terça-feira, 6 de maio de 2025

Pensamento do Dia



Debates são monólogos paralelos para converter convertidos

Foi milagre. Semana passada, assistindo a um debate político na TV, um dos participantes mudou de ideias ao vivo. "Você tem razão", disse ele, depois de uma pausa de alguns segundos. "Pensando melhor, seus argumentos me convenceram."

O outro, surpreso, respondeu: "Sério? É a primeira vez que isso acontece na minha vida". No estúdio, todos riram.

Eu também ri, imaginando a cena, que nunca aconteceu. O responsável por minhas divagações mentirosas é o escritor Julian Barnes, que escreveu um breve ensaio a respeito: "Changing my Mind" (mudando de ideias).

Escreve Barnes, citando o artista Francis Picabia, que nossas cabeças são redondas para que nossos pensamentos possam mudar de direção. Mas quantas vezes isso acontece?


Em público, raramente. Nunca. Impossível. A cena televisiva que eu descrevi é pura ficção. Ninguém escuta argumentos, ninguém avalia o argumento do outro por seus próprios méritos.

Tudo o que temos são monólogos paralelos para converter os convertidos. Nossos debates são exercícios de dogmática muito semelhantes às brigas de galos. Vence quem dá mais bicadas no adversário.

Mas é possível mudar de ideias?

Julian Barnes confessa que mudou, até porque a mudança é involuntária. Nossas memórias, que julgamos fiéis, são sempre transformadas quando as convocamos para o presente. O que julgamos ter acontecido é, muitas vezes, uma construção posterior para tapar algum buraco ou alguma dissonância.

Concordo. Há episódios da minha infância ou da minha juventude que mudam de versão consoante as testemunhas. Lugares onde estive, mas não estive. Conversas que escutei, mas não escutei. Traumas que carrego, mas não carrego.

Nossa memória é um filme que vamos constantemente editando, ao sabor das conveniências presentes e dos temores futuros. A verdade, dolorosa verdade, é que nem o passado nos pertence por inteiro.

O que é válido para nós é válido sobre os outros. Meus juízos ou julgamentos sobre terceiros foram ficando mais modestos. Que sei eu da vida deles? Que sei eu da minha?

Mas não é preciso ser tão filosófico. Julian Barnes se ocupa das coisas singelas —palavras, política, livros, envelhecimento, morte— para fazer o catálogo das suas mudanças de opinião.

Gostei de saber que, entre os autores, o escritor inglês abandonou Bernard Shaw ou D.H. Lawrence —escritores que gostam de pregar os seus sermões— para revalorizar E.M. Forster ou Georges Simenon.

No meu caso, conservo ainda Bernard Shaw (pelo estilo), mas prefiro o contemporâneo Oscar Wilde (pelo estilo e pelo resto). Aliás, sempre preferi —e minhas mudanças foram bem menos radicais. Os autores que amei na juventude —Mark Twain, Wilde, Wodehouse, Evelyn Waugh— sempre estiveram na melhor estante.

E houve mudanças no pódio: entre os lusos, Eça de Queirós é agora medalha de prata (o ouro vai para Camilo Castelo Branco, bicentenário neste ano).

E em política?

Julian Barnes confessa que já votou nos trabalhistas, nos liberais, nos conservadores. E questiona se foi ele quem mudou ou se foram os partidos que mudaram.

Eu, confesso, nunca fui tão elástico. Meu ceticismo começou lá atrás e, até o momento, ainda não me abandou. Só abrandou, ou seja, estou mais liberal do que conservador. A escritora portuguesa Agustina Bessa-Luís (medalha de bronze) dizia que nascera adulta e que iria morrer criança. Quem sabe? Talvez aconteça.

As melhores páginas do ensaio, porém, lidam com o tempo, a idade e a finitude. Julian Barnes relembra: na infância, o tempo não existia ou existia em excesso, sob a forma de um tédio aterrador.

É um mal de que nunca padeci: na infância, o tempo tinha a duração ideal —os dias eram longos e proveitosos, as férias ainda mais.

Na idade adulta, a única alteração foi para pior: o tempo passa rápido ou, então, rapidíssimo. E fica tudo por fazer.

