Na época dividida por um muro em duas cidades – a “comunista” e a “capitalista” –, Berlim (junto com Paris) simbolizou o protesto que engendrou os sonhos dos jovens, meio século atrás. O lado oriental gritava por liberdade. O lado ocidental, por solidariedade.
Em 1968, os alemães já tinham superado os crimes do nazismo e o horror da 2.ª Guerra, mas (com a nação dividida) não se conheciam entre si. Protestavam de forma igual por reivindicações diferentes. Até a repressão era distinta. Ostensiva e dura na oriental República Democrática Alemã (cuja democracia se resumia à denominação), era menos visível e mais sofisticada na ocidental República Federal Alemã. Os porretes das duas polícias, porém, doíam igual...
As duas Alemanhas se reunificaram em 1990, após a “queda do Muro de Berlim” em 1989, buscando liberdade e democracia sem repudiar ou negar o genuinamente alemão, como o raciocínio e a disciplina. Próximo à avenida Karl Marx, o imenso monumento a Marx e Engels está a poucos metros da majestosa beleza da Dom Kirsche, a catedral luterana. Semidestruída na guerra, a reconstrução da igreja começou em pleno governo comunista, adepto do ateísmo. Os vestígios do “Muro” já não são uma ferida. Transformaram-se em curiosidade turística da guerra fria.
A cidade arrasada em 1945, logo reconstruída, hoje é uma só, mas as diferenças persistem. No lado oriental, os edifícios (ministérios, museus e igrejas, casas e apartamentos) foram reconstruídos seguindo as plantas originais, e a arquitetura alemã do tempo dos reis da Prússia ressurge modernizada, transplantada para o presente.
No lado ocidental, modernos prédios de vidros e luzes, compõem uma cidade que se exibia como transparente para – na transparência da democracia – se mostrar superior à outra metade. O exemplo é a a cúpula do Parlamento (projetada por um inglês), da qual se descortina a cidade inteira.
O lado ocidental resume a beleza noturna de Berlim. Cinemas, cafés e restaurantes iluminados, como na Postdamer Platz, núcleo da cidade fascinante dos anos 1920, que rivalizava com Paris. Foi “terra de ninguém” nos anos do muro e, agora, revive até no esquisito prédio da Filarmônica, com acústica perfeita.
O lado oriental resume a beleza diurna de Berlim. O fantástico Pergamon Museum e os demais ao seu redor trazem ao presente as civilizações da Babilônia, Grécia ou Roma, ou até o homem pré-histórico. Na Alexander Platz, a imensa torre de TV da antiga parte oriental ainda hoje é a mais alta construção da Europa. A soma faz de Berlim a capital cultural da Europa.
As avenidas e ruas (com poucos carros e muitas bicicletas) têm mão dupla. Dobra-se à esquerda ou à direita em ordem, sem congestionamentos nem buzinas. Os ônibus e trens do metrô (ou os modernos bondes do lado oriental) passam de 5 em 5 minutos. E para entrar ninguém se empurra. Cheia de jardins e parques, cuida-se de tudo em Berlim. Das árvores, da fuligem, da navegação no Rio Spree. Não há a ânsia brasileira por alimentos industrializados, com cor e sabor artificiais.
Por isso, já ao chegar percebi que minha vivência de cidadão brasileiro nada tinha a ensinar aos alemães, e que só podia aprender com eles.
No Brasil, somos uma sociedade em desconstrução, como se estivéssemos em busca de nossas ruínas. A corrupção dominante entre nós – dos grandes aos pequenos corruptos do cotidiano – é impensável para os alemães. As bicicletas são guardadas nas calçadas, às centenas. Os roubos são raríssimos. Os escândalos no setor público são apenas exceções confirmando o adágio de que “não há regra sem exceção”.
A capacidade de reconstruir a partir do zero, ou do quase nada, é o grande exemplo que brota da Berlim arrasada ao final da 2.ª Guerra. No Brasil, arrasou-se o comportamento dos governantes e seus sócios do setor privado e a reconstrução não será material, mas ética e comportamental. Mas também a Alemanha se reconstruiu moralmente e sepultou o velho fanatismo nazista do culto ao ditador supremo, o Führer.
Hitler via Berlim como “a capital ariana de mil anos”, mas, hoje, tudo recorda o horror do nazismo. Nas ruas, alemães negros, ou muçulmanas de véu, mostram um país multirracial. O passado é guia para não repetir o horror do preconceito. O imponente Portão de Brandenburgo (marca da Prússia Imperial) hoje leva ao Memorial do Holocausto, um labirinto de tumbas transformadas em arte que mostra o mais trágico crime do século 20. No bucólico bairro de Treptow, o cemitério-memorial dos 20 mil soldados soviéticos mortos na batalha da cidade, é um monumento à vida e à paz, não à guerra ou à morte.
Antes ainda da “queda do Muro”, o então presidente da Alemanha Ocidental, Richard Von Weizsäcker (filho da velha nobreza), cunhou uma frase fundamental: “Em maio de 1945 não fomos derrotados, mas libertados”.
A crise mundial e os desafios dos últimos anos, porém, desgastaram os dois grandes partidos que desde o pós-guerra se revezam no poder (conservadores e socialistas) e rebrota uma direita neonazista prometendo o paraíso como “alternativa” à democracia. E o pior de tudo (como adverte uma peça teatral que faz furor na cidade), um neonazismo financiado com os milhões do fundo partidário, dinheiro do povo.
Também nisso temos de aprender com o alerta dos alemães, de olho em nossos neonazistas nas eleições de 2018.
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