, que, quando esteve no poder, tudo fez para minar a independência das agências reguladoras.

Durante a era lulopetista, as agências sofreram forte processo de desmoralização, exatamente sob o argumento, hoje usado por Bolsonaro, de que esses órgãos representavam uma usurpação de poderes do Executivo. Foi assim, sempre em nome do “interesse público” – expressão usada agora pelo porta-voz do presidente para justificar a atitude de Bolsonaro –, que algumas das agências deixaram de cumprir sua importante função, transformando-se em meros cabides de emprego.

Punir corruptos está dentro ou fora da curva?

Entender o estrangeiro — o outro — é tão difícil quanto compreender a si mesmo. Visto de fora para dentro, o outro leva a preconceitos cruéis e a estereótipos enganosos. Já o autoexame conduz a racionalizações, polarizações e negações.

Por outro lado, não é fácil trazer à tona o que somos. Em geral, percebemos o que nos desagrada em nós mesmos como crise ou, como bem disse o ministro Luís Roberto Barroso, como “um ponto fora da curva.” Mas se hoje a corrupção devidamente criminalizada é um ponto fora da curva, o problema é como explicar sua dimensão “sistêmica”. Pois o sistemático denota como a “corrupção” sempre foi parte e parcela do nosso mandonismo. No caso nacional, chama atenção como atribuímos um enorme protagonismo ao Estado e ingenuamente isentamos os costumes, como se a sociedade não fosse um ator tão ou mais importante que o Estado na dinâmica de qualquer sistema social — sobretudo quando o regime democrático tem como marca a aproximação de governo e estilo de vida.

É conveniente, pois, remarcar que o ponto "fora" da curva de hoje tem sido um ponto "dentro" da curva no passado.

De fato, os elos entre poder e riqueza sempre foram ambíguos num Brasil onde “o criar dificuldades (político-legais) para ganhar facilidades (financeiras)” é um mantra.

“Lavar dinheiro” é a mais perfeita metáfora para um sistema no qual se resiste à impessoalidade do mercado porque essa impessoalidade contraria um controle político hegemonicamente personalizado. O problema não é somente o de “abrir a economia”, mas de tornar a política mais impessoal; logo, menos sectária. Nela, os fins e os meios precisam de mais calibragem e honestidade.

Não é fácil ajustar o financeiro com o político num país onde o segundo sempre englobou o primeiro.

A obrigação de oferecer favores, facilitar transações, arrumar colocação para parentes e amigos era a rotina do sistema. Os hábitos sociais e as etiquetas do Império não foram liquidados com uma República proclamada, mas até hoje resistente ao axioma da igualdade de todos perante a lei. A mesma coerção relacional (primeiros os nossos) promove a possibilidade de criar leis particulares (contra inimigos) ou até mesmo instituições para apadrinhados e partidários. A pergunta clássica e esperada — “o que é que você quer?” — feita pelo ministro recém-empossado ao amigo do coração era absolutamente normal no Brasil. O uso do Direito administrativo como um mecanismo para salvar membros de renda mediana do trabalho escravo, tornando-os amanuenses — ou “empregados públicos” que usavam a mão e não o corpo para ganhar a vida — foi norma no Brasil, conforme observou Thomas Ewbank na trilha de Benjamin Franklin.

O caso brasileiro é excepcional. A hegemonia do trabalho escravo estigmatizou o trabalho como vocação, distinguindo-o do emprego; ao mesmo tempo que, por meio do protagonismo dos relacionamentos pessoais vindos da “casa”, cujo modelo era (e ainda é) hierarquizado, moldou no universo legal um viés mais legalístico e formal do que racional-burocrático.

Não basta dizer que o Brasil é patrimonialista. É preciso indicar que o patrimonialismo brasileiro manteve a oposição entre a casa e a rua — jogamos o “sujo” de nossas casas na rua. Essa “rua” que é problema do governo! Ademais, os valores morais da casa (lealdade a mais absoluta ao “nosso sangue”; ou a confiança total somente aos pais) contrariam frontalmente o axioma da igualdade perante normas universais, berço das democracias.

O que remarquei no meu estudo do “Você sabe com quem está falando?” foi como no caso brasileiro a igualdade que governa o espaço público contraria as hierarquias da casa e da família.

O patrimonialismo maquiavélico autonomizava o Príncipe, os brasileiros o trazem de volta ao conjunto das relações pessoais legitimado por meio político-legal. Destruímos parcialmente a hegemonia dos laços de família e da casa, mas não tornamos hegemônicas as regras igualitárias do mundo público republicano. Temos, como afirmo no meu trabalho, duas éticas, o que, em certos momentos, equivale a não ter nenhuma moralidade.

Não deve ser, pois, estranho que nossa vida social decorra em meio a conspirações e golpes que corroem e desonram a democracia.
Roberto DaMatta