Sobre a velhice e a morte, Julian Barnes, beirando os 80, não tem ilusões: a velhice não é um eufemismo ("os 80 são os novos 60" etc. etc.) e a morte será um ponto final sem prorrogação eterna.

Com menos 30 anos, não consigo ser tão definitivo. Mas envelhecer, ao contrário do que pensava e temia, tem sido uma bênção para mim, mesmo que o corpo diga o contrário.

Há coisas que mudam. Há coisas que não mudam. A primazia do amor, a primazia da arte, a primazia da literatura — essa trilogia manteve-se inalterada em Julian Barnes. Exatamente por essa ordem?

Não sabemos. Mas é uma lista respeitável, que eu endossaria facilmente — não fosse por uma ausência imperdoável: a primazia do humor.

A sabedoria popular está errada. Quem ri por último não ri melhor.

O banquete de Veronese

A capacidade para nos adaptarmos é um sexto sentido. Muitos animais não têm: morrem. De outros não chegamos a saber: não se adaptaram, ficaram por ali, sem deixar descendência de espécie alguma.

As nossas circunstâncias estão sempre a mudar e, como não podemos mudar as circunstâncias, mudamos a nossa maneira de encará-las.

Veja-se a pintura de Veronese que é conhecida por “Convito in casa de Levi.” Como é que se conta a história desta pintura? Depende da maneira como a queremos contar. Vou contar apenas a história que mais me convém.

Veronese pintou a última ceia, mas a Igreja não gostou. E lá se convocou a Inquisição para julgar o pintor. A pergunta principal era: “Por que a última ceia está cheia de bêbados, anões e alemães”?

Veronese respondeu que havia muito espaço para encher e que tinha tido o cuidado de colocar os bêbados, anões e alemães muito longe de Jesus. Enfim, disse o que qualquer um de nós diria.

Mas não colheu. A Inquisição reagiu como qualquer Inquisição reagiria. Mandou alterar imediatamente a pintura, ordenando que extinguese aquelas figuras carnavalescas.

Veronese não queria alterar uma composição tão magnífica. Decidiu mudar de estratégia: os bêbados, anões e alemães estavam lá porque que, como artista, tinha direito a exprimir-se com a mesma liberdade que se concedia aos loucos e aos poetas. A Inquisição deve ter sorrido, não era insensível à lata.

Veronese e a Inquisição acabaram por se entender. Adaptaram-se.

A pintura ficou na mesma. Só o título mudou. Deixou de ser “A Última Ceia” e passou a ser “O banquete em casa de Levi”. Ou “A farra em casa de Levi”.

O nome mudou-se num segundo e não estragou nada. Foi uma adaptação magnífica.

Não é frequente evocar-se a flexibilidade dos grandes artistas – e muito menos da Inquisição. E assim se acrescentou uma história àquela que é a história da defesa da liberdade artística perante a tirania do gosto dominante.

A pintura ficou. E ficou a rir-se.
Miguel Esteves Cardoso

Bloqueio israelense de Gaza: 'A situação é indescritível'

Após quase 19 meses de guerra, o povo de Gaza está ficando sem opções para lidar com a situação e teme o que o futuro reserva.

O bloqueio israelense de todos os suprimentos humanitários e comerciais já dura dois meses, e o bombardeio israelense em Gaza continua.

"A realidade em Gaza é indescritível", disse Ahmad Qattawi à DW por telefone da Cidade de Gaza. "Estamos vivendo uma tragédia, tentando sobreviver, sem saber se vamos conseguir ou não. Podemos sobreviver, mas nossas almas morreram há muito tempo."


O medo de bombardeios é um problema, ele enfatiza, e encontrar o suficiente para comer também é outro problema. "Somos consumidos pela busca diária por comida, estocando tudo o que podemos para os dias seguintes", acrescenta. "Comemos frugalmente e tanto quanto podemos."

Organizações de ajuda humanitária têm alertado constantemente sobre o alto risco de desnutrição e fome, já que padarias estão fechadas, o preço dos alimentos básicos está alto e as fronteiras permanecem fechadas.

