Por outro lado, não é fácil trazer à tona o que somos. Em geral, percebemos o que nos desagrada em nós mesmos como crise ou, como bem disse o ministro Luís Roberto Barroso, como “um ponto fora da curva.” Mas se hoje a corrupção devidamente criminalizada é um ponto fora da curva, o problema é como explicar sua dimensão “sistêmica”. Pois o sistemático denota como a “corrupção” sempre foi parte e parcela do nosso mandonismo. No caso nacional, chama atenção como atribuímos um enorme protagonismo ao Estado e ingenuamente isentamos os costumes, como se a sociedade não fosse um ator tão ou mais importante que o Estado na dinâmica de qualquer sistema social — sobretudo quando o regime democrático tem como marca a aproximação de governo e estilo de vida.
É conveniente, pois, remarcar que o ponto "fora" da curva de hoje tem sido um ponto "dentro" da curva no passado.
De fato, os elos entre poder e riqueza sempre foram ambíguos num Brasil onde “o criar dificuldades (político-legais) para ganhar facilidades (financeiras)” é um mantra.
“Lavar dinheiro” é a mais perfeita metáfora para um sistema no qual se resiste à impessoalidade do mercado porque essa impessoalidade contraria um controle político hegemonicamente personalizado. O problema não é somente o de “abrir a economia”, mas de tornar a política mais impessoal; logo, menos sectária. Nela, os fins e os meios precisam de mais calibragem e honestidade.
Não é fácil ajustar o financeiro com o político num país onde o segundo sempre englobou o primeiro.
O caso brasileiro é excepcional. A hegemonia do trabalho escravo estigmatizou o trabalho como vocação, distinguindo-o do emprego; ao mesmo tempo que, por meio do protagonismo dos relacionamentos pessoais vindos da “casa”, cujo modelo era (e ainda é) hierarquizado, moldou no universo legal um viés mais legalístico e formal do que racional-burocrático.
Não basta dizer que o Brasil é patrimonialista. É preciso indicar que o patrimonialismo brasileiro manteve a oposição entre a casa e a rua — jogamos o “sujo” de nossas casas na rua. Essa “rua” que é problema do governo! Ademais, os valores morais da casa (lealdade a mais absoluta ao “nosso sangue”; ou a confiança total somente aos pais) contrariam frontalmente o axioma da igualdade perante normas universais, berço das democracias.
O que remarquei no meu estudo do “Você sabe com quem está falando?” foi como no caso brasileiro a igualdade que governa o espaço público contraria as hierarquias da casa e da família.
O patrimonialismo maquiavélico autonomizava o Príncipe, os brasileiros o trazem de volta ao conjunto das relações pessoais legitimado por meio político-legal. Destruímos parcialmente a hegemonia dos laços de família e da casa, mas não tornamos hegemônicas as regras igualitárias do mundo público republicano. Temos, como afirmo no meu trabalho, duas éticas, o que, em certos momentos, equivale a não ter nenhuma moralidade.
Não deve ser, pois, estranho que nossa vida social decorra em meio a conspirações e golpes que corroem e desonram a democracia.
Roberto DaMatta
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