sábado, 27 de abril de 2024

Sem passaporte, monitorado pela Polícia Federal e à espera do pior

Melhor Jair Bolsonaro esperar sentado a devolução do seu passaporte apreendido em 8 de fevereiro passado pela Polícia Federal por ordem do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, que preside o inquérito sobre atos hostis à democracia.

Sentado, não, melhor que ele espere deitado. E que sua defesa não perca tempo em pedir outra vez a liberação do documento. Moraes não tem pressa em responder a qualquer pedido, e muito menos disposição para restabelecer as condições de ir e vir de Bolsonaro.

Ir e vir dentro do Brasil, sem problema. Bolsonaro goza de pleno direito desde que respeite certas restrições. Por exemplo: está proibido de se comunicar com os outros investigados. Não é aconselhável que volte a investir contra a justiça como já fez tantas vezes.


Ir para o exterior tiraria Bolsonaro do radar imediato da Polícia Federal. Ele pode não notar, mas é monitorado o tempo inteiro. Uma vez no exterior, em território governado pela extrema-direita, talvez desejasse ficar por lá sem data de retorno. Férias? Exílio?

Vai saber o que se passa na cabeça dele. Nem aos filhos ele confessa. Todos se disseram surpreendidos com a decisão do pai de aproveitar parte do carnaval para refugiar-se na embaixada da Hungria no Brasil. Só não surpreendeu Carlos, que o visitou por lá às escondidas.

Carlos, sempre Carlos. É o filho mais ligado a Bolsonaro, e o mais problemático. É também aquele que o pai machuca sem piedade. Bolsonaro o obrigou a candidatar-se a vereador para derrotar a própria mãe que pretendia se reeleger vereadora, e ele a derrotou com os votos do pai.

Bolsonaro não admite, mas está preocupado com sua capacidade em declínio de atrair multidões. Com as chaves dos cofres públicos nas mãos, e o poder que o cargo de presidente lhe conferia, era-lhe fácil reunir gente aonde quer que fosse e para o que quisesse.

De resto, a expectativa de manter-se no poder operava a seu favor. Essa expectativa transferiu-se para seu sucessor. E Bolsonaro vive hoje a contar os meses, os dias e as horas que o separam de uma mais do que certa condenação. Se fosse condenado só pelo golpe que fracassou…

Se fosse só por isso, o que não seria pouco, se declararia preso político, vítima de uma injustiça. Seguiria repetindo a cantilena de que não planejou golpe algum, de que golpe não se faz sem armas e tanques nas ruas, e coisa e tal. No máximo, houve uma proposta de golpe.

Mas ser também condenado por roubar joias do acervo presidencial, falsificar atestados de vacinação contra a Covid, e sabe-se lá mais o quê… Moraes revelará quando chegar o momento. E as provas serão tão fartas que a falação de Bolsonaro será rebaixada à condição de mimimi.

Assim foi Auschwitz

Partimos do campo de concentração de Fossoli, em Carpi (Módena), em 22 de fevereiro de 1944, num comboio de 650 judeus de ambos os sexos e de todas as idades. O mais velho ultrapassava oitenta anos, o mais novo era um bebê de três meses. Muitos estavam doentes, e alguns gravemente: um senhor de setenta anos, que tivera uma hemorragia cerebral poucos dias antes da partida, também embarcou no trem e morreu durante a viagem.

O trem era composto apenas por vagões de transporte de gado, fechados pelo lado de fora; em cada vagão, foram amontoadas mais de cinquenta pessoas, a maioria delas trazendo tudo o que conseguira de malas, porque um primeiro sargento alemão, empregado do campo de Fossoli, havia nos sugerido, com ar dequem dava um conselho desinteressado e afetuoso, que nos provêssemos de muitas roupas pesadas — malhas, cobertores, casacos de pele — porque seríamos levados para regiões de clima mais rigoroso do que o nosso. E acrescentara, com um sorrisinho benévolo e uma piscadela irônica, que, se alguém tivesse dinheiro ou joias escondidas, faria bem em levá‑los, pois lá certamente seriam úteis. A maioria dos que partiam mordera a isca, seguindo um conselho que escondia uma cilada vulgar; outros, pouquíssimos, preferiram confiar seus bens a algum particular com livre acesso ao Campo; outros ainda, que no ato da prisão não tiveram tempo de providenciar mudas de roupa, partiram apenas com o que vestiam.

A viagem de Fossoli para Auschwitz durou exatamente quatro dias; e foi muito penosa, sobretudo por causa do frio, que era tão intenso, especialmente na madrugada. Ao amanhecer, as tubulações de metal no interior dos vagões estavam cobertas de gelo, devido ao vapor da respiração que se condensava sobre elas. Outro tormento era a sede, que só podia ser aplacada com a neve recolhida na única parada do dia, quando o comboio se detinha em território neutro e os viajantes eram autorizados a descer dos vagões, sob a rigorosíssima vigilância de numerosos soldados, com a metralhadora sempre apontada, prontos a abrir fogo contra qualquer um que fizesse menção de se afastar do trem.

Durante essas curtas paradas, a distribuição dos alimentos era feita de vagão em vagão: pão, geleia e queijo; nunca água nem outro líquido. As possibilidades de dormir eram reduzidas ao mínimo, pois as malas e trouxas se amontoavam no chão e não permitiam que ninguém se ajeitasse numa posição cômodae propícia ao descanso; todo viajante devia se satisfazer em ficar agachado da maneira menos pior possível, num espaço reduzidíssimo. O piso dos vagões estava sempre molhado e não foi providenciado nem sequer um pouco de palha para cobri‑lo.

Assim que o trem chegou a Auschwitz (eram aproximadamente 21 horas de 26 de fevereiro de 1944), os vagões foram rapidamente esvaziados por numerosos ss, armados com pistolas e cassetetes; e os viajantes, obrigados a colocar malas, trouxas e cobertas ao longo do trem. A comitiva foi logo dividida em três grupos: um primeiro de homens jovens e aparentemente aptos, integrado por 95 indivíduos; um segundo de mulheres, também jovens — grupo pequeno, composto de apenas 29 pessoas —, e um terceiro, o mais numeroso de todos, com crianças, inválidos e idosos. Enquanto os dois primeiros foram encaminhados separadamente para diversos campos, há razão para crer que o terceiro foi conduzido diretamente para a câmara de gás de Birkenau e seus integrantes, trucidados na mesma noite.
Primo Levi