Heinze. Zambelli. Kicis. Barros. Terra. Jordy. Flavio. Eduardo. Carlos. Todos Bolsonaro. Esses nomes deveriam entrar para a história como cúmplices dos crimes cometidos pelo presidente na pandemia da Covid-19. Foram incluídos na lista de pedidos de indiciamento da CPI que apura irregularidades.
Jair Bolsonaro causou uma devastação no país com a sua política de morte, mas não teria capacidade de, sozinho, guiar a população para o abismo. Não fosse o apoio e o assessoramento desses parlamentares e de tantos outros, apenas Jair choraria no banheiro sozinho, não o país inteiro, refém de um governo criminoso e de políticos canalhas.
A CPI tenta emplacar o que as comissões de Ética do Congresso falham em fazer: apontar abusos, falta de decoro e possíveis crimes cometidos por parlamentares que usam a estrutura pública para espalhar desinformação, boicotar políticas eficazes de enfrentamento da pandemia, atacar adversários políticos.
O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), correu para dizer que viu excesso na inclusão de Heinze no relatório. Governistas chiaram, a CPI amarelou e ele se safou. Eu preferia ser acusada de etarismo e dizer que o senador gaúcho é só um tiozão gagá, mas é caso de mau-caratismo mesmo.
Excessos foram cometidos a rodo por ele, que usou o palanque da CPI para repetir mentiras, enaltecer medicamentos inapropriados, defender médicos inescrupulosos. Na votação do relatório da CPI, voltou a mentir, assim como outros senadores. É gente que já deveria estar presa.
Detesto ser pessimista. A sociedade passou os últimos meses grudada nos desdobramentos da comissão, que mostrou que Jair Bolsonaro, ministros, parlamentares, médicos e empresários usaram a vida de milhares de brasileiros como fiança para um projeto de poder e de lucro. Os crimes estão aí, o relatório da CPI pode ser aprovado, mas acredito que não veremos alguém punido.
Temos um presidente da República que, depois de sabotar de todas as formas o combate à pandemia no seu momento mais crítico, agora se dedica a vilanizar ainda mais as vacinas contra a Covid. Não apenas dizendo que não vai se vacinar, como afirmando numa das suas lives que os imunizantes podem acelerar o desenvolvimento da Síndrome de Imunodeficiência Adquirida (Aids), uma mentira não menos do que monstruosa.
Temos também um presidente do Banco Central que pergunta a banqueiro qual deveria ser o piso da taxa de juros, como revelou um áudio vazado no domingo. Como se o banqueiro não pudesse fazer uso dessa, digamos, questão privilegiada, para mandar os seus operadores anteciparem posições no mercado de juros futuros, ações e câmbio.
Nada disso é normal: nem presidente da República que usa fake news para desestimular vacinação, nem presidente do Banco Central que faz esse tipo de consulta a banqueiro. No primeiro caso, o fato grave deveria ensejar a abertura imediata de processo de impeachment, porque o crime de responsabilidade é tão claro, tão material, que parece desenhado em impressora 3D. Sabotar medidas de saúde pública é uma ameaça à segurança interna do país. O fato grave, enfatize-se, não é isolado. Vem no rastro de uma série de outras palavras e atos criminosos que já deveriam tê-lo tirado do Palácio do Planalto no ano passado, de preferência em um camburão.
No segundo caso, o presidente do Banco Central precisaria ser imediatamente afastado do cargo e uma investigação deveria ser aberta, para averiguar o grau de envolvimento dele com o banqueiro que se jactou a investidores de ter sido ouvido pela autoridade monetária. Aliás, fôssemos um país sério, o banqueiro também deveria ser investigado. É intrigante -- ou nem tanto -- que a esmagadora maioria da imprensa, praticamente toda, tenha ignorado o episódio espantoso. A fiscalização jornalística é, por aqui, despudoradamente seletiva.
Não é fake news: o Brasil sofre de imunodeficiência histórica quando o assunto é lei, princípio de moralidade na administração pública e lisura nas regras do jogo capitalista. Contra essa doença nacional, ainda não há vacina ou cura, infelizmente.
Esta foi, de fato, uma frase ouvida várias vezes nesses últimos dias no calor da aprovação do relatório da CPI sobre as ações do Governo na pandemia: “‘Genocídio’ não é a palavra correta”. Houve até mesmo editoriais de grandes jornais que estamparam ser um “abuso” acusar o Governo brasileiro de genocídio. Não faltaram explicações aparentemente neutras e técnicas a respeito da inadequação do uso do termo no caso brasileiro, mesmo que tenha sido por “genocídio” que o sr. Bolsonaro foi denunciado junto ao Tribunal Penal Internacional, pela Articulação dos povos indígenas do Brasil, em 9 de agosto de 2021. As opiniões contrárias alegaram que não seria o caso de “banalizar” o termo.