Os mercados ainda vendem pequenas quantidades de vegetais, mas eles são inacessíveis para a maioria das pessoas. Os preços dispararam e muitos moradores de Gaza ficaram sem renda. Um quilo de tomate, alimento básico nas cozinhas palestinas, agora custa cerca de 30 shekels , ou 7 euros. Isso se compara aos 1 a 3 shekels por quilo que custava antes da guerra. E um quilo de açúcar agora é vendido por mais de 60 shekels .

"Nossas vidas agora dependem inteiramente de alimentos enlatados, com a rara exceção de alguns vegetais", diz Qatawi, 44 anos, acrescentando que cozinhar é um desafio devido à escassez de gás. "Não há lenha para acender o fogo, então queimamos tudo o que encontramos: roupas, sapatos, qualquer coisa. Esse é o nosso dia a dia."

"Nunca na história de Gaza nos encontramos em uma situação como esta", disse Amjad Shawa, diretor da Rede de Organizações Não Governamentais Palestinas (NGNO), por telefone, da Cidade de Gaza. "É uma catástrofe", acrescenta.

"Temos ataques aéreos, ataques de artilharia, ataques a tendas e abrigos", disse Shawa. "Não há lugar seguro. E, além disso, todo mundo está morrendo de fome. Mesmo falando pessoalmente, não sabemos o que comer. Não há quase nada."

Shawa comenta que as pessoas se sentem cada vez mais encurraladas, sem fim à vista. "E a pior coisa para nós, como humanitários, é nos sentirmos de pés e mãos amarrados, sem nada para dar", lamenta Shawa. "Fazemos o possível para dar alguma esperança aqui e ali, mas, por outro lado, somos parte da comunidade e não podemos nos isolar da situação."

O Escritório de Coordenação de Assuntos Humanitários (OCHA) disse que "o sistema de saúde está à beira do colapso, sobrecarregado pelo grande número de vítimas e severamente afetado pelo bloqueio total, que cortou o fornecimento de medicamentos essenciais, vacinas e equipamentos médicos".

Por sua vez, o Programa Alimentar Mundial (PAM) anunciou recentemente que esgotou suas reservas de alimentos para Gaza e distribuiu os últimos suprimentos para cozinhas comunitárias, que servem refeições básicas aos mais vulneráveis, bem como a farinha restante para padarias.

"Em 31 de março, as 25 padarias apoiadas pelo PMA fecharam depois que a farinha de trigo e o combustível para cozinhar acabaram", anunciou a agência da ONU em um comunicado. Na mesma semana, as cestas básicas do PMA distribuídas às famílias, contendo rações para duas semanas, acabaram. O PMA também está profundamente preocupado com a grave escassez de água potável e combustível para cozinhar, que obriga as pessoas a procurar comida para cozinhar.

À medida que os suprimentos diminuem, as preocupações sobre como apoiar os entes queridos ofuscam tudo, disse Mahmoud Hassouna, morador da cidade de Khan Yunis, no sul de Gaza, à DW por telefone. O jovem de 24 anos foi deslocado no início da guerra em 2023, quando a casa de sua família foi destruída por bombardeios israelenses.

O jovem conta que passa o dia na casa improvisada da família, ajudando a mãe a preparar comida. "Voltamos a viver de comida enlatada", diz ele. "Não temos dinheiro suficiente para comprar vegetais, que são vendidos a preços exorbitantes no mercado."

Hassouna explica que seu trabalho é encontrar lenha, algo que tem sido difícil de obter ultimamente, já que a maioria das árvores foi cortada ou destruída por bombardeios. Muitas pessoas se arriscam a entrar em casas bombardeadas para resgatar portas ou objetos de madeira.

Você também precisa encontrar água potável e tentar carregar seus celulares nas proximidades. O medo de bombardeios e deslocamentos tornou-se constante: "Passei quase dois anos da minha vida sob bombas, assassinatos e mortes. Nem me reconheço mais."

Um cessar-fogo que começou em janeiro e durou até o início de março trouxe algum alívio à população de Gaza e deu tempo às organizações humanitárias para encher seus armazéns. Entretanto, a situação se deteriorou novamente quando Israel encerrou o cessar-fogo e retomou sua ofensiva em 18 de março, após a conclusão da primeira fase do acordo de cessar-fogo, a libertação de reféns e o fracasso das negociações sobre uma segunda fase.

