sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018
Qual é o plano?
Há apoio popular à intervenção federal no Estado do Rio de Janeiro. E isso é inegável. Mais que aflita, a população está em pânico, com a percepção de aumento da violência urbana. E não apenas no Rio de Janeiro. O entendimento é de que os governos estaduais perderam a guerra da segurança pública. Michel Temer encontrou, desse modo, a chance de trocar uma pauta impopular — a da Reforma da Previdência — por outra populista, a da Segurança. O presidente procura, assim, o seu Plano Cruzado?
Sim, o problema é sério. Mas, o populismo e o sensacionalismo em momentos como este são péssimos conselheiros. O maior risco que o país corre é que a medida não seja apenas ousada, que seja, sobretudo, impensada. Feita como simples reação às cenas da televisão, um truque eleitoral, com efeito de curtíssimo prazo. Os efeitos podem ser desastrosos.
Mesmo que se mitigue de imediato os problemas mais visíveis — sabe-se lá a que custos, pois o exército não é preparado para o policiamento urbano —, se não houver um plano de longo prazo, os riscos serão enormes. Do limão, o presidente pode fazer um vinagre muito mais amargo.
O primeiro desses riscos é o do fracasso; simplesmente não resolver o problema e ainda consumir vidas e recursos num processo sem efeito prático. Junto com a desesperança, o pavor pode aumentar levando à população ao salve-se quem puder.
O segundo risco, seria gerar uma reação contrária das polícias. Sabe-se que, infelizmente, elas são, em grande medida, parte do problema. Nem todo policial é corrupto, mas é notório que a corrupção viceja em parcelas da corporação. Em momento assim, é sempre possível que ''os esquemas'' reajam boicotando a intervenção. Qual o plano que o governo federal possui para evitar isso?
O terceiro risco — e não menos problemático — será libertar da garrafa o gênio da truculência, da violência e do Estado policial. Em busca de mais autoridade e força, o país derivar para o autoritarismo de soluções fáceis que sempre supõem que o Exército nas ruas é solução para todos os males. Não é. Ficaria aí, além do risco para a Segurança, também o risco para a liberdade.
Nessa altura, o leitor apreensivo e nervoso já deve se perguntar ''o que esse babaca sugere, então, fazer?'' Como dar conta da questão da violência urbana, que é real e urgente? Tem razão. Mas, nada é muito simples e menos ainda de efeito imediato.
Ora, se de fato ''o crime organizado quase tomou conta do Rio de Janeiro'', como afirmou Michel Temer, a pergunta que se faz gira em torno de quais serão os meios, afinal, com que o presidente pretende desbaratá-lo.
Crime organizado se combate com inteligência e estratégia, não exatamente com tropas militares — ou apenas tropas militares. Requer identificar os grupos de criminosos, asfixiá-los financeira e operacionalmente; capturar seus líderes, ocupar o espaço territorial transmitindo segurança e assistência à população carente. Criar instrumentos de controle e policiamento sistemático para que o crime não recrudesça à frente.
A questão da bandidagem mais simples, que ocupa praias e avenidas barbarizando os cidadãos, deve ser enfrentada com policiamento ostensivo e ocupação de seus territórios. Ainda que o auxílio de tropas federais possa ser necessário, usar o Exército com seus tanques pode corresponder a algo como caçar passarinho com bala de canhão: é tão destruidor quanto inútil.
Para o caso das polícias, a intervenção deve ser de outra ordem. Primeiro, trocando comandos, quando for o caso. Depois, resolvendo os problemas de salários e prêmios atrasados. Investimentos pesados em recrutamento, seleção, equipamento e novas tecnologias. Uma nova academia, com nova concepção de polícia. Nada simples, é claro.
Em paralelo, enfrentar o sempre evitado do controle das fronteiras. Se esses grupos se valem de drogas e armas pesadas, esse material não brota do chão. Isto tudo vem de fora. Tratam-se, antes de tudo, de crimes federais cuja responsabilidade cabe mesmo ao governo federal. E o que diz Michel Temer a respeito disto?
Além disto, há o problema dos outros estados. Infelizmente, a questão da insegurança público não é exclusividade do Rio de Janeiro, como já disse. Vários estados estão à mingua, com enormes dificuldades de honrar folhas de pagamento — quanto mais de remunerar adequadamente o trabalho policial. Culpa de quem, nessa altura do campeonato, nem interessa mais. É preciso resolver.
Qual a política para os demais estados?
Nesse sentido, um projeto para reforma das policias militar e civil deveria ser seriamente discutido. Mesmo ao custo de contrariar os interesses da chamada ''bancada da bala''. O que o governo que acabou de decretar a intervenção num estado da União pensa a respeito disto?
Pura e simplesmente criar mais um ministério — o Ministério da Segurança — sem que estas questões estejam claras e encaminhadas pode até contentar o senso comum e os que estão em pânico, mas dificilmente resolverá a questão. Notícias da manhã desta segunda-feira informavam que o presidente da República se reuniria com seus marqueteiros para tratar do tema. Seriam eles os conselheiros mais adequados?
Não é impossível que o governo Temer possua de fato respostas para todas estas questões. E para muitas outras. Há, no Brasil, sobretudo, no Rio, uma considerável quantidade de especialistas, de elevada qualidade, que estuda seriamente e há décadas esta questão — o que não é meu caso. Gente que não nasceu ontem e que já demonstrou que a solução do problema requer algo muito mais complexo e de longo prazo do que um general no comando da Secretaria, por mais respeitável que seja.
É possível que o governo tenha respostas para esses também. Possível, mas duvidoso, pois nada disso veio a público com o anúncio ou com a repercussão a respeito da intervenção federal. O que se viu foi um presidente, sem popularidade, pegando carona numa questão popular. Expressando-se num discurso rápido e fácil. Pleno de clichês e chavões. No entanto, o país precisa saber de Michel Temer qual, afinal, é o seu plano.
Carlos Melo
Sim, o problema é sério. Mas, o populismo e o sensacionalismo em momentos como este são péssimos conselheiros. O maior risco que o país corre é que a medida não seja apenas ousada, que seja, sobretudo, impensada. Feita como simples reação às cenas da televisão, um truque eleitoral, com efeito de curtíssimo prazo. Os efeitos podem ser desastrosos.
O primeiro desses riscos é o do fracasso; simplesmente não resolver o problema e ainda consumir vidas e recursos num processo sem efeito prático. Junto com a desesperança, o pavor pode aumentar levando à população ao salve-se quem puder.
O segundo risco, seria gerar uma reação contrária das polícias. Sabe-se que, infelizmente, elas são, em grande medida, parte do problema. Nem todo policial é corrupto, mas é notório que a corrupção viceja em parcelas da corporação. Em momento assim, é sempre possível que ''os esquemas'' reajam boicotando a intervenção. Qual o plano que o governo federal possui para evitar isso?
O terceiro risco — e não menos problemático — será libertar da garrafa o gênio da truculência, da violência e do Estado policial. Em busca de mais autoridade e força, o país derivar para o autoritarismo de soluções fáceis que sempre supõem que o Exército nas ruas é solução para todos os males. Não é. Ficaria aí, além do risco para a Segurança, também o risco para a liberdade.
Nessa altura, o leitor apreensivo e nervoso já deve se perguntar ''o que esse babaca sugere, então, fazer?'' Como dar conta da questão da violência urbana, que é real e urgente? Tem razão. Mas, nada é muito simples e menos ainda de efeito imediato.
Ora, se de fato ''o crime organizado quase tomou conta do Rio de Janeiro'', como afirmou Michel Temer, a pergunta que se faz gira em torno de quais serão os meios, afinal, com que o presidente pretende desbaratá-lo.
Crime organizado se combate com inteligência e estratégia, não exatamente com tropas militares — ou apenas tropas militares. Requer identificar os grupos de criminosos, asfixiá-los financeira e operacionalmente; capturar seus líderes, ocupar o espaço territorial transmitindo segurança e assistência à população carente. Criar instrumentos de controle e policiamento sistemático para que o crime não recrudesça à frente.
A questão da bandidagem mais simples, que ocupa praias e avenidas barbarizando os cidadãos, deve ser enfrentada com policiamento ostensivo e ocupação de seus territórios. Ainda que o auxílio de tropas federais possa ser necessário, usar o Exército com seus tanques pode corresponder a algo como caçar passarinho com bala de canhão: é tão destruidor quanto inútil.
Para o caso das polícias, a intervenção deve ser de outra ordem. Primeiro, trocando comandos, quando for o caso. Depois, resolvendo os problemas de salários e prêmios atrasados. Investimentos pesados em recrutamento, seleção, equipamento e novas tecnologias. Uma nova academia, com nova concepção de polícia. Nada simples, é claro.
Em paralelo, enfrentar o sempre evitado do controle das fronteiras. Se esses grupos se valem de drogas e armas pesadas, esse material não brota do chão. Isto tudo vem de fora. Tratam-se, antes de tudo, de crimes federais cuja responsabilidade cabe mesmo ao governo federal. E o que diz Michel Temer a respeito disto?
Além disto, há o problema dos outros estados. Infelizmente, a questão da insegurança público não é exclusividade do Rio de Janeiro, como já disse. Vários estados estão à mingua, com enormes dificuldades de honrar folhas de pagamento — quanto mais de remunerar adequadamente o trabalho policial. Culpa de quem, nessa altura do campeonato, nem interessa mais. É preciso resolver.
Qual a política para os demais estados?
Nesse sentido, um projeto para reforma das policias militar e civil deveria ser seriamente discutido. Mesmo ao custo de contrariar os interesses da chamada ''bancada da bala''. O que o governo que acabou de decretar a intervenção num estado da União pensa a respeito disto?