Há de se lembrar que tal estratégia não é nova. Em relação ao mesmo Governo, algo semelhante ocorreu quando foi questão de criticar quem usa o termo “fascista” para a ele se referir. No entanto, quando escreveu sua “Declaração à nação”, no dia 9 de setembro, depois das manifestações e falas golpistas no dia da Independência, Bolsonaro não deixou de assinar: “Deus, pátria, família”. Diria que a parte mais importante de toda declaração era exatamente essa assinatura. Pois, pela primeira vez na história, alguém ocupando a presidência do Brasil fazia uma declaração à nação assinando-a com o lema da Ação Integralista Nacional. Ou seja, “tecnicamente” o sr. Bolsonaro falou à nação como um integralista, como um fascista. Seria algo equivalente à sra. Merkel assinar sua última declaração à nação como um : “Deutschland über alles”. Não, nem por isso pareceu digno de nota perguntar-se sobre o sentido dessa associação voluntária.
Poderíamos mesmo continuar nosso espanto falando de livros de grande circulação que há até bem pouco tempo enchiam as livrarias de nossos aeroportos como títulos como “Não somos racistas”. Afinal, mais uma vez, mesmo que as práticas cotidianas e a realidade social teimassem em gritar o contrário, o que acontecia conosco era “outra coisa” que exigiria uma finesse analítica maior, uma capacidade de individualização de grande monta não acessível aos que fazem associações indevidas e movidas por interesses políticos comezinhos.
Essa singular maneira de não dizer o nome das coisas é um traço constituinte de nossa história e diz muito a respeito de como ela se perpetua. Pode parecer descuido, mas tem método. Ao não nomeá-las, as ações e políticas permanecem, sua lógica interna não é explicitada, tudo acaba por parecer uma mistura de “descaso”, “improvisação”, “desespero”. Ou seja, mobiliza-se uma série de anticonceitos que visam a dizer que não há lógica implacável alguma por trás, há apenas agentes procurando desastradamente preservar seus poderes e agir a partir de interesses individuais. Os desastres são resultado da confusão geral.
Mas e se, sim, e se levantássemos a mera hipótese de haver de fato uma lógica genocidária em marcha no interior do Estado brasileiro? Poderíamos fazer esse exercício de pensamento e se perguntar sobre o que aconteceria nesse caso. Afinal, não seria a primeira vez na história que o Estado brasileiro opera como gestor de genocídio. Dentre outros casos, a maneira com que populações indígenas foram dizimadas é um exemplo perfeito de tais práticas. Ocupação, escravização, destruição social e psíquica, extermínio populacional. As estimativas do IBGE afirmam que a população indígena antes de 1500 era em torno de 3 milhões. Há estudos que calculam algo em torno de 5 a 7 milhões. O último censo, de 2010, afirma existirem atualmente 817.923 indígenas. Em 1991, esse número era apenas de 294.131. Números dessa natureza não mentem.
Quando foi cunhado, ao final da Segunda Guerra Mundial, o termo “genocídio” procurava limitar a soberania dos estados nacionais, lembrando que há práticas de extermínio de populações que não podem ser “prerrogativas” do exercício do poder de Estado, seja de suas políticas de “segurança interna” ou de “pacificação”. Na verdade, a invenção pode ter sido ineficaz do ponto jurídico, mas ela foi extremamente eficaz do ponto de vista político. Mesmo que ela tenha se demonstrado de difícil utilização nos tribunais, ela se tornou uma importante peça política de fortalecimento das dinâmicas de autodefesa contra a violência de Estado. A mobilização da acusação de genocídio permite definir uma esfera fora da política, ou seja, situações nas quais o Estado sai de um confronto que pode ser mediado de forma política. Pois suas ações não são mais pensáveis como ações possíveis no interior de um campo de divergências políticas. Um estado que age dessa natureza não pode mais exigir nenhuma forma de obediência e deve ter a população contra ele.
Essa lógica de genocídio não diz respeito à quantidade de pessoas que morrem, mas a forma como morrem, a maneira com que o Estado funciona para setores da população não exatamente como um “Estado protetor”, mas como um “Estado predador”. O Estado sempre praticará genocídio quando operar ativamente para a criação de condições nas quais as pessoas são deixadas para morrer, nas quais ele mobiliza comportamentos que quebram noções elementares de prudência em relação às duas situações típicas nas quais se espera dele proteção, a saber, em guerras e em pandemias. E sob essa perspectiva o Estado brasileiro agiu durante a pandemia no interior de uma lógica de genocídio, sem nunca recuar, mesmo depois da consolidação de 600.000 mortos.
Mas sendo assim, poderíamos nos perguntar: por que tanta resistência em chamar de gato um gato? Seria por amor à enunciação cristalina do direito? Ou seria por medo das consequências? Pois, afinal, ninguém faz um genocídio sozinho. Essa figura paradoxal do Estado que ativamente deixa morrer tem uma razão de existência. Ele serve muito bem ao interesse da elite rentista nacional e seus negócios. Há uma engenharia social por trás. Uma sociedade cujo afeto central é a indiferença, uma sociedade que não para sob nenhuma circunstância para fazer o luto de seus mortos é o sonho de todo gestor “técnico” que agora se indigna porque o Governo (por um cálculo eleitoral, mas isso efetivamente pouco importa) resolveu furar o teto de gastos e deslocar 30 bilhões para transferência direta de renda. Porque onde reina a indiferença social não há nenhuma obrigação de solidariedade, não há indignação alguma. Sem indignação alguma, o rentismo pode viajar para Miami a fim de ser vacinado enquanto a população morre exatamente por ausência de vacina.
Esses gestores são o verdadeiro fundamento do genocídio. Seu discurso técnico esconde uma escolha política de resultados catastróficos. Na verdade, eles são a versão contemporânea de um comportamento colonial que constituiu essas terras e não mudou em nada, a não ser no corte das camisas. Ou seja, a acusação de genocídio não é apenas contra o sr. Bolsonaro, mas contra toda a política que ele representa tão bem, contra todos os interesses que ele defendeu tão bem nesses anos. Essa política econômica, que vários procuram dissociar do Governo, se realiza necessariamente no genocídio. Vladimir Safatle
Em uma década, a quantidade de favelas dobrou no Brasil. Em 2010 havia pouco mais de seis mil “aglomerados subnormais”, nos termos do IBGE; em 2019, o número pulou para mais de 13 mil. Como os dados não captam os anos da pandemia, é certo que a conta está subestimada.
A revelação é chocante, mas não surpreendeu quem lida diariamente com comunidades e acompanha de perto a explosão da pobreza. Nós, do terceiro setor, estamos alertando há tempos: nesse ritmo, a situação social atingirá o ponto de não retorno. O termo, emprestado da área ambiental, se refere ao momento em que um ecossistema sofre danos tão graves que não podem ser revertidos. O mesmo ocorre com os ecossistemas sociais. A calamidade social pode ser tão grande que nenhuma política pública seria capaz de revertê-la. Receio que estejamos perigosamente próximos desse ponto.
O crescimento das favelas é um sintoma que só aparece quando o corpo social está doente há muito tempo. Quem vai morar na favela é a família que já não consegue arcar com o aluguel de uma moradia digna ou que precisou escolher entre morar e comer. Mais da metade dos brasileiros conviveu com a insegurança alimentar no último ano. Desses, quase 20 milhões passaram pelo menos um dia sem comer nada.
Favela é produto e produtora de desigualdade social. O garoto que cresce nesse meio tem menos acesso à educação, ao esporte, ao lazer, à saúde, à cultura. Quem passa a infância na pobreza, sob o abraço sufocante do tráfico ou da milícia, terá menos chance, quando adulto, de romper o ciclo da pobreza.
Embora seja uma chaga aberta, a favela parece continuar invisível aos olhos da sociedade. É como se as pessoas dissessem: “O problema é seu, é do governo”. Pois eu digo que o problema é de todos nós, da sociedade, do governo, do morador do barraco. Se a deterioração social continuar no ritmo atual, não haverá bunker ou carro blindado que garanta a segurança dos que hoje podem se manter apartados da mais dura realidade.
Problemas estruturais não se resolvem apenas com um auxílio emergencial de R$ 400 ou R$ 600 por mês. Toda ajuda é bem-vinda em momentos de crise aguda, claro, mas, se quisermos realmente curar o país, será preciso um plano robusto de transformação social para mitigar a desigualdade. É comum as pessoas se sentirem culpadas diante da fome alheia. Mas devo dizer que culpa não enche barriga de ninguém, não paga o jantar da família que nem almoçou. Culpa desacompanhada de ação é um sentimento socialmente inútil, que não contribui para a construção de oportunidades.
Esse é um debate que diz respeito a grupos políticos de todos os matizes — e urgente. Se começássemos hoje um programa gigantesco de combate à pobreza, ainda assim estaríamos falando de um problema que nos assombraria por muitos governos antes de desaparecer. Nosso compromisso é com as próximas gerações. Não quero que as crianças cresçam num cenário de terra arrasada. Se você, leitor e leitora, sente o mesmo, comece a lutar hoje para que a pobreza brasileira não seja irreversível amanhã.