Antes do fim do cessar-fogo, o governo israelense já havia ordenado o fechamento de todas as passagens de fronteira e interrompido todos os carregamentos humanitários e comerciais para Gaza.

O bloqueio faz parte do que autoridades israelenses descrevem como uma estratégia de "pressão máxima" para forçar o Hamas a libertar os reféns restantes sob um novo acordo de cessar-fogo temporário e, finalmente, derrubar o grupo militante palestino. Autoridades israelenses acusaram o Hamas de roubar ajuda e usá-la para suas próprias forças.

A mídia israelense informou na segunda-feira que o gabinete de segurança aprovou planos operacionais para expandir a atual ofensiva militar , incluindo o recrutamento de dezenas de milhares de reservistas . Não está claro quando tal expansão ocorreria.

O Hamas rejeitou todos os pedidos de desarmamento e insiste em um acordo que garanta o fim da guerra.

Israel iniciou a guerra após um ataque terrorista liderado pelo Hamas em 7 de outubro de 2023, no qual homens armados mataram quase 1.200 pessoas, a maioria civis, e sequestraram cerca de 250 reféns. Autoridades israelenses dizem que 59 reféns permanecem em Gaza, dos quais acredita-se que menos da metade esteja viva.

Israel respondeu imediatamente ao ataque liderado pelo Hamas com uma grande operação militar e ofensiva terrestre em Gaza. O número de mortos na Faixa de Gaza já chegou a mais de 52.000, informou o Ministério da Saúde administrado pelo Hamas na semana passada. Acredita-se que milhares estejam soterrados sob os escombros.

Grupos de ajuda humanitária e as Nações Unidas acusam Israel de usar ajuda humanitária e alimentar como ferramenta política. Isso constitui um potencial crime de guerra que afeta todos os 2,2 milhões de pessoas em Gaza.

Esta semana, o Subsecretário-Geral da ONU para Assuntos Humanitários e Coordenador de Socorro de Emergência, Tom Fletcher, lembrou a Israel em uma declaração que "o direito internacional é inequívoco: como potência ocupante, Israel deve permitir a entrada de ajuda humanitária. A ajuda, e as vidas civis que ela salva, jamais devem ser usadas como moeda de troca".

Durante a guerra, a população de Gaza tornou-se quase inteiramente dependente de suprimentos externos. O deslocamento contínuo de pessoas e a criação de uma vasta zona de proteção controlada pelo exército israelense no norte, ao longo da fronteira leste e no sul negaram aos palestinos o acesso às terras agrícolas mais férteis de Gaza.

"Simplificando, Israel não está apenas impedindo que alimentos entrem em Gaza, mas também criou uma situação em que os palestinos não podem cultivar ou pescar seus próprios alimentos", diz Gavin Kelleher, um trabalhador humanitário do Conselho Norueguês para Refugiados, que recentemente retornou de um trabalho em Gaza.

Os moradores de Gaza também relatam saques de armazéns e uma atmosfera geral de caos e segurança interna precária durante o bombardeio israelense.

O OCHA informou na quinta-feira (1º de maio) que "ataques recentes teriam atingido prédios residenciais e tendas que abrigavam pessoas deslocadas, particularmente em Rafah e no leste da Cidade de Gaza. Até terça-feira, nossos parceiros humanitários estimavam que mais de 423.000 pessoas em Gaza foram deslocadas novamente, sem ter para onde ir."

Isto é um pesadelo para Mahmoud Hassouna. "Meu único desejo é nunca mais ser deslocado." E ele acrescenta: "Depois disso, quero que essa guerra louca acabe."

Um flâneur no inferno

Escrito como reportagem histórica, décadas depois dos fatos, Um diário do ano da peste, de Daniel Defoe (3ª edição, Artes e Ofícios, 2014, tradução Eduardo San Martin), foi publicado em 1772 em uma estratégia publicitária. O material é apresentado com autoria oculta, produzido por um cidadão londrino que viveu à época dos fatos e que nunca antes fora publicado. A peste de que trata o livro é a bubônica, de 1665, que transformou Londres em um pequeno inferno, com seres deformados e mortos em todos os cantos. Trazida nos porões dos navios pelos ratos, a doença reconfigura a organização da cidade, que sofre um esvaziamento, aguçando as divisões sociais.

Não há no livro propriamente um enredo, embora as narrativas se organizem em dois núcleos. A viagem cotidiana pela cidade contaminada, feita pelo narrador, e a história de um grupo de trabalhadores que tenta deixar Londres. Entre dados estatísticos de mortos, descrição da doença, métodos de ação sanitária e policial, elogios ao prefeito, cenas dramáticas de sofrimento e relatos do descuido da população, o livro documenta, a partir de relatos, não raro exagerados, este momento histórico que ainda causava medo na população. O tom que hoje chamaríamos de sensacionalista domina o livro, e, para que haja um maior impacto, no seu lançamento, ele simula uma veracidade documental. Seria um diário em primeira pessoa deixado por um sobrevivente da epidemia. O não-ficcional fazia parte de uma estratégia de chegar a um público maior, mais crédulo quando diante de obras pretensamente reais. O ficcionista, assim, no primeiro momento, se vale da invenção para forjar um caráter documental, anulando-se como autor. Ou seja, o ficcional é constituído nos paratextos, no envelopamento narrativo da obra que se apresenta como testemunhal. Esta novidade de estrutura dá a esta quase-ficção uma natureza moderna, de busca do leitor desconfiado em relação à literatura e ávido por emoções tidas como autênticas, porque vividas em proximidade com um cidadão que tomou nota do que viu. O subtítulo extenso é quase um abstrat da obra: Observações e recordações dos acontecimentos mais extraordinários, públicos ou privados, ocorridos em Londres durante a última grande epidemia. Ou seja, o livro cumpre uma das funções literárias que é a de transmitir emoção estética a partir da simulação de episódios, que aqui atinge a própria identificação autoral.

O autor ficcional do diário tem uma classe bem definida. É um comerciante abastado que, por tédio e por esporte, não fez como a maioria dos companheiros de seu grupo, que, ao primeiro sinal dos riscos da doença, deixou a cidade e foi em busca dos ares puros do campo, em suas propriedades de campo: “Enquanto a população fugia da city, descobri que a corte mudara mais cedo”. Como um trânsfuga, ele olha a cidade deixada para trás pelos seus, podendo passar o período da doença como um flâneur no inferno. Há um diletantismo noir nesta sua atitude que também é um componente estético.

Este eu burguês percorre assim a cidade e a revela dominada pelos pobres, pelos criados abandonados pelos ricos, pelas famílias que ocupavam regiões mais populosas da periferia, todos nas mãos do charlatanismo, tanto científico quanto místico. “O povo andava feito louco atrás de curandeiros, charlatões e de toda velha benzedeira em busca de remédio e tratamentos […], atrás de remédios geralmente anunciados em floreios como este: ‘pílulas preventivas, infalíveis contra a peste’, ‘elixir soberano contra a corrupção do ar’” — o que poderíamos tomar hoje como versões desesperadas da crença em remédios como a cloroquina. Foi um momento de desafio para a medicina, com seu receituário contraditório, em que médicos que prescreviam e usavam certos métodos ou produtos eram também acometidos pela peste.

Há todo um código de habitação da cidade, na maioria das vezes desrespeitado, para evitar a sua propagação. O principal deles é que as famílias contaminadas são mantidas isoladas nas casas, para que não espalhem a doença. Para isso, um aparato policial é posto em ação e mesmo homens de bem da sociedade são convocados para fiscalizar esta medida. O próprio narrador é um deles que, depois de saciar o seu desejo de colher episódios, contrata um pobre para ocupar a função perigosa imposta pela prefeitura.

Para não ter a casa vigiada, as pessoas fingem-se saudáveis, até ficar impossível esconder as transformações do corpo adoecido, e aí são trancafiadas para morrerem quanto antes em isolamento doméstico.

Este cenário dantesco é descrito como fruto da corrupção moral, daí o tom bíblico da vingança divina de algumas passagens da narrativa. O pