sexta-feira, 1 de junho de 2018

Os caminhoneiros e a dependência em rede

Para quem lê este país pela imprensa e pela televisão – e é assim, ainda, que todo país vê sua “persona” institucional porque não ha outra maneira de fazê-lo – nada parece fazer sentido. Essa perplexidade é que explica a balbúrdia das redes. Mas quando se põe o pano de fundo real em tela tudo se torna crua e perfeitamente lógico.

Há um pacto de silêncio em torno da reforma de emergência que se faz necessária no Brasil que atravessa os dois polos ideológicos e “irmana” todos os partidos. E a imprensa tem feito menos do que deveria para expô-lo. Faz todo sentido essa barreira de silêncio porque, situação ou oposição de turno, as chamadas “fontes” do debate nacional são os poderes estabelecidos e essa reforma, uma vez posta para andar, ou vai à questão de fato e muda definitivamente o poder de dono no Brasil, ou continua dando um passo para a frente e dois para trás como vem acontecendo desde o minuto seguinte à proclamação da república que nós nunca instituímos de fato.

Continuamos feudais. Um único grupo, graças “a el rei”, abocanha ano após ano, faça chuva ou faça sol, uma fatia maior de um PIB minguante. O resto é ladeira abaixo e em velocidade dobrada porque cada degrau que o PIB desce, a casta privilegiada precisa galgar um para voltar para onde estava e mais um para se colocar acima do ponto alcançado no ano anterior como manda a lei que ela mesmo escreveu para si.

Essa excepcionalidade ulula.


Partindo de um patamar de desigualdade já muito alto, o PT passou três mandatos inchando e mandando inchar morbidamente as folhas de pagamento do estado. E isso gerou a onda multiplicada que vem desaguando, com os salários inflados ao pico máximo, na conta das aposentadorias públicas. A necessidade de funcionários ativos – médicos, professores e principalmente policiais – redobra exponencialmente, porém, à medida que a miséria resultante do avanço da “privilegiatura” sobre a riqueza nacional minguante esgota a economia privada e aumenta as carências do povo.

Qualquer raciocínio sobre os movimentos no tabuleiro do Brasil que não considere esse dado no ponto de partida e no ponto de chegada aprofunda a confusão reinante. Só a visão do contexto pode dar um foco ao debate nacional e um horizonte de chegada para balizar tanto a ação dos governos quanto as escolhas dos eleitores. Os relatos do dia, no entanto, são invariavelmente feitos sem considerá-lo. Ha quem chegue a esvoaçar por cima da verdade mas ninguém pousa decididamente nela.

Com o país no limite, a mentira é o ultimo ponto de contato da “privilegiatura” com terra firme. O ultimo obstáculo periclitante que separa o Brasil de uma nova era. Mas sem esse horizonte bem definido, saltamos de casuísmo em casuísmo o que, em vez de unir, desalinha o país. Tira-lhe o foco. Apela ao pior lado do bicho homem que é o do salve-se-quem-puder.

Foi o que aconteceu com a greve dos caminhoneiros. Ela começou como um sucesso de público em função da exasperação geral com a velocidade com que dobrou a conta da “tanqueada” de todos nós. Mas sem um horizonte para nortear, fosse a reivindicação, fosse a satisfação oferecida, esta pôde, mais uma vez, excluir o Brasil … com a anuência do Brasil, este estranho país da “dependência em rede” onde tão poucas bocas abocanham o privilégio mas tantos rabos/cúmplices mantêm-se indiretamente presos por ele num silêncio cúmplice.

Vence quem grita mais alto? Desde sempre. Só que desta vez quem gritou mais alto não foi o gritão de sempre que, no entanto, é cínico o bastante para tomar carona no grito de quem quer que seja desde que contribua para empurrar o país para o desastre desejado. Mas aquela esquerda dos nossos Maradonas sem cocaína, que afirma que o problema da Venezuela é “haver uma oposição a Nicolas Maduro reacionária e vendida aos Estados Unidos” que, portanto, merece os tiros que leva, não é mais o problema. O país já lhe deu o que merece. Não nos salvará, tampouco, a mera ação policial contra a corrupção. Ela contribui para um futuro menos exposto mas só pesará decididamente a nosso favor se e quando o resto do que precisa acontecer acontecer. Quem quiser que se iluda com a “sede de justiça” dos que vazam para a imprensa os dossiês de financiamento de campanha de todo brasileiro eleito pela lei que elegeu todo brasileiro eleito, se ele não fechar posição a favor dos privilégios da “privilegiatura”. Quem quiser que compre as lágrimas de crocodilo dos que barraram todas as reformas que respeitam a aritimética e agora “denunciam” os aumentos de preços e impostos que isso necessariamente implica. Não podem durar mais que as marés de alta os monopólios estatais “regidos por regras de mercado” num país onde quem embarca uma vez no estado embarca para todo o sempre e a coluna de “custos” está constitucionalmente petrificada para cima, restando para os “ajustes” apenas e tão somente a que leva diretamente ao lombo dos miseráveis “acionistas involuntários” das “brases”. Não existe essa pretendida meia virgindade. Ou o estado é polícia só ou, mais cedo ou mais tarde, cai no crime.