Pura e simplesmente criar mais um ministério — o Ministério da Segurança — sem que estas questões estejam claras e encaminhadas pode até contentar o senso comum e os que estão em pânico, mas dificilmente resolverá a questão. Notícias da manhã desta segunda-feira informavam que o presidente da República se reuniria com seus marqueteiros para tratar do tema. Seriam eles os conselheiros mais adequados?
Não é impossível que o governo Temer possua de fato respostas para todas estas questões. E para muitas outras. Há, no Brasil, sobretudo, no Rio, uma considerável quantidade de especialistas, de elevada qualidade, que estuda seriamente e há décadas esta questão — o que não é meu caso. Gente que não nasceu ontem e que já demonstrou que a solução do problema requer algo muito mais complexo e de longo prazo do que um general no comando da Secretaria, por mais respeitável que seja.
É possível que o governo tenha respostas para esses também. Possível, mas duvidoso, pois nada disso veio a público com o anúncio ou com a repercussão a respeito da intervenção federal. O que se viu foi um presidente, sem popularidade, pegando carona numa questão popular. Expressando-se num discurso rápido e fácil. Pleno de clichês e chavões. No entanto, o país precisa saber de Michel Temer qual, afinal, é o seu plano.
Carlos Melo
Ruim com ela, pior sem ela
Como quase todo mundo da minha geração, eu também cresci sem saber nada sobre a Índia. As escolas pouco ou nada ensinavam sobre o outro lado do mundo; cada qual que descobrisse por si o que lhe interessava. Passei a maior parte da vida familiarizada com os clichês habituais — pobreza, yoga, gurus, vacas sagradas. Por causa do movimento da não agressão de Gandhi, e da sua figura ascética, imaginava uma terra de grande paz, e levei um choque quando comecei a ler a sério sobre o país. Como assim, mais de um milhão de mortos durante a partição? Como assim, intolerância religiosa? E estupros? E assassinatos? Onde ficava a não violência nisso? Eu não tinha parado para pensar que é preciso muita violência para dar origem a um movimento de não violência: não seria numa aldeia dinamarquesa ou num cantão suíço que alguém teria essa ideia.
Desde que entendi isso, passei a entender muita coisa. Uma ficha tão simples, que demorou tanto a cair na minha cabeça.
Hoje, no Rio, somos todos especialistas em segurança pública.
Todos nos consideramos aptos a palpitar sobre a intervenção, sobre o que deve ser feito e como e quando. E o pior é que, de certa forma, somos todos abalizados. Convivemos com a falta de segurança desde sempre, já estivemos todos ou quase todos sob a mira de armas, já vimos o exército entrar e sair da cidade inúmeras vezes, achamos a coisa mais normal ver um carro da polícia circulando com canos de fuzis saindo pelas janelas, enquanto a tiragem lá dentro conversa despreocupadamente. Desenvolvemos habilidades e estratégias, criamos e consultamos aplicativos e rezamos para voltar vivos para casa, mesmo quando somos ateus.
Ao mesmo tempo, incorporamos a violência de uma forma bizarra. O exemplo mais extremo é a naturalidade com que aceitamos a contravenção na direção das escolas de samba, e as suas relações incestuosas com o poder. Participamos de corpo e alma dos desfiles, optando por não lembrar como são financiados. Mas essa complacência vai além do carnaval, e está presente o ano inteiro no nosso cotidiano de malandragem, no absoluto desprezo que devotamos às regras básicas da cidadania: pequenas coisas que não matam ninguém, mas que compõem um coquetel tóxico de incivilidade.
Entrar na fila, respeitar a sinalização? Ora, imaginem. O barzinho que funciona até altas horas na zona residencial é bacana, o barulho da praça que não deixa ninguém dormir é sinal de alegria, o bloco que invade o aeroporto aos berros é apenas contestador porque grita “Fora Temer!”, e gritar “Fora Temer!” é sinal verde para qualquer transgressão. Pichação é manifestação de inconformismo e não deve ser reprimida, quebrar equipamento público é válido, destruir canteiros e jardins não é nada porque, afinal, o mundo é cruel.
A violência e a incompetência do estado, inquestionáveis há décadas, servem no Rio como justificativa para um comportamento coletivo cada vez mais antissocial e selvagem, uma espécie de buraco negro da cidadania. Como o Estado não faz a parte dele, achamos razoável que a população não faça a sua, sem perceber para onde nos leva essa espiral de desordem.
Há dias não faço outra coisa a não ser ouvir sobre a intervenção, conversar sobre a intervenção, ler sobre a intervenção. Alguma coisa tinha que ser feita no nosso estado desgovernado, e afinal alguma coisa foi feita; por isso, em princípio, não sou contra ela, ainda que as suas intenções sejam questionáveis. Mas ou ela é para valer, e vai em cima da polícia e dos verdadeiros chefões das quadrilhas, ou não vai adiantar nada: ou ela desmantela a estrutura corrompida da segurança no Rio de Janeiro, ou logo teremos, além da violência do dia a dia, um exército desmoralizado. E ou ela se faz para todos, respeitando igualmente toda a população, ou vai criar uma situação injusta e insustentável. É uma cartada perigosa, um band-aid em cima de uma ferida que só uma longa cirurgia resolverá.
O Rio virou um estado tão sem-vergonha que o presidiário Sérgio Cabral sequer se deu conta de que estava fazendo uma confissão de culpa ao pedir transferência de Curitiba, alegando que, com a intervenção, o sistema carcerário ficará por conta do governo federal. Que cara de pau.
Do Facebook: “Imagina uma mulher sozinha à noite em casa porque o marido trabalha à noite e com duas filhas ela ser obrigada a abrir a porta e entra mais de dez homens armados e falar que não vai fazer nada só dormir e esta mulher se trancar no quarto com as filhas e ela ter que acalmar as filhas para não chorar e as meninas ficarem vomitando de nervoso e passarem a noite toda trancadas com medo sem saber o que poderia acontecer e pela manhã só ouvir a porta batendo e sair pra ver se já foram embora e ver que tudo que tinha que já era pouco biscoitos leite suco danone tudo que podia ser comido eles comeram e a pessoa não saber se na noite seguinte eles voltariam ou na outra.”
Desde que entendi isso, passei a entender muita coisa. Uma ficha tão simples, que demorou tanto a cair na minha cabeça.
Hoje, no Rio, somos todos especialistas em segurança pública.
Todos nos consideramos aptos a palpitar sobre a intervenção, sobre o que deve ser feito e como e quando. E o pior é que, de certa forma, somos todos abalizados. Convivemos com a falta de segurança desde sempre, já estivemos todos ou quase todos sob a mira de armas, já vimos o exército entrar e sair da cidade inúmeras vezes, achamos a coisa mais normal ver um carro da polícia circulando com canos de fuzis saindo pelas janelas, enquanto a tiragem lá dentro conversa despreocupadamente. Desenvolvemos habilidades e estratégias, criamos e consultamos aplicativos e rezamos para voltar vivos para casa, mesmo quando somos ateus.
Ao mesmo tempo, incorporamos a violência de uma forma bizarra. O exemplo mais extremo é a naturalidade com que aceitamos a contravenção na direção das escolas de samba, e as suas relações incestuosas com o poder. Participamos de corpo e alma dos desfiles, optando por não lembrar como são financiados. Mas essa complacência vai além do carnaval, e está presente o ano inteiro no nosso cotidiano de malandragem, no absoluto desprezo que devotamos às regras básicas da cidadania: pequenas coisas que não matam ninguém, mas que compõem um coquetel tóxico de incivilidade.
Entrar na fila, respeitar a sinalização? Ora, imaginem. O barzinho que funciona até altas horas na zona residencial é bacana, o barulho da praça que não deixa ninguém dormir é sinal de alegria, o bloco que invade o aeroporto aos berros é apenas contestador porque grita “Fora Temer!”, e gritar “Fora Temer!” é sinal verde para qualquer transgressão. Pichação é manifestação de inconformismo e não deve ser reprimida, quebrar equipamento público é válido, destruir canteiros e jardins não é nada porque, afinal, o mundo é cruel.
A violência e a incompetência do estado, inquestionáveis há décadas, servem no Rio como justificativa para um comportamento coletivo cada vez mais antissocial e selvagem, uma espécie de buraco negro da cidadania. Como o Estado não faz a parte dele, achamos razoável que a população não faça a sua, sem perceber para onde nos leva essa espiral de desordem.
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Há dias não faço outra coisa a não ser ouvir sobre a intervenção, conversar sobre a intervenção, ler sobre a intervenção. Alguma coisa tinha que ser feita no nosso estado desgovernado, e afinal alguma coisa foi feita; por isso, em princípio, não sou contra ela, ainda que as suas intenções sejam questionáveis. Mas ou ela é para valer, e vai em cima da polícia e dos verdadeiros chefões das quadrilhas, ou não vai adiantar nada: ou ela desmantela a estrutura corrompida da segurança no Rio de Janeiro, ou logo teremos, além da violência do dia a dia, um exército desmoralizado. E ou ela se faz para todos, respeitando igualmente toda a população, ou vai criar uma situação injusta e insustentável. É uma cartada perigosa, um band-aid em cima de uma ferida que só uma longa cirurgia resolverá.
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Corrupção sancionada
Há um debate em curso sobre o que mais prejudica o Brasil: a chamada grande corrupção, como temos visto nos esquemas milionários detectados pela Lava-Jato, ou a pequena corrupção, que envolve desvios do dia a dia como pagar propina para se livrar de infrações de trânsito ou subornar alguém para furar uma fila. Infelizmente, o problema é ainda mais profundo. Existe também a corrupção sancionada: aquela que as pessoas não percebem que cometem porque é prevista e até mesmo incentivada pelas práticas usuais das empresas ou setores em que trabalham. Imagine a seguinte situação. Um funcionário é contratado por um banco para vender pacotes de investimento. Querendo engrossar as aplicações em determinado fundo lucrativo, o banco então submete o funcionário a metas agressivas atreladas a quanto ele conseguir captar para esse fundo. Não bater as metas pode significar menor remuneração variável e até mesmo o desligamento da função. Temendo consequências negativas ao seu emprego e salário, o funcionário tenta empurrar aos seus clientes o fundo sugerido pelo banco, sem se preocupar em oferecer outras opções de investimento ou explicar os prós e os contras da aplicação sugerida.
Casos similares espalham-se pelos mais diversos contextos e setores. Uma empresa de telefonia instrui os seus vendedores a recomendar ao cliente um amplo e caro pacote de serviços, mas eles deixam de esclarecer adequadamente o que está incluído no pacote e fazem o cliente perder-se no meio de longuíssimos contratos com cláusulas obscuras. Um médico receita ao seu paciente remédio de determinada marca e recomenda a compra em uma farmácia “parceira”. Um mecânico sugere ao cliente a troca de diversas peças do veículo e serviços supérfluos, falhando em indicar o que é realmente necessário.
No cerne desse problema, há dois principais motivos. O primeiro já apareceu no exemplo do banco: as empresas, na ânsia de inflar o seu lucro, definem metas muito agressivas, sem atentar para o comportamento ético do funcionário. Na direção correta, algumas empresas têm abolido comissões indiscriminadas, deliberadamente aceitando uma possível queda de vendas em troca de maior qualidade de serviço e reputação a longo prazo. O segundo motivo é um pouco mais velado e resulta de uma cultura corporativa que torna esses comportamentos legítimos para o bem maior da organização ou de outras causas “nobres”. Um estudo experimental recente de John List e Fatemeh Momeni, da Universidade de Chicago, verificou que pessoas incitadas a fazer doações filantrópicas em nome de uma organização acabam se tornando mais propensas a desviar sua conduta em outras atividades. Na interpretação dos autores, o gesto benevolente confere uma espécie de “licença moral” para praticar desvios em outros contextos. A solução, nesse caso, é explicitar padrões aceitáveis de comportamento e deixar claro que não existe desculpa para a má conduta. Se reclamamos da corrupção em Brasília, o primeiro passo é nos perguntarmos se, envolvidos em rotineiros e (erroneamente) sancionados atos, também não fazemos parte do problema.
No cerne desse problema, há dois principais motivos. O primeiro já apareceu no exemplo do banco: as empresas, na ânsia de inflar o seu lucro, definem metas muito agressivas, sem atentar para o comportamento ético do funcionário. Na direção correta, algumas empresas têm abolido comissões indiscriminadas, deliberadamente aceitando uma possível queda de vendas em troca de maior qualidade de serviço e reputação a longo prazo. O segundo motivo é um pouco mais velado e resulta de uma cultura corporativa que torna esses comportamentos legítimos para o bem maior da organização ou de outras causas “nobres”. Um estudo experimental recente de John List e Fatemeh Momeni, da Universidade de Chicago, verificou que pessoas incitadas a fazer doações filantrópicas em nome de uma organização acabam se tornando mais propensas a desviar sua conduta em outras atividades. Na interpretação dos autores, o gesto benevolente confere uma espécie de “licença moral” para praticar desvios em outros contextos. A solução, nesse caso, é explicitar padrões aceitáveis de comportamento e deixar claro que não existe desculpa para a má conduta. Se reclamamos da corrupção em Brasília, o primeiro passo é nos perguntarmos se, envolvidos em rotineiros e (erroneamente) sancionados atos, também não fazemos parte do problema.
Fake is fuck
Qual o público para mentiras nas redes?
Quase 60% dos brasileiros com mais de 18 anos usam a internet para trocar mensagens de texto, voz ou vídeos. Ou seja, 60% do eleitorado pode conversar sobre a eleição nessa mistura de praça pública e correio virtuais cheia de vírus.
Pode também fazer propaganda de injúria, calúnia, difamação ou outras mentiras, ditas "fake news". No total, 63% dos maiores de 18 usam a internet.
É o que se pode depreender de números divulgados nesta quarta-feira pelo IBGE, com dados da Pnad Contínua referentes a 2016. Haverá um tico mais de gente conectada até a eleição.
O dado tem algum interesse político, claro, embora genérico. Além de ler e propagar besteira, falsidades ou crimes contra a imagem nas redes insociáveis, muita gente faz corrente particular de calúnias nos serviços de mensagens, em tese indetectáveis pela polícia e pela Justiça. Em tese, embora seja difícil mesmo pegar organizações criminosas de difusão de informação criminosa em redes sociais.
É muita gente? Um terço do eleitorado está fora da conversa virtual ou desconectada por falta de meios. Mas nem todos estarão fora do alcance do tiroteio de mentiras. Por outro lado, não se sabe quase nada do que fazem os outros 60%.
Há pessoas que utilizam meios de informação quaisquer com grande frequência ou intensidade (usuários pesados) e há uso esporádico desses serviços. Há quem não trate de política, há quem seja vacinado contra mentiras etc. Menos ainda se sabe como os candidatos vão montar ou expandir seus serviços de mensagens individuais.
De menos incerto, confirma-se que a incidência de uso da internet aumenta entre os mais bem-postos nas escalas sociais, o que pode ter alguma implicação política. Os mais pobres podem ser mais influenciados por campanhas de TV e cara a cara, se também não forem envolvidos pela nuvem tóxica.
Usa mais a internet quem tem mais anos de escola e emprego melhor (o IBGE não apresentou dados por níveis de renda). Para pessoas com dez anos de escola ou menos (sem ensino médio completo ou menos), 47% usam a rede; entre quem tem ensino médio ou mais, 89% (essa conta é feita com base na população com mais de dez anos).
Quanto mais pobre a região, menor a incidência de usuários. Mesmo entre estudantes, a divisão digital é gritante, além de deprimente. Cerca de 81% dos estudantes usam a internet: 75% na rede pública, mais de 97% nas escolas privadas.
Entendidos em campanha dizem que campanha face a face, de porta em porta, pode ajudar a rebater mentiras eleitorais, o que favorece quem tem meios de difundir cascatas (ou até ideias!) à moda antiga (comício, cabo eleitoral etc.). Pode haver mais vacinas, porém.
Por exemplo, difundir a ideia de que inventar ou repassar calúnia, injúria e difamação pode levar o cidadão responsável à Justiça. Em vez da falação inócua e vaga sobre cidadania da publicidade de outras eleições, os tribunais eleitorais, TSE e TREs, poderiam explicar o crime. Algumas prisões ajudariam também.
Se não vivêssemos nesta selva ainda mais piorada de incivilidade política e lambança institucional, os candidatos poderiam fazer um acordo de propaganda contra a mentira política extrema. Mas isso é assunto para colunas de humor. Uma piada.
Pode também fazer propaganda de injúria, calúnia, difamação ou outras mentiras, ditas "fake news". No total, 63% dos maiores de 18 usam a internet.
É o que se pode depreender de números divulgados nesta quarta-feira pelo IBGE, com dados da Pnad Contínua referentes a 2016. Haverá um tico mais de gente conectada até a eleição.
É muita gente? Um terço do eleitorado está fora da conversa virtual ou desconectada por falta de meios. Mas nem todos estarão fora do alcance do tiroteio de mentiras. Por outro lado, não se sabe quase nada do que fazem os outros 60%.
Há pessoas que utilizam meios de informação quaisquer com grande frequência ou intensidade (usuários pesados) e há uso esporádico desses serviços. Há quem não trate de política, há quem seja vacinado contra mentiras etc. Menos ainda se sabe como os candidatos vão montar ou expandir seus serviços de mensagens individuais.
De menos incerto, confirma-se que a incidência de uso da internet aumenta entre os mais bem-postos nas escalas sociais, o que pode ter alguma implicação política. Os mais pobres podem ser mais influenciados por campanhas de TV e cara a cara, se também não forem envolvidos pela nuvem tóxica.
Usa mais a internet quem tem mais anos de escola e emprego melhor (o IBGE não apresentou dados por níveis de renda). Para pessoas com dez anos de escola ou menos (sem ensino médio completo ou menos), 47% usam a rede; entre quem tem ensino médio ou mais, 89% (essa conta é feita com base na população com mais de dez anos).
Quanto mais pobre a região, menor a incidência de usuários. Mesmo entre estudantes, a divisão digital é gritante, além de deprimente. Cerca de 81% dos estudantes usam a internet: 75% na rede pública, mais de 97% nas escolas privadas.
Entendidos em campanha dizem que campanha face a face, de porta em porta, pode ajudar a rebater mentiras eleitorais, o que favorece quem tem meios de difundir cascatas (ou até ideias!) à moda antiga (comício, cabo eleitoral etc.). Pode haver mais vacinas, porém.
Por exemplo, difundir a ideia de que inventar ou repassar calúnia, injúria e difamação pode levar o cidadão responsável à Justiça. Em vez da falação inócua e vaga sobre cidadania da publicidade de outras eleições, os tribunais eleitorais, TSE e TREs, poderiam explicar o crime. Algumas prisões ajudariam também.
Se não vivêssemos nesta selva ainda mais piorada de incivilidade política e lambança institucional, os candidatos poderiam fazer um acordo de propaganda contra a mentira política extrema. Mas isso é assunto para colunas de humor. Uma piada.
Fugindo do paraíso
No século passado, tive a oportunidade de cobrir a chegada dos refugiados do comunismo às praias de Brindisi, na Itália. Vinham da Albânia, sedentos de liberdade e de algum conforto material. E agora testemunho o movimento dos refugiados do socialismo do século 21. Como o drama se desenrola no Brasil, tive a oportunidade de seguir sua trajetória em três viagens à fronteira.
Na primeira entrei na Venezuela. Nas duas últimas concentrei-me em Boa Vista, Pacaraima e no trecho de 200 quilômetros da BR-174 que liga a fronteira à capital de Roraima.
O Brasil ainda não se deu conta desse drama na sua amplitude. Cerca de 180 crianças venezuelanas entram todos os dias no País, na maternidade Boa Vista nascem quatro por dia. E há muitas mulheres grávidas. Toda uma nova geração de brasileiros está surgindo desse drama histórico.
Índios waraos, que desceram da Bacia do Orenoco, vieram em massa para o Brasil. Estão alojados em Pacaraima e em Boa Vista. No ano passado estavam na rua. Eram um perigo para eles e também para a pequena cidade brasileira. Muitos tinham doenças de pele, pelas circunstâncias em que vivam, amontoados na rodoviária e nas cercanias. Hoje estão em abrigo, ainda em situação precária. É praticamente toda uma etnia que se mudou para cá. O que fazer diante disso?
A novidade desta última viagem é que o drama ficou mais intenso, famílias dormindo no chão, crianças revirando latas de lixo, mulheres se prostituindo na capital. Há também nesse sofrimento muita iniciativa, muita gente vendendo picolé, cortando cabelo, desenhando retratos, enfim, buscando uma forma de atenuar a miséria.
Hoje, são os próprios habitantes de Roraima que alimentam os venezuelanos. Mas isso não significa a inexistência de rejeição. As pesquisas indicam um mal-estar crescente, uma xenofobia latente num Estado que já teve os maranhenses como bode expiatório num momento em que se deslocaram em massa para Roraima.
O governo lançou um plano de ordenamento da fronteira com a Venezuela. Assim como a intervenção no Rio, é uma ideia à espera de um plano concreto. O princípio é correto: cadastrar e distribuir os venezuelanos racionalmente pelo País.
Pelo menos em teoria, aprendemos com a história dos haitianos no Acre. Eram em menor número, mas ainda assim foi preciso mandá-los de ônibus para São Paulo, sem nenhum aviso ou preparação.
No caso dos venezuelanos, no êxodo em massa está embutida também uma fuga de cérebros. Não há indicações precisas, mas há quem calcule em 20% o índice de profissionais com curso superior.
Desde o ano passado eu estranho o silêncio das forcas políticas brasileiras. Naquela época, já era possível prever esse desdobramento e, mais ainda, é possível agora afirmar que não existe nenhuma solução no horizonte.
Os venezuelanos vão continuar saindo em massa do país e as eleições anunciadas por Nicolás Maduro, boicotadas pela oposição, devem fortalecer a ditadura bolivariana. Os instrumentos diplomáticos do continente, Mercosul, Unasul, OEA, parecem incapazes de encontrar saída.
O Brasil hesita em internacionalizar o problema, embora a ONU já tenha mostrado simpatia pelo plano teórico de Temer. A internacionalização dificilmente resolverá pela América do Sul um problema que é muito do próprio continente.
A Europa está sobrecarregada com o êxodo pelo Mediterrâneo. Os Estados Unidos são governados por Trump, que não tem simpatia pelos refugiados.
O plano de ordenamento da fronteira, segundo os militares, depende de segurança jurídica. Ali podem trabalhar contra a entrada de drogas e armas. Mas não podem legalmente tratar de migração.
A fronteira continua porosa. Existe algo muito difícil de combater, técnica e politicamente: o contrabando de gasolina. A 174 está cheia de carcaças de carros queimados, muitos deles tentando escapar da polícia com uma altamente inflamável carga desse combustível. Documentei como os carros evitam a aduana e entram por um caminho alternativo trazendo a gasolina, que no lado da Venezuela é tão barata que dez centavos de real dão para encher um tanque. No lado brasileiro é vendida por R$ 1,50 o litro.
É politicamente difícil combater o contrabando, pelos simples fato de que ele faz parte da vida de Pacaraima: a cidade não tem posto de gasolina. Em termos de coerência, o Brasil só pode combater esse tipo de contrabando se abrir um posto em Pacaraima. A cidade se organiza como se isso não fosse necessário.
São 400 quilômetros de ida e volta entre Pacaraima e Boa Vista. É preciso encher o tanque na capital até transbordar ou, então, fazer o jogo do contrabando. Qual o sentido de tirar proveito de um país em ruínas? Jogar no quanto pior, melhor? Essa tese pertence ao outro lado, o de Maduro e seus apoiadores no mundo.
O êxodo entrou no noticiário talvez enfatizando apenas o sofrimento, sem atenção para os milhares de estratégias pessoais de sobrevivência, uma dimensão que é possível sentir nas descrições do escritor Primo Levi do campo de concentração em Auschwitz.
Mas na política mesmo ainda não descobriram o que se está passando por lá, exceto pelo voz desgastada de Romero Jucá. Impressionante como tanto sofrimento some no radar de Brasília. A condição humana escapa à esquerda quando as pessoas fogem do que ela considera um paraíso ou, como Lula, uma democracia em excesso. A esquerda não pode encarar essa realidade porque abalaria sua autoimagem. Entre abrir a cabeça ou se fechar para o mundo, já fez sua opção.
Felizmente, é um drama que não tem repercussão eleitoral, a não ser num universo de meio milhão de habitantes de Roraima. Com as paixões em fogo brando talvez seja possível responder com serenidade a essa tragédia, mesmo sabendo que o horizonte será mais sombrio.
Na primeira entrei na Venezuela. Nas duas últimas concentrei-me em Boa Vista, Pacaraima e no trecho de 200 quilômetros da BR-174 que liga a fronteira à capital de Roraima.
O Brasil ainda não se deu conta desse drama na sua amplitude. Cerca de 180 crianças venezuelanas entram todos os dias no País, na maternidade Boa Vista nascem quatro por dia. E há muitas mulheres grávidas. Toda uma nova geração de brasileiros está surgindo desse drama histórico.
A novidade desta última viagem é que o drama ficou mais intenso, famílias dormindo no chão, crianças revirando latas de lixo, mulheres se prostituindo na capital. Há também nesse sofrimento muita iniciativa, muita gente vendendo picolé, cortando cabelo, desenhando retratos, enfim, buscando uma forma de atenuar a miséria.
Hoje, são os próprios habitantes de Roraima que alimentam os venezuelanos. Mas isso não significa a inexistência de rejeição. As pesquisas indicam um mal-estar crescente, uma xenofobia latente num Estado que já teve os maranhenses como bode expiatório num momento em que se deslocaram em massa para Roraima.
O governo lançou um plano de ordenamento da fronteira com a Venezuela. Assim como a intervenção no Rio, é uma ideia à espera de um plano concreto. O princípio é correto: cadastrar e distribuir os venezuelanos racionalmente pelo País.
Pelo menos em teoria, aprendemos com a história dos haitianos no Acre. Eram em menor número, mas ainda assim foi preciso mandá-los de ônibus para São Paulo, sem nenhum aviso ou preparação.
No caso dos venezuelanos, no êxodo em massa está embutida também uma fuga de cérebros. Não há indicações precisas, mas há quem calcule em 20% o índice de profissionais com curso superior.
Desde o ano passado eu estranho o silêncio das forcas políticas brasileiras. Naquela época, já era possível prever esse desdobramento e, mais ainda, é possível agora afirmar que não existe nenhuma solução no horizonte.
Os venezuelanos vão continuar saindo em massa do país e as eleições anunciadas por Nicolás Maduro, boicotadas pela oposição, devem fortalecer a ditadura bolivariana. Os instrumentos diplomáticos do continente, Mercosul, Unasul, OEA, parecem incapazes de encontrar saída.
O Brasil hesita em internacionalizar o problema, embora a ONU já tenha mostrado simpatia pelo plano teórico de Temer. A internacionalização dificilmente resolverá pela América do Sul um problema que é muito do próprio continente.
A Europa está sobrecarregada com o êxodo pelo Mediterrâneo. Os Estados Unidos são governados por Trump, que não tem simpatia pelos refugiados.
O plano de ordenamento da fronteira, segundo os militares, depende de segurança jurídica. Ali podem trabalhar contra a entrada de drogas e armas. Mas não podem legalmente tratar de migração.
A fronteira continua porosa. Existe algo muito difícil de combater, técnica e politicamente: o contrabando de gasolina. A 174 está cheia de carcaças de carros queimados, muitos deles tentando escapar da polícia com uma altamente inflamável carga desse combustível. Documentei como os carros evitam a aduana e entram por um caminho alternativo trazendo a gasolina, que no lado da Venezuela é tão barata que dez centavos de real dão para encher um tanque. No lado brasileiro é vendida por R$ 1,50 o litro.
É politicamente difícil combater o contrabando, pelos simples fato de que ele faz parte da vida de Pacaraima: a cidade não tem posto de gasolina. Em termos de coerência, o Brasil só pode combater esse tipo de contrabando se abrir um posto em Pacaraima. A cidade se organiza como se isso não fosse necessário.
São 400 quilômetros de ida e volta entre Pacaraima e Boa Vista. É preciso encher o tanque na capital até transbordar ou, então, fazer o jogo do contrabando. Qual o sentido de tirar proveito de um país em ruínas? Jogar no quanto pior, melhor? Essa tese pertence ao outro lado, o de Maduro e seus apoiadores no mundo.
O êxodo entrou no noticiário talvez enfatizando apenas o sofrimento, sem atenção para os milhares de estratégias pessoais de sobrevivência, uma dimensão que é possível sentir nas descrições do escritor Primo Levi do campo de concentração em Auschwitz.
Mas na política mesmo ainda não descobriram o que se está passando por lá, exceto pelo voz desgastada de Romero Jucá. Impressionante como tanto sofrimento some no radar de Brasília. A condição humana escapa à esquerda quando as pessoas fogem do que ela considera um paraíso ou, como Lula, uma democracia em excesso. A esquerda não pode encarar essa realidade porque abalaria sua autoimagem. Entre abrir a cabeça ou se fechar para o mundo, já fez sua opção.
Felizmente, é um drama que não tem repercussão eleitoral, a não ser num universo de meio milhão de habitantes de Roraima. Com as paixões em fogo brando talvez seja possível responder com serenidade a essa tragédia, mesmo sabendo que o horizonte será mais sombrio.
Tarefa: cortar gastos e... elevar gastos
Então ficamos assim: sai a reforma da previdência, cujo objetivo é reduzir a despesa pública, e entra a intervenção federal no Rio que, para funcionar, exige mais gastos com pessoal, equipamentos e logística.
E tem mais complicação: o gasto com as Forças Armadas é do governo federal, que está submetido a um teto de despesas. Ou seja, se for preciso aumentar o orçamento militar, inevitável, será preciso tirar dinheiro de algum outro item.
O gasto com policiais e equipamentos - viaturas, por exemplo - é do governo estadual do Rio. Ora, o estado já gasta com pessoal mais de 60% da receita líquida, acima, portanto, da regra que determina um teto de 49%. De novo, um governo que já gasta excessivamente com pessoal precisa contratar pessoal.
O exemplo desse desajuste é forte. A Polícia Civil fluminense tem orçamento para gastar neste ano um total de R$ 1,8 bilhão, sendo 92% para pessoal e encargos. Na Polícia Militar, a despesa autorizada é de R$ 5 bilhões, sendo 87% para pessoal e encargos.
Nessa rubrica pessoal, a maior parte vai para aposentadorias e pensões. Para ficar na PM, para cada coronel na ativa há cinco aposentados, a maioria na faixa dos 50 anos.
Por aí se vê: o desajuste das finanças do Rio somente será ultrapassado com uma reforma estrutural, começando pela da previdência. Só que isso caiu por causa da intervenção federal, que, por óbvio, está limitada pela carência financeira.
Acrescentemos mais um ingrediente: a intervenção na segurança pública é, mais do que necessária, inevitável, dada a falência do governo estadual. Embora não seja lá essas coisas e também esteja no vermelho, o governo federal ainda dispõe de mais capacidade administrativa e financeira. Portanto, intervir foi uma decisão política correta e que atende os interesses da população do Rio.
Isso mostra o tamanho e a complexidade do problema: o setor público, em todos os níveis, gasta demais - e não fornece os serviços adequados de segurança, saúde e educação, para ficar nas principais funções do estado. Gasta demais com pessoal - e faltam funcionários em todas aquelas áreas.
A conclusão é inevitável: é preciso reduzir e aumentar o gasto público, tudo ao mesmo tempo. Demitir e contratar. Por isso parece que todo mundo está convencido neste debate. Tem razão quem mostra a necessidade de uma severa redução de despesas. Também está cheio de razão quem nota que faltam policiais equipados (e médicos e professores etc.) . Ocorre que quem fica em um só lado da história, tem uma razão inútil.
Mas é possível cortar e aumentar despesa ao mesmo tempo? É necessário.
Como fazer? Um atalho é ganhar receitas. Mas não com o aumento de impostos porque aqui está outra contradição. A carga tributária é elevada e não chega para o gasto.
Logo, uma saída é uma onda de privatizações - com as quais o estado pode fazer caixa, eliminar desperdícios, atrair investimentos e ganhar eficiência em serviços públicos. Até cadeias deveriam ser concedidas à iniciativa privada. A empresa privada administra e o governo paga uma mensalidade, uma taxa de hospedagem por preso. Podem apostar: o governo gastaria menos assim do que ele mesmo administrando - e administrando tão mal como se verifica.
Privatizações e concessões têm essas múltiplas vantagens. Resultam em ganho de receita e diminuição de despesa. Mas tem que ser bem feita mesmo. Privatizar uma estrada ou um hospital ou um presídio e dizer que o concessionário não pode lucrar muito - isso é simplesmente ridículo.
O segundo ponto é cortar despesas que não afetam os setores da ponta. Atrasar a manutenção de viaturas ou de viadutos é economia suja. Mas é evidente que nas burocracias intermediárias tem gente sobrando e gente que trabalha pouco e produz nada - isso tanto nas estatais quanto na administração direta. E com os melhores salários. Há estatais e órgãos inúteis que só estão aí pela inércia.
O terceiro ponto é controlar a principal fonte de desequilíbrio financeiro estrutural. Ou seja, fazer a ... reforma da previdência.
Esse é o desafio político do momento: o surgimento de lideranças responsáveis e capazes de convencer o eleitor da necessidade daquelas múltiplas tarefas.
Desconfie dos que só apontam um lado da história. É enganação.
E tem mais complicação: o gasto com as Forças Armadas é do governo federal, que está submetido a um teto de despesas. Ou seja, se for preciso aumentar o orçamento militar, inevitável, será preciso tirar dinheiro de algum outro item.
O gasto com policiais e equipamentos - viaturas, por exemplo - é do governo estadual do Rio. Ora, o estado já gasta com pessoal mais de 60% da receita líquida, acima, portanto, da regra que determina um teto de 49%. De novo, um governo que já gasta excessivamente com pessoal precisa contratar pessoal.
Nessa rubrica pessoal, a maior parte vai para aposentadorias e pensões. Para ficar na PM, para cada coronel na ativa há cinco aposentados, a maioria na faixa dos 50 anos.
Por aí se vê: o desajuste das finanças do Rio somente será ultrapassado com uma reforma estrutural, começando pela da previdência. Só que isso caiu por causa da intervenção federal, que, por óbvio, está limitada pela carência financeira.
Acrescentemos mais um ingrediente: a intervenção na segurança pública é, mais do que necessária, inevitável, dada a falência do governo estadual. Embora não seja lá essas coisas e também esteja no vermelho, o governo federal ainda dispõe de mais capacidade administrativa e financeira. Portanto, intervir foi uma decisão política correta e que atende os interesses da população do Rio.
Isso mostra o tamanho e a complexidade do problema: o setor público, em todos os níveis, gasta demais - e não fornece os serviços adequados de segurança, saúde e educação, para ficar nas principais funções do estado. Gasta demais com pessoal - e faltam funcionários em todas aquelas áreas.
A conclusão é inevitável: é preciso reduzir e aumentar o gasto público, tudo ao mesmo tempo. Demitir e contratar. Por isso parece que todo mundo está convencido neste debate. Tem razão quem mostra a necessidade de uma severa redução de despesas. Também está cheio de razão quem nota que faltam policiais equipados (e médicos e professores etc.) . Ocorre que quem fica em um só lado da história, tem uma razão inútil.
Mas é possível cortar e aumentar despesa ao mesmo tempo? É necessário.
Como fazer? Um atalho é ganhar receitas. Mas não com o aumento de impostos porque aqui está outra contradição. A carga tributária é elevada e não chega para o gasto.
Logo, uma saída é uma onda de privatizações - com as quais o estado pode fazer caixa, eliminar desperdícios, atrair investimentos e ganhar eficiência em serviços públicos. Até cadeias deveriam ser concedidas à iniciativa privada. A empresa privada administra e o governo paga uma mensalidade, uma taxa de hospedagem por preso. Podem apostar: o governo gastaria menos assim do que ele mesmo administrando - e administrando tão mal como se verifica.
Privatizações e concessões têm essas múltiplas vantagens. Resultam em ganho de receita e diminuição de despesa. Mas tem que ser bem feita mesmo. Privatizar uma estrada ou um hospital ou um presídio e dizer que o concessionário não pode lucrar muito - isso é simplesmente ridículo.
O segundo ponto é cortar despesas que não afetam os setores da ponta. Atrasar a manutenção de viaturas ou de viadutos é economia suja. Mas é evidente que nas burocracias intermediárias tem gente sobrando e gente que trabalha pouco e produz nada - isso tanto nas estatais quanto na administração direta. E com os melhores salários. Há estatais e órgãos inúteis que só estão aí pela inércia.
O terceiro ponto é controlar a principal fonte de desequilíbrio financeiro estrutural. Ou seja, fazer a ... reforma da previdência.
Esse é o desafio político do momento: o surgimento de lideranças responsáveis e capazes de convencer o eleitor da necessidade daquelas múltiplas tarefas.
Desconfie dos que só apontam um lado da história. É enganação.
O sindicato de toga ameaça o Supremo
O sindicato da toga decidiu radicalizar na luta pelos supersalários. A associação dos juízes federais ameaça promover uma greve nacional no próximo dia 15. O objetivo é emparedar o Supremo, que deve julgar a farra do auxílio-moradia na semana seguinte.
O tribunal tem dado sinais de que vai restringir a benesse. Está atrasado. Já deve uma resposta desde setembro de 2014, quando Luiz Fux estendeu o penduricalho a todos os magistrados brasileiros. O ministro concedeu a liminar e levou mais de três anos até liberar o caso para julgamento.
O auxílio virou uma gambiarra para furar o teto do funcionalismo. Ao ser concedido de forma indiscriminada, deixou de ser uma ajuda de custo para se tornar um aumento disfarçado. Com a vantagem de não sofrer a mordida do Imposto de Renda, já que não é considerado parte dos subsídios.
Em 2015, o presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo admitiu que o penduricalho era “um disfarce para aumentar um pouquinho” os salários. “Não dá para ir toda hora a Miami comprar terno”, argumentou o desembargador José Renato Nalini. Hoje o doutor é secretário de Educação do tucano Geraldo Alckmin, que ensaia o discurso da austeridade para disputar a eleição presidencial.
Nas últimas semanas, outros magistrados ilustres escancararam a real natureza do auxílio. O juiz Sergio Moro reconheceu que o benefício é “discutível”, mas “compensa a falta de reajustes dos vencimentos”. O juiz Marcelo Bretas, que é casado com outra juíza e acumula dois penduricalhos sob o mesmo teto, julgou-se no direito de ironizar quem o criticou. Os casos não desmerecem a atuação deles na Lava-Jato, mas mostram como o espírito de casta prejudica a capacidade de autocrítica dos juízes.
Também há quem opte pelo deboche ao tratar do assunto. Ao ser perguntado sobre o valor do auxílio, o novo presidente do TJ paulista, Manoel Calças, declarou o seguinte: “Eu acho muito pouco”.
Em nota recente, a Ajufe alegou que o Judiciário seria vítima de uma “campanha desmoralizadora” porque combate a corrupção. O que desmoraliza o Poder é a defesa de privilégios injustificáveis. O Supremo já abriu a caixa-preta dos supersalários. Espera-se que não recue com medo da faca no pescoço.
O tribunal tem dado sinais de que vai restringir a benesse. Está atrasado. Já deve uma resposta desde setembro de 2014, quando Luiz Fux estendeu o penduricalho a todos os magistrados brasileiros. O ministro concedeu a liminar e levou mais de três anos até liberar o caso para julgamento.
Em 2015, o presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo admitiu que o penduricalho era “um disfarce para aumentar um pouquinho” os salários. “Não dá para ir toda hora a Miami comprar terno”, argumentou o desembargador José Renato Nalini. Hoje o doutor é secretário de Educação do tucano Geraldo Alckmin, que ensaia o discurso da austeridade para disputar a eleição presidencial.
Nas últimas semanas, outros magistrados ilustres escancararam a real natureza do auxílio. O juiz Sergio Moro reconheceu que o benefício é “discutível”, mas “compensa a falta de reajustes dos vencimentos”. O juiz Marcelo Bretas, que é casado com outra juíza e acumula dois penduricalhos sob o mesmo teto, julgou-se no direito de ironizar quem o criticou. Os casos não desmerecem a atuação deles na Lava-Jato, mas mostram como o espírito de casta prejudica a capacidade de autocrítica dos juízes.
Também há quem opte pelo deboche ao tratar do assunto. Ao ser perguntado sobre o valor do auxílio, o novo presidente do TJ paulista, Manoel Calças, declarou o seguinte: “Eu acho muito pouco”.
Em nota recente, a Ajufe alegou que o Judiciário seria vítima de uma “campanha desmoralizadora” porque combate a corrupção. O que desmoraliza o Poder é a defesa de privilégios injustificáveis. O Supremo já abriu a caixa-preta dos supersalários. Espera-se que não recue com medo da faca no pescoço.
Os sobreviventes
nenhum lado sabe ainda
quem venceu
quem perdeu
Já não importa
vitória ou derrota
É a hora na qual
os que ainda podem
se apalpam
(estará ainda aqui
meu braço esquerdo
minha perna direita
ainda estará?)
Cada um vai
peça a peça
montando o quebra-cabeça
Os que estão inteiros
ou assim pensam sorriem
(a boca parece estar
onde uma boca deve estar)
Os irremediavelmente feridos
gemem os últimos gemidos
e com os olhos quase mortos
invejosamente olham
a horizontal serenidade
dos inevitavelmente mortos.
quem venceu
quem perdeu
Já não importa
vitória ou derrota
É a hora na qual
os que ainda podem
se apalpam
(estará ainda aqui
meu braço esquerdo
minha perna direita
ainda estará?)
Cada um vai
peça a peça
montando o quebra-cabeça
Os que estão inteiros
ou assim pensam sorriem
(a boca parece estar
onde uma boca deve estar)
Os irremediavelmente feridos
gemem os últimos gemidos
e com os olhos quase mortos
invejosamente olham
a horizontal serenidade
dos inevitavelmente mortos.
Um kit de sobrevivência nacional
O esgotamento do modelo político, social e econômico utilizado desde a redemocratização e o processo de desagregação que contamina o país exigem mais do que um plano de desenvolvimento – demandam um mapa para a sobrevivência nacional. Mas nossos líderes parecem concentrados apenas na popularidade de seus candidatos para viabilizar sua eleição, e não o que eles oferecem para impedir a desagregação e iniciar a marcha para o futuro de um Brasil que desejamos.
Um item fundamental do mapa da sobrevivência nacional é a recuperação da credibilidade dos políticos e dos juízes, o que implica sobretudo uma mudança de comportamento, com o fim de todas as mordomias e do foro privilegiado, além da valorização do mérito na escolha de ministros e auxiliares. Faz parte desse propósito o combate radical à corrupção.
Outro item é o enfrentamento da guerra civil, ou incivil, que o país sofre. O próximo presidente deve definir as táticas para prender todos os bandidos do presente, mas também a estratégia para encerrar a fábrica de criminalidade e construir a paz. Precisa cuidar da manutenção do imenso edifício da assistência social baseado em transferências de renda, ao mesmo tempo em que deve definir ações que permitam ao Brasil construir um sistema econômico com alta produtividade e elevada empregabilidade. Isso permitirá que, no médio prazo, raros brasileiros precisem da assistência por causa da pobreza.
É dever ainda assumir o compromisso de responsabilidade fiscal e de não tomar decisões que abatam a eficiência do sistema econômico, lembrando que não há justiça social sem economia eficiente. O presidente dos próximos anos tem que definir o mapa para eliminar, em prazo previsível, a vergonha da dupla tragédia da persistência da pobreza social e da péssima distribuição da renda nacional.
O caminho para o Brasil adquirir uma economia com a necessária produtividade e a distribuição justa de seu produto vai exigir uma revolução na educação de base. O mapa de sobrevivência deve instituir medidas que permitam construir um sistema educacional onde os filhos dos mais pobres disponham de educação com a mesma qualidade dos filhos dos ricos. O candidato também deve mostrar compromisso e competência na gestão eficiente do Estado, sem aparelhamento e respeitando o mérito.
Na primeira eleição direta, em 1989, o mapa visava apenas à construção da democracia. Candidatos sem qualquer expressão eleitoral deram contribuição ao debate que buscava um novo futuro para o país. Roberto Freire, com pouco mais de 1% dos votos, inspirou a juventude brasileira; em 2006, disputando com grandes nomes e partidos, o PDT lançou candidato e passou uma mensagem maior do que os 2,5% dos votos que teve.
Agora, mais do que nunca, o Brasil precisa de um candidato que ofereça um kit de sobrevivência, mas os líderes políticos decidiram sucumbir à popularidade dos candidatos, mesmo sem planos nem mapas para a sobrevivência nacional.
Outro item é o enfrentamento da guerra civil, ou incivil, que o país sofre. O próximo presidente deve definir as táticas para prender todos os bandidos do presente, mas também a estratégia para encerrar a fábrica de criminalidade e construir a paz. Precisa cuidar da manutenção do imenso edifício da assistência social baseado em transferências de renda, ao mesmo tempo em que deve definir ações que permitam ao Brasil construir um sistema econômico com alta produtividade e elevada empregabilidade. Isso permitirá que, no médio prazo, raros brasileiros precisem da assistência por causa da pobreza.
É dever ainda assumir o compromisso de responsabilidade fiscal e de não tomar decisões que abatam a eficiência do sistema econômico, lembrando que não há justiça social sem economia eficiente. O presidente dos próximos anos tem que definir o mapa para eliminar, em prazo previsível, a vergonha da dupla tragédia da persistência da pobreza social e da péssima distribuição da renda nacional.
O caminho para o Brasil adquirir uma economia com a necessária produtividade e a distribuição justa de seu produto vai exigir uma revolução na educação de base. O mapa de sobrevivência deve instituir medidas que permitam construir um sistema educacional onde os filhos dos mais pobres disponham de educação com a mesma qualidade dos filhos dos ricos. O candidato também deve mostrar compromisso e competência na gestão eficiente do Estado, sem aparelhamento e respeitando o mérito.
Na primeira eleição direta, em 1989, o mapa visava apenas à construção da democracia. Candidatos sem qualquer expressão eleitoral deram contribuição ao debate que buscava um novo futuro para o país. Roberto Freire, com pouco mais de 1% dos votos, inspirou a juventude brasileira; em 2006, disputando com grandes nomes e partidos, o PDT lançou candidato e passou uma mensagem maior do que os 2,5% dos votos que teve.
Agora, mais do que nunca, o Brasil precisa de um candidato que ofereça um kit de sobrevivência, mas os líderes políticos decidiram sucumbir à popularidade dos candidatos, mesmo sem planos nem mapas para a sobrevivência nacional.
Intenção de voto!
Temer e seus operadores políticos enxergam o governo como um borrão cor-de-rosa, feito de recuperação econômica e, agora, de combate duro à criminalidade. A recuperação da economia é retardada pela imoralidade do governo. E a guerra contra o crime é, por ora, um sucesso de gogó. Ninguém vira o presidente mais impopular da história, com 70% de reprovação, por acaso.
Para que uma hipotética candidatura presidencial de Temer ficasse em pé, o eleitor teria de enviar para o armário do esquecimento duas denúncias criminais congeladas, um inquérito em andamento, a cumplicidade com ministros denunciados e a consolidação do termo presidencialismo de coalizão como um eufemismo para organização criminosa. É certo que o brasileiro tem má memória. Mas esconder as mazelas do governo Temer atrás de um escudo de marketing tornou-se algo tão difícil quanto ocultar uma baleia numa banheira jacuzi.
Pacto de saque
A definição do ministro Luís Roberto Barroso sobre o que aconteceu no país é devastadora: “A corrupção no Brasil não foi um conjunto de falhas individuais e pequenas fraquezas humanas. Ela é parte central de um pacto oligárquico que foi celebrado entre boa parte da classe política, da classe empresarial robusta e boa parte da burocracia estatal. Um pacto de saque ao Estado brasileiro.”
O tempo estava fechado em Brasília quando fui ao STF, com uma equipe da Globonews, entrevistar o ministro. Uma névoa mais cedo havia encoberto o Congresso. O cenário cinzento só acentuava o quadro que ele pintou sobre o drama da corrupção no Brasil. Os números da Transparência Internacional mostram que a percepção do país sobre a corrupção aumentou muito desde a última medição e há uma sensação de que o país está perdendo a luta:
— Não é uma luta banal, ela tem custos para quem se dispõe a travá-la. Porém esse é o sentido da História. Quem está contra isso (o combate à corrupção) está tentando aparar o vento com as mãos.
Para Barroso, será “ruim e trágico” se o STF decidir rever sua posição a respeito da prisão após condenação em segunda instância:
— O enfrentamento da corrupção do Brasil atingiu setores e pessoas que se sentiam imunes e impunes. O que estamos vendo é uma reação oligárquica.
Mas ele acha que os políticos sob suspeita estão divididos em dois grupos: os que não querem ser punidos pelos malfeitos, e os que não querem ser honestos nem daqui pra frente. Perguntei sobre a diferenciação entre a corrupção e o caixa dois, e ele disse que a diferença é muito pequena:
— O grande problema não é para onde o dinheiro vai, mas de onde o dinheiro vem.
O ministro nasceu em Vassouras, mas define o Rio como sua cidade do coração. E seu gabinete é coberto de fotos sobre os mais variados ângulos do Rio. Ele acredita que os moradores da cidade vivem um momento de reversão de expectativas porque achavam há alguns anos que o Rio havia decolado. Não quis falar muito sobre a intervenção em si, porque pode ter que julgar alguma coisa sobre o assunto:
— Eu percebi que há uma demanda popular por isso, mas há muitos riscos envolvidos e sobretudo o problema do Rio não é um problema que se enfrente com uma bala de prata.
Ele disse que o Rio é prova cabal do “fiasco da política de combate às drogas no Brasil”. O ministro votou a favor da descriminalização da maconha e defende que é preciso se esforçar para esse caminho, que poderia, na visão dele, tirar o poder econômico do tráfico.
Barroso foi voto vencido na decisão na qual o STF deixou ao Congresso a punição do senador Aécio Neves, punição que acabou não acontecendo. No julgamento, ficou seis a cinco em favor de que o Senado decidisse o destino do senador mineiro:
— Cinco ministros do Supremo se dispuseram abertamente a enfrentar esse tipo de corrupção. É mais do que jamais houve.
Na visão do ministro, o Brasil está num caminho virtuoso apesar da péssima fotografia do momento:
— A fotografia é de um presidente que teve duas denúncias de corrupção e obstrução de Justiça, um ex-presidente condenado, outro que já foi denunciado criminalmente. Três presidentes da Câmara foram ou ainda estão presos. Dois chefes da Casa Civil. Mais de um governador de estado foi ou ainda está preso. A delação da Odebrecht envolveu 400 figuras políticas.
Mas ele acha que esforço contra à corrupção é uma etapa de uma luta para melhorar o país, na qual em pouco mais de 30 anos a sociedade venceu a ditadura, a hiperinflação, a pobreza extrema. Por isso, apesar do cenário devastador, ele afirma que vê de forma positiva o que o Brasil tem vivido.
O tempo estava fechado em Brasília quando fui ao STF, com uma equipe da Globonews, entrevistar o ministro. Uma névoa mais cedo havia encoberto o Congresso. O cenário cinzento só acentuava o quadro que ele pintou sobre o drama da corrupção no Brasil. Os números da Transparência Internacional mostram que a percepção do país sobre a corrupção aumentou muito desde a última medição e há uma sensação de que o país está perdendo a luta:
— Não é uma luta banal, ela tem custos para quem se dispõe a travá-la. Porém esse é o sentido da História. Quem está contra isso (o combate à corrupção) está tentando aparar o vento com as mãos.
Para Barroso, será “ruim e trágico” se o STF decidir rever sua posição a respeito da prisão após condenação em segunda instância:
— Pela primeira vez, a imensa quantidade de ricos delinquentes que há no Brasil começou a evitar crimes e a colaborar com a Justiça. Foi a coisa mais importante que já aconteceu para se punir os crimes do colarinho branco.
Barroso pediu uma pesquisa no STJ. E a resposta foi que é de menos de 1%, exatamente 0,62%, o índice de absolvição de pessoas condenadas nas outras instâncias. Portanto, o que se tenta com os recursos aos tribunais superiores não é mudar a decisão, o que é estatisticamente pouco provável, mas sim adiar a sentença. Porque o julgamento em tribunal superior pode demorar uma década:— O enfrentamento da corrupção do Brasil atingiu setores e pessoas que se sentiam imunes e impunes. O que estamos vendo é uma reação oligárquica.
Mas ele acha que os políticos sob suspeita estão divididos em dois grupos: os que não querem ser punidos pelos malfeitos, e os que não querem ser honestos nem daqui pra frente. Perguntei sobre a diferenciação entre a corrupção e o caixa dois, e ele disse que a diferença é muito pequena:
— O grande problema não é para onde o dinheiro vai, mas de onde o dinheiro vem.
O ministro nasceu em Vassouras, mas define o Rio como sua cidade do coração. E seu gabinete é coberto de fotos sobre os mais variados ângulos do Rio. Ele acredita que os moradores da cidade vivem um momento de reversão de expectativas porque achavam há alguns anos que o Rio havia decolado. Não quis falar muito sobre a intervenção em si, porque pode ter que julgar alguma coisa sobre o assunto:
— Eu percebi que há uma demanda popular por isso, mas há muitos riscos envolvidos e sobretudo o problema do Rio não é um problema que se enfrente com uma bala de prata.
Ele disse que o Rio é prova cabal do “fiasco da política de combate às drogas no Brasil”. O ministro votou a favor da descriminalização da maconha e defende que é preciso se esforçar para esse caminho, que poderia, na visão dele, tirar o poder econômico do tráfico.
Barroso foi voto vencido na decisão na qual o STF deixou ao Congresso a punição do senador Aécio Neves, punição que acabou não acontecendo. No julgamento, ficou seis a cinco em favor de que o Senado decidisse o destino do senador mineiro:
— Cinco ministros do Supremo se dispuseram abertamente a enfrentar esse tipo de corrupção. É mais do que jamais houve.
Na visão do ministro, o Brasil está num caminho virtuoso apesar da péssima fotografia do momento:
— A fotografia é de um presidente que teve duas denúncias de corrupção e obstrução de Justiça, um ex-presidente condenado, outro que já foi denunciado criminalmente. Três presidentes da Câmara foram ou ainda estão presos. Dois chefes da Casa Civil. Mais de um governador de estado foi ou ainda está preso. A delação da Odebrecht envolveu 400 figuras políticas.
Mas ele acha que esforço contra à corrupção é uma etapa de uma luta para melhorar o país, na qual em pouco mais de 30 anos a sociedade venceu a ditadura, a hiperinflação, a pobreza extrema. Por isso, apesar do cenário devastador, ele afirma que vê de forma positiva o que o Brasil tem vivido.
Esquerda e direita
Os políticos que se dizem de esquerda, por ser o bom sítio de se ser político, estão sempre a afirmar que são de esquerda, não vá a gente esquecer-se ou julgar que mudaram de poiso. Mas dito isso, não é preciso ter de explicar de que sítio são os actos que a necessidade política os vai obrigando a praticar. Como os de direita, aliás, que é um lugar mais espinhoso. O que importa é dizerem onde instalaram a sua reputação, na ideia de que o nome é que dá a realidade às coisas. E se antes disso nos explicassem o que é isso de ser de esquerda ou de direita? Nós trabalhamos com papéis que não sabemos se têm cobertura, como no faz-de-conta infantil. Mas o que é curioso é que o comércio político funciona à mesma com os cheques sem cobertura. E ninguém tira a limpo esse abuso de confiança, para as cadeias existirem. Mas o homem é um ser fictício em todo o seu ser. E é precisa a morte para ele enfim ser verdadeiroVergílio Ferreira, "Pensar"
Intervenção moral
O Rio de Janeiro vive em estado de falência completa. Falência das instituições, dos quadros políticos, da sociedade em geral. É um aperitivo do processo de desconstrução pelo qual passa o Brasil. O método vai mais além. Inverte princípios, enaltece o crime e a malandragem, despreza o mérito e subverte valores basilares da constituição de uma sociedade fraterna, virtuosa e vitoriosa. O caminho trilhado há tempos somente tem um resultado, este que estamos vivendo, perplexos e aparvalhados.
O governo, ponto central do desequilíbrio, entrega benesses em troca de apoio para permanecer no poder. Grupos políticos revezam-se no comando das instituições com o intuito de saquear os cofres públicos. Mesmo com royalties do petróleo, Pré-Sal, investimentos internacionais, Olimpíadas e Copa do Mundo, que despejaram caminhões de recursos no Rio, o poder púbico foi incapaz de entregar reformas educacionais, melhorias no sistema de saúde, investir em segurança, modelos de organização urbana ou desburocratizar a máquina governamental para os empreendedores. Nada foi feito além de obras superfaturadas e maquiagens urbanas para ludibriar os olhos dos turistas e dos cariocas. Pão e circo.
Apenas entre 2014 e 2016 o Rio de Janeiro recebeu R$ 235 bilhões em investimentos. Não faltou dinheiro. Faltou competência e honestidade. O volume de recursos desviados pela organização criminosa chefiada pelo ex-Governador Sergio Cabral deixa evidente que o crime se infiltrou no Estado. A política fluminense está apodrecida. A Lava Jato, em seu capítulo carioca, pede o ressarcimento de 2,28 bilhões de reais aos cofres públicos. Até o momento conseguiu recuperar apenas R$ 451,5 milhões. O volume assusta, mas certamente é muito maior, pois somente na Operação Fratura Exposta são investigados desvios de mais de 300 milhões na área da saúde. Enquanto isso, o governo investe R$ 75 milhões no Carnaval e R$ 74 milhões na segurança pública. Um escárnio.
O Rio de Janeiro está entre os dez estados mais violentos no Brasil. Isto nos prova que o problema não se restringe ao seu perímetro. É um fenômeno sistêmico nacional. Se o objetivo é combater o crime organizado, as ações devem superar os limites fluminenses, mas tudo indica que o objetivo é simplesmente combater a desordem e fornecer maior sensação de segurança. Não está sendo atacado o cerne da questão.
Precisamos repensar o modelo de sociedade que desejamos para o Brasil. No desmonte dos valores, na degradação moral, na desconstrução ética. Estas são as bases que faltam atualmente. O brasileiro não é vítima, mas parte do problema. Já chegou o momento de darmos uma resposta, de nos perguntarmos que tipo de sociedade desejamos e trabalharmos para que surja desta reflexão um futuro melhor para nosso país. Do contrário viveremos de intervenção em intervenção, enxugando gelo, reféns de uma sociedade doente e políticos desonestos. A verdadeira intervenção que precisamos é de ordem moral e ética, dentro de valores que construam uma sociedade virtuosa, decente e honesta para nossas futuras gerações.
O governo, ponto central do desequilíbrio, entrega benesses em troca de apoio para permanecer no poder. Grupos políticos revezam-se no comando das instituições com o intuito de saquear os cofres públicos. Mesmo com royalties do petróleo, Pré-Sal, investimentos internacionais, Olimpíadas e Copa do Mundo, que despejaram caminhões de recursos no Rio, o poder púbico foi incapaz de entregar reformas educacionais, melhorias no sistema de saúde, investir em segurança, modelos de organização urbana ou desburocratizar a máquina governamental para os empreendedores. Nada foi feito além de obras superfaturadas e maquiagens urbanas para ludibriar os olhos dos turistas e dos cariocas. Pão e circo.
O Rio de Janeiro está entre os dez estados mais violentos no Brasil. Isto nos prova que o problema não se restringe ao seu perímetro. É um fenômeno sistêmico nacional. Se o objetivo é combater o crime organizado, as ações devem superar os limites fluminenses, mas tudo indica que o objetivo é simplesmente combater a desordem e fornecer maior sensação de segurança. Não está sendo atacado o cerne da questão.
Precisamos repensar o modelo de sociedade que desejamos para o Brasil. No desmonte dos valores, na degradação moral, na desconstrução ética. Estas são as bases que faltam atualmente. O brasileiro não é vítima, mas parte do problema. Já chegou o momento de darmos uma resposta, de nos perguntarmos que tipo de sociedade desejamos e trabalharmos para que surja desta reflexão um futuro melhor para nosso país. Do contrário viveremos de intervenção em intervenção, enxugando gelo, reféns de uma sociedade doente e políticos desonestos. A verdadeira intervenção que precisamos é de ordem moral e ética, dentro de valores que construam uma sociedade virtuosa, decente e honesta para nossas futuras gerações.
Tudo pelo crime
Está tudo perfeitamente correto com a intervenção do Exército no Rio de Janeiro, mesmo porque não há nada que os militares possam fazer a respeito ─ receberam ordens legais, aprovadas por vasta maioria de votos no Congresso, para patrulhar as ruas da cidade, e não poderiam recusar-se a cumpri-las. Mas está tudo errado com a desordem criada na segurança jurídica no Brasil pela ação conjunta de governo, deputados e senadores, juízes e procuradores, ministros dos tribunais superiores e quem mais tem alguma coisa a ver com a aplicação da lei neste país. Esta desordem, como é bem sabido por todos, é hoje o grande incentivo ao crime: transformou o direito de defesa num Código Nacional da Impunidade. Essa situação fornece tantos privilégios aos criminosos, e coloca obstáculos tão grandes à sua punição, que acabou por dissolver a autoridade pública, as leis penais e o sistema Judiciário, hoje humilhados diariamente pelo crime e impotentes para proteger os direitos do cidadão que os bandidos violam como bem entendem. Criou-se um estado de quase anarquia. Aí não há Exército que pode resolver ─ nem o brasileiro e nem o dos Estados Unidos, com o seu efetivo de 1,3 milhão de homens, o seu orçamento de 600 bilhões de dólares por ano e o seu arsenal inteirinho de bombas atômicas.
O Exército brasileiro não pode resolver o problema porque tem de respeitar as leis ─ e as leis criadas há anos pelos donos do poder impedem que a força armada cumpra a missão que recebeu. O resumo da história é o seguinte, para quem não quer passar o resto da vida discutindo o assunto: a tropa enviada ao Rio de Janeiro está legalmente proibida de combater o inimigo contra quem foi despachada. Muito simplesmente, não há no momento para o Exército enviado à frente de combate as “regras de engajamento”. Como uma força militar pode trabalhar desse jeito? Qualquer exército decente do mundo tem suas regras de engajamento ─ até uma tropa ONU em missão de paz. Do contrário, é um ajuntamento de homens com armas na mão. Essas regras são o conjunto de instruções precisas sobre o que os soldados e oficiais devem ou não devem fazer quando entram em ação. Uma das principais é atirar no inimigo. Não se trata de sair dando tiro por aí, mas também não é uma opção em aberto. Um sujeito que porta um fuzil automático no meio da Avenida Brasil para assaltar um caminhão de carga, por exemplo, ou desfila armado pelas favelas, é um inimigo ─ e, portanto, um alvo. Ou não é? Aqui, pela regra, não é. Pelas nossas leis, não há inimigo. Conclusão: o Exército está no meio de uma guerra no Rio, mas nossas leis e tribunais dizem que a tropa do outro lado encontra-se sob a sua benção.
Nossos soldados, assim, se veem na extraordinária situação de não poder atirar no agressor ─ não têm, para tanto, a autorização da lei, nem sua proteção. É como se numa guerra o soldado que matasse o inimigo armado fosse depois levado ao tribunal de júri e processado por homicídio. Quer dizer: o Exército foi chamado para combater o crime, mas está impedido de combater os criminosos. Não tem “poder de polícia” ─ na verdade, tem menos liberdade que a PM do Rio. Não pode prender sem mandato judicial. Não pode revistar um prédio sem licença do juiz. Serve para ficar na rua, aparecer em fotos e fazer os bandidos tirarem umas férias, até a hora de ir embora e entregar o território de novo para eles. Enquanto isso, soldados e oficiais têm de rezar para não precisarem atirar em legitima defesa; vão dizer, aí, que o Exército matou “um civil”. É uma espécie de falência mental coletiva. Para a mídia, os ministros do Supremo, os pensadores políticos e por aí afora, não há assaltantes nos morros do Rio de Janeiro; há civis. É o triunfo do crime, para a tranquilidade dos defensores da nossa democracia.
J.R. Guzzo
O Exército brasileiro não pode resolver o problema porque tem de respeitar as leis ─ e as leis criadas há anos pelos donos do poder impedem que a força armada cumpra a missão que recebeu. O resumo da história é o seguinte, para quem não quer passar o resto da vida discutindo o assunto: a tropa enviada ao Rio de Janeiro está legalmente proibida de combater o inimigo contra quem foi despachada. Muito simplesmente, não há no momento para o Exército enviado à frente de combate as “regras de engajamento”. Como uma força militar pode trabalhar desse jeito? Qualquer exército decente do mundo tem suas regras de engajamento ─ até uma tropa ONU em missão de paz. Do contrário, é um ajuntamento de homens com armas na mão. Essas regras são o conjunto de instruções precisas sobre o que os soldados e oficiais devem ou não devem fazer quando entram em ação. Uma das principais é atirar no inimigo. Não se trata de sair dando tiro por aí, mas também não é uma opção em aberto. Um sujeito que porta um fuzil automático no meio da Avenida Brasil para assaltar um caminhão de carga, por exemplo, ou desfila armado pelas favelas, é um inimigo ─ e, portanto, um alvo. Ou não é? Aqui, pela regra, não é. Pelas nossas leis, não há inimigo. Conclusão: o Exército está no meio de uma guerra no Rio, mas nossas leis e tribunais dizem que a tropa do outro lado encontra-se sob a sua benção.
Nossos soldados, assim, se veem na extraordinária situação de não poder atirar no agressor ─ não têm, para tanto, a autorização da lei, nem sua proteção. É como se numa guerra o soldado que matasse o inimigo armado fosse depois levado ao tribunal de júri e processado por homicídio. Quer dizer: o Exército foi chamado para combater o crime, mas está impedido de combater os criminosos. Não tem “poder de polícia” ─ na verdade, tem menos liberdade que a PM do Rio. Não pode prender sem mandato judicial. Não pode revistar um prédio sem licença do juiz. Serve para ficar na rua, aparecer em fotos e fazer os bandidos tirarem umas férias, até a hora de ir embora e entregar o território de novo para eles. Enquanto isso, soldados e oficiais têm de rezar para não precisarem atirar em legitima defesa; vão dizer, aí, que o Exército matou “um civil”. É uma espécie de falência mental coletiva. Para a mídia, os ministros do Supremo, os pensadores políticos e por aí afora, não há assaltantes nos morros do Rio de Janeiro; há civis. É o triunfo do crime, para a tranquilidade dos defensores da nossa democracia.
J.R. Guzzo
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