O tratamento de choque na esbórnia das aposentadorias públicas onde o privilégio é lei e o abuso do privilégio é a regra não é mais uma questão de escolha, é um imperativo de sobrevivência. O requisito obrigatório de qualquer eleitor consciente deve ser, portanto, antes de mais nada, exigir do seu candidato uma tomada de posição formal em relação a ela. E todos entre esses que já foram traídos por seus representantes um dia, deveriam fazer mais que isso. Democracia é uma hierarquia na qual o povo manda e os governantes obedecem. E para que isso aconteça é preciso adotar um sistema que permita saber quem de fato, é o representante de quem em cada instância de governo, o que só o voto distrital puro pode proporcionar e, em seguida, armar a mão dos eleitores do poder efetivo de demitir seu representante sempre que se achar mal representado (recall) e desafiar suas leis se vierem enviesadas (referendo).

Todo o resto é isca pra pegar trouxa.

Fernão Lara Mesquita

Imagem do Dia


O bloqueio das ideias

Aos poucos volta a gasolina aos postos e os alimentos às prateleiras. É tempo também de reorganizar a cabeça, depois desse movimento dos caminhoneiros que parou o País.

Sim, é preciso reorganizar a cabeça. Não vai nisso nenhuma subestimação da inteligência. É que os fatos nos obrigam a uma constante revisão.

Esta semana, por exemplo, lembrei-me duma viagem a Santa Maria, no Rio Grande do Sul. Isso foi na década dos 90. Rodávamos por estradas precárias e perguntei por que não as reparavam. Alguém me disse que as estradas ali estavam perto da fronteira com a Argentina. Eram tão ruins que desestimulavam uma invasão militar.


Achei bizarro. Afinal, estamos de bem com a Argentina, já havíamos resolvido a questão nuclear fraternalmente. Aquilo era uma desculpa esfarrapada.

Voltando atrás no tempo, sigo pensando que as estradas devem ser as melhores possíveis. Mas percebo, com a paralisação da semana, que num país como o nosso deveriam ser um tema dominante na defesa nacional.

Um país não pode ser tão vulnerável. As notícias de perdas se sucedem: portos, agricultura, comércio, indústria, quase todos os setores da economia nacional foram atingidos.

Isso não quer dizer que nunca mais haverá greve de caminhoneiros. Simplesmente não podem ser devastadoras como esta.

A segunda ideia: como as coisas acontecem sem que sejam detectadas no País. As manifestações de 2013 começaram por causa dos 20 centavos a mais no preços das passagens. E surpreendentemente evoluíram para um protesto geral.

Onde estávamos todos? Talvez mais concentrados no jogo político de Brasília do que propriamente nas tensões sociais. Onde estava o governo, que recebeu uma indicação clara da greve e a subestimou?

Se fosse um pouco mais franco e transparente, pelo menos avisaria à sociedade que algo de muito grave estava para acontecer. Se não quisesse nos defender, ao menos acionaria nossos instintos de autodefesa. Não são necessariamente negativos como uma corrida aos supermercados. Havia muito o que fazer para salvar vidas, garantindo oxigênio, material de hemodiálise, enfim, artigos decisivos para a saúde pública.

As refinarias foram bloqueadas. Como, assim, as refinarias podem ser bloqueadas simultaneamente? Os grevistas chegaram primeiro, embora tenham avisado que iriam desfechar o movimento.

Compreendo a revolta difusa contra políticos que vivem no mundo da lua. Creio que ela é inevitável no Brasil de hoje, em que a sociedade já esgotou sua cota de tolerância.

O governo Temer está preocupado em fugir da polícia e influenciar as eleições. Ele merece uma dose de caos para cair na real. Mas a sociedade, não. Ele já vem sofrendo ao longo desses anos de crise, corrupção, assalto às empresas públicas, como a Petrobrás.

Existe alguma fórmula para evitar que um governo fraco fique de joelhos sem que para isso o próprio País também tenha de se ajoelhar?

O que me ocorre, as ideias ainda não voltaram todas às prateleiras: é um instrumento de Estado, uma lei talvez, que defina que o País não pode parar, independentemente das hesitações do governo.

Ao governo caberia negociar, mas dentro de um quadro em que estradas e refinarias não poderiam ser bloqueadas. Isso subordinaria as próprias negociações.

Por mais rastejante que fosse o governo, por mais concessões que estivesse pronto a oferecer, não estaria ao seu alcance permitir que o País parasse.

Finalmente, uma ideia que me faz lembrar 2013: uma revolta política despojada de uma visão real do que fazer, para onde ir.

Não se deve ignorar a presença no movimento de grupos que defendem a intervenção militar. Mesmo ignorados, estão crescendo. É preciso encará-los. Eles estão vendo a mesma decadência política que nós. Só que propõem uma saída absurda, não só pelas condições internas, mas também pelo isolamento internacional que isso representaria para o Brasil.

Foi num precário processo democrático que chegamos até aqui. E por meio dele vamos encontrar uma saída.

Já vi caminhoneiros precipitarem a queda do governo de Salvador Allende, no Chile. Estava defronte ao Palácio de La Moneda quando os aviões o sobrevoavam, anunciando o golpe. Augusto Pinochet acabou como alguns políticos brasileiros, alquebrado, de bengala, sempre nos colocando o dilema: cadeia ou prisão domiciliar para morrer em casa?

Voltar ao passado não é uma solução. É uma espécie de morte viver a História como uma repetição mecânica.

Não deixa de ser estranho ver tanta gente usando a rede social, que ampliou o potencial humano de livre expressão, pedindo uma ditadura militar. É como usar uma boia para se afogar com ela. Já não é apenas viver a História como morte, mas como suicídio.

Estamos num ano eleitoral. O País em frangalhos, uma esfera política desmoralizada, é nessa aridez que teremos de plantar a flor da mudança.

Um poeta consegue plantá-la no asfalto. Nossa tarefa não é tão difícil: derrubar pelo voto a maioria dos picaretas, eleger gente nova e empurrá-la para uma aliança com alguns sobreviventes, para que a inexperiência não venha a pesar tanto nas suas decisões.

Conviver com este governo e com todo o universo político é bastante doloroso. Mas não há alternativa. Em outubro já haverá um novo presidente, um novo Parlamento. Podem não ser ideais. Mas a lição destes anos é de que as más escolhas podem levar o País à desintegração.

Os adeptos do voto nulo deveriam parar um minuto e refletir sobre isso. Não existe outro mundo. Você pode deixar os políticos de lado, mas eles têm o poder de arrasar seu cotidiano.

Por favor, nada de suicídios, como a intervenção, nem masoquismo, como o voto nulo. Pelo menos, vamos tentar sair dessa maré.

Sob Temer, até a sensibilidade humana vira pó

O governo incluiu projetos sociais nos cortes de despesas que teve de fazer para garantir o diesel mais barato a caminhoneiros e a empresas transportadoras. Pense só nisso por um instante. Esqueça todo o resto. Programas sociais com orçamentos ridículos vão virando um escárnio.

Foram passados na lâmina, por exemplo: R$ 4,1 milhões de prevenção contra drogas, R$ 55,1 milhões de universidades, R$ 135 milhões do SUS. Até o saneamento básico e a moradia popular perderam verba.

Experimente colocar os cortes sociais nas suas circunstâncias. Pense na reunião em que os técnicos discutiram as formas de garantir o desconto no diesel. Não ocorreu a ninguém dizer ‘quem sabe na educação e na saúde a gente não mexe!’. Nenhuma voz se levantou para ponderar: ‘gente, cortar no saneamento pode pegar mal.” Alga-se que os cortes foram pequenos. Mas o pouco de quase nada é sempre muito.

O mais trágico não é nem a crueldade. A tragédia está na percepção de que, sob Temer, até a sensibilidade humana vira poeira. Deus, como se sabe, está em toda parte, mas não dá expediente em tempo integral.

O Tesouro somos nós

A Petrobras perdeu mais de uma centena de bilhões de reais em valor de mercado ao não negociar o preço do óleo diesel, ignorando inúmeros sinais de estresse financeiro de um dos seus melhores clientes, os caminhoneiros, responsáveis por 70% do consumo. Afinal, que importância têm os clientes se a empresa estava agindo de modo eficiente, exatamente como manda o mercado, protegendo os interesses de seus acionistas? Os mesmos que agora micam com a desvalorização espetacular de suas ações.

O principal acionista da Petrobras, o que mais perdeu dinheiro com a eficiente gestão na empresa, atende pelo nome de Brasil. Fomos nós, leitor, eu e você, que ficamos com o mico. Sairá de nossa poupança mais da metade deste rombo bilionário. Mas isso não incomoda todo mundo. Muita gente que entende de economia e mercado aplaude a Petrobras e diz que ela apenas cumpriu sua obrigação. Aumentar os combustíveis 229 vezes em dois anos foi razoável, dizem os especialistas.

É verdade que a gestão da empresa foi boa, que a tirou do buraco gigante aberto pela administração anterior. Difícil é explicar como a colocou de volta lá. Como a Petrobras não viu o colapso que se avizinhava? Não foi por falta de sinais. O colunista José Casado mostrou na sua coluna de terça passada que oito avisos foram dados por caminhoneiros e transportadoras ao governo desde outubro de 2014. Só não viu quem não quis. E a Petrobras, que é governo, ficou cega e surda diante da agonia de seus clientes.

Qualquer outra empresa negociaria o quanto fosse necessário para evitar perda desse tamanho. Os especialistas dizem que a Petrobras não percebera que a coisa ficaria tão feia. Pode ser, apesar dos avisos repetidos de que a situação era de desespero do outro lado do balcão, pode ser. Mas, mesmo não enxergando muito longe, era claro que acordos prévios evitariam que a situação de penúria dos clientes chegasse ao ponto de ebulição. Um acerto de preços era recomendável até mesmo como forma de manter os clientes vivos, e consumindo.

As perdas geradas pela imprevidência da Petrobras ainda estão sendo contabilizadas pelos demais setores da economia atingidos com a paralisação do país. Passa dos R$ 32 bilhões o volume de recursos que deixaram de circular nesses últimos dez dias. A arrecadação de impostos caiu R$ 5 bi no período. As atividades industriais foram reduzidas gradativamente e chegaram a 60% da sua capacidade. Embora o setor não tenha a soma feita, o prejuízo deve estar na casa da dezena de bilhões. A agricultura perdeu R$ 6,6 bilhões; o comércio, em cinco estados apenas, perdeu R$ 3,1 bi; o setor de serviços ainda apresentará a sua conta. O Brasil parou, e o prejuízo é astronômico.

E vem mais por aí. Como a Petrobras não negociou, não foi soltando a pressão da panela aos poucos; afinal, a empresa estava fazendo apenas o que manda o mercado, a explosão ocorreu, e o socorro agora vem na forma de subsídios. Os caminhoneiros ganharam tudo o que pediram, de uma vez só. A pergunta é quem arcará com o custo de mais de R$ 13 bilhões? Ora, a conta sairá do Tesouro Nacional, explicou o ministro da Fazenda, Eduardo Guardia. E o que é o Tesouro, caro leitor? O Tesouro somos nós.

Foi Margaret Thatcher quem disse que não existe essa coisa chamada dinheiro público, o que existe é dinheiro arrecadado do bolso dos contribuintes. O Estado não tem nenhuma fonte de dinheiro, a não ser a dos cidadãos. O dinheiro que paga as contas do governo não é do Tesouro, é seu e é meu. Ele apenas é guardado pelo Tesouro para, teoricamente, ser aplicado na melhoria das condições de vida de todos os contribuintes. O dinheiro dos caminhoneiros sairá do Tesouro, nosso bolso, e será depois recomposto por mais impostos, nosso bolso de novo.

O governo, por sua vez, também esperou a explosão para agir. E pagou mais caro na redução de imposto sobre o diesel, na flexibilização do pedágio e com a criação de uma política de preços mínimos para fretes. Acuado, também não soube aplicar o rigor da lei e usar da força quando era flagrante a sua necessidade, como no momento em que a greve foi tomada por “infiltrados”. O ano está perdido, sucumbiu pela eficiente incompetência do governo federal e seu braço petrolífero. Os números do PIB do segundo semestre mostrarão o tamanho do buraco. Mas, tudo bem, temos o Tesouro para pagar a conta.

Ascânio Seleme

Brasil de hoje


A grande lição de maio de 1968

O mês de maio de 1968 continua presente na Europa. Escrevo de Berlim, na Alemanha, onde participo dos debates do Lateinamerika Forum em torno dos 50 anos do movimento que mudou a visão de mundo, ou que alertou para a grande mudança comportamental do século 20, que se estende até hoje.

Na época dividida por um muro em duas cidades – a “comunista” e a “capitalista” –, Berlim (junto com Paris) simbolizou o protesto que engendrou os sonhos dos jovens, meio século atrás. O lado oriental gritava por liberdade. O lado ocidental, por solidariedade.

Em 1968, os alemães já tinham superado os crimes do nazismo e o horror da 2.ª Guerra, mas (com a nação dividida) não se conheciam entre si. Protestavam de forma igual por reivindicações diferentes. Até a repressão era distinta. Ostensiva e dura na oriental República Democrática Alemã (cuja democracia se resumia à denominação), era menos visível e mais sofisticada na ocidental República Federal Alemã. Os porretes das duas polícias, porém, doíam igual...


As duas Alemanhas se reunificaram em 1990, após a “queda do Muro de Berlim” em 1989, buscando liberdade e democracia sem repudiar ou negar o genuinamente alemão, como o raciocínio e a disciplina. Próximo à avenida Karl Marx, o imenso monumento a Marx e Engels está a poucos metros da majestosa beleza da Dom Kirsche, a catedral luterana. Semidestruída na guerra, a reconstrução da igreja começou em pleno governo comunista, adepto do ateísmo. Os vestígios do “Muro” já não são uma ferida. Transformaram-se em curiosidade turística da guerra fria.

A cidade arrasada em 1945, logo reconstruída, hoje é uma só, mas as diferenças persistem. No lado oriental, os edifícios (ministérios, museus e igrejas, casas e apartamentos) foram reconstruídos seguindo as plantas originais, e a arquitetura alemã do tempo dos reis da Prússia ressurge modernizada, transplantada para o presente.

No lado ocidental, modernos prédios de vidros e luzes, compõem uma cidade que se exibia como transparente para – na transparência da democracia – se mostrar superior à outra metade. O exemplo é a a cúpula do Parlamento (projetada por um inglês), da qual se descortina a cidade inteira.

O lado ocidental resume a beleza noturna de Berlim. Cinemas, cafés e restaurantes iluminados, como na Postdamer Platz, núcleo da cidade fascinante dos anos 1920, que rivalizava com Paris. Foi “terra de ninguém” nos anos do muro e, agora, revive até no esquisito prédio da Filarmônica, com acústica perfeita.

O lado oriental resume a beleza diurna de Berlim. O fantástico Pergamon Museum e os demais ao seu redor trazem ao presente as civilizações da Babilônia, Grécia ou Roma, ou até o homem pré-histórico. Na Alexander Platz, a imensa torre de TV da antiga parte oriental ainda hoje é a mais alta construção da Europa. A soma faz de Berlim a capital cultural da Europa.

As avenidas e ruas (com poucos carros e muitas bicicletas) têm mão dupla. Dobra-se à esquerda ou à direita em ordem, sem congestionamentos nem buzinas. Os ônibus e trens do metrô (ou os modernos bondes do lado oriental) passam de 5 em 5 minutos. E para entrar ninguém se empurra. Cheia de jardins e parques, cuida-se de tudo em Berlim. Das árvores, da fuligem, da navegação no Rio Spree. Não há a ânsia brasileira por alimentos industrializados, com cor e sabor artificiais.

Por isso, já ao chegar percebi que minha vivência de cidadão brasileiro nada tinha a ensinar aos alemães, e que só podia aprender com eles.

No Brasil, somos uma sociedade em desconstrução, como se estivéssemos em busca de nossas ruínas. A corrupção dominante entre nós – dos grandes aos pequenos corruptos do cotidiano – é impensável para os alemães. As bicicletas são guardadas nas calçadas, às centenas. Os roubos são raríssimos. Os escândalos no setor público são apenas exceções confirmando o adágio de que “não há regra sem exceção”.

A capacidade de reconstruir a partir do zero, ou do quase nada, é o grande exemplo que brota da Berlim arrasada ao final da 2.ª Guerra. No Brasil, arrasou-se o comportamento dos governantes e seus sócios do setor privado e a reconstrução não será material, mas ética e comportamental. Mas também a Alemanha se reconstruiu moralmente e sepultou o velho fanatismo nazista do culto ao ditador supremo, o Führer.

Hitler via Berlim como “a capital ariana de mil anos”, mas, hoje, tudo recorda o horror do nazismo. Nas ruas, alemães negros, ou muçulmanas de véu, mostram um país multirracial. O passado é guia para não repetir o horror do preconceito. O imponente Portão de Brandenburgo (marca da Prússia Imperial) hoje leva ao Memorial do Holocausto, um labirinto de tumbas transformadas em arte que mostra o mais trágico crime do século 20. No bucólico bairro de Treptow, o cemitério-memorial dos 20 mil soldados soviéticos mortos na batalha da cidade, é um monumento à vida e à paz, não à guerra ou à morte.

Antes ainda da “queda do Muro”, o então presidente da Alemanha Ocidental, Richard Von Weizsäcker (filho da velha nobreza), cunhou uma frase fundamental: “Em maio de 1945 não fomos derrotados, mas libertados”.

A crise mundial e os desafios dos últimos anos, porém, desgastaram os dois grandes partidos que desde o pós-guerra se revezam no poder (conservadores e socialistas) e rebrota uma direita neonazista prometendo o paraíso como “alternativa” à democracia. E o pior de tudo (como adverte uma peça teatral que faz furor na cidade), um neonazismo financiado com os milhões do fundo partidário, dinheiro do povo.

Também nisso temos de aprender com o alerta dos alemães, de olho em nossos neonazistas nas eleições de 2018.

Parente perigoso

Todas as vezes que ouvir falar em “recurso estratégico”, ponha a mão no bolso e segure a carteira: alguém, com certeza, está querendo roubar você. Pode ser gente do governo — tanto faz que seja da situação ou da oposição. Podem ser sindicatos e CUTs. Podem ser, certamente, empreiteiros de obras públicas loucos para construir refinarias, “complexos industriais” e “plantas” disto ou daquilo. Podem ser todos os economistas do “campo progressista”, sem exceção. Podem ser intelectuais, professores de universidade, artistas de novela. Existe à vista alguma coisa que possa ter um valor qualquer? Então, dizem todos os nomeados acima, é “estratégico”. Se é estratégico ninguém pode mexer: a coisa tem de ser “do Estado”, ou do governo. Como tanto o “Estado” quanto o “governo” são uma ideia e não um ser humano, a exemplo do ex-presidente Lula, isso quer dizer, obrigatoriamente, que gente de muita carne e muito osso vai mandar nela. Também obrigatoriamente, essa gente vai criar empresas imensas para cuidar da riqueza da “população”, lotar cada uma delas com funcionários amigos e roubar o pobre do “recurso estratégico” até não sobrar um único osso.


A esquerda nacional, historicamente, é a mãe desnaturada dos gêmeos “bem estratégico” e “empresa estatal”, mas os beneficiários materiais de sua doutrina não são apenas os esquerdistas. Como acontece com tanta frequência na aplicação das ideias “progressistas”, entra na festa todo o tipo de safado que a elite brasileira tem a oferecer — com o tempo, na verdade, vai se descobrindo que é justamente esse bonde do capitalismo terceiro-mundista, tão selvagem quanto a selva no inferno de Dante, quem mais ganha dinheiro com a história de que “o Brasil tem de defender as suas riquezas da cobiça internacional” etc, etc,. Vale qualquer coisa, aí. Está na cara que temos de estatizar tudo o que passar pela frente, do trióxido de molibdênio à cachaça 51, pregam os arquiduques do “Brasil forte” — assim fica tudo só para nós. Simples demais? Pode ser simples, mas não é demais: é apenas a verdade estabelecida pela observação dos fatos, diante da roubalheira que chegou ao ponto de fissão nuclear a partir dos governos Lula-Dilma e que tanta gente está hoje desesperada para colocar de novo em operação.

Em nenhum espaço da vida brasileira a ação dos saqueadores se mostra tão desesperada quanto no petróleo e na Petrobras. Trata-se, possivelmente, da área em que o brasileiro é roubado há mais tempo — espantosamente, desde 1953. Depois da implosão do PT, a Petrobras tem passado com excelentes resultados por um processo de reconstrução. O governo Michel Temer desistiu de encher a empresa de políticos-bandidos, o que deixa absolutamente transtornados os presidentes do Senado, da Câmara e as gangues do Congresso, e permitiu que um executivo de talento, Pedro Parente, tocasse a máquina como ela deve ser tocada. Deu certo. Parente salvou a estatal da falência e criou ali uma cultura de competência, responsabilidade e resultados. É claro que os políticos, de Lula ao extremo anti-Lula, querem matar esse Parente.

O pano de fundo da greve dos caminhoneiros, que tanto barulho levantou, é a guerra entre a liberdade econômica e as forças que querem continuar controlando o petróleo e os combustíveis no Brasil. Na superfície é uma disputa por preços, eliminação de impostos dementes e questões financeiras imediatas — por sinal esses caminhoneiros, onde Lula e a esquerda são detestados, mostraram uma capacidade de juntar gente e mostrar força infinitamente maiores que a “mobilização social” em favor do “Lula Livre”. (A multidão que iria cercar a prisão “até Lula ser solto” nunca passou de 500 pessoas, e hoje está reduzida a nada. Virou uma palhaçada de artistas que agora usam Lula para promover seus shows.) Para além da greve, porém, está a discussão verdadeira: o fim da Petrobras e similares, o estabelecimento da livre concorrência e a construção de um Brasil com chances de progredir.

Do esgoto ao livro

Em setembro do ano passado, o Governo do Rio de Janeiro lançou um edital para pregão eletrônico através do qual contrataria uma “empresa especializada na prestação de serviços de apoio técnico-administrativo para atender as necessidades da Rede de Bibliotecas Parque”.

O resultado desse certame foi publicado no Diário Oficial do Estado do último dia 18. Por R$ 4,2 milhões, a empresa escolhida (e homologada) foi Liderança Limpeza e Conservação Ltda, empresa com sede em São José, no interior catarinense inscrita sob o CNPJ 00.482.840/0001-38. O curioso é que, como se vê no Comprovante de Inscrição e de Situação Cadastral desse CNPJ (na imagem abaixo), a empresa é especializada, dentre outras coisas, em “criação de animais de estimação”, “atividades relacionadas a esgoto”, “coleta de resíduos não-perigosos”, "comércio varejista de bebidas" etc... Mas, segundo consta no edital a empresa vai ser responsável pela contratação de 64 profissionais, entre eles bibliotecários, mediadores sociais e coordenador do Educativo, Programação e Conteúdo.

O período de vigência do contrato é de 12 meses e está embarcado nele as atividades das bibliotecas-parque Estadual, de Manguinhos e da Rocinha.

Especialistas ouvidos pelo PublishNews avaliaram a medida equivocada não só pela falta de especialização por parte da empresa, mas também pelo número de funcionários insuficiente. Quando operava a pleno vapor, a Biblioteca Parque Estadual sozinha mobilizava um contingente de 110 funcionários.

A rede de Bibliotecas Parque do Rio é composta por três unidades: a da Rocinha, a de Manguinhos e a Estadual, as duas últimas fechadas.. A Biblioteca Parque Estadual, localizada no centro da capital fluminense, está fechada desde dezembro de 2016. Com a realização lá do LER – Salão Carioca do Livro, renovou-se a esperança de reabertura da casa. Na cerimônia, o secretário Leandro Sampaio, da Cultura, chegou a dar uma data de reabertura da biblioteca: 28 de maio, ontem. De acordo com o site da própria secretaria, o equipamento encontra-se ainda temporariamente fechado, conforme imagem abaixo. Na mesma ocasião, o responsável pela pasta disse que para funcionar, o espaço seria preenchido com funcionários da própria secretaria.

Para conseguir reabrir a biblioteca da Avenida Presidente Vargas, o governo fluminense vem negociando com o Centro de Memória da Eletricidade no Brasil um acordo que poderá resultar na cessão do prédio ocupado pela biblioteca à entidade cultural mantida por empresas do setor elétrico. Em janeiro passado foi assinado um protocolo de intenções neste sentido, mas diferentemente do que o PublishNews publicou originalmente, os termos dessa cessão e suas contrapartidas ainda não foram estabelecidos, segundo informou à redação a assessoria de imprensa do Centro de Memória da Eletricidade.

Leonardo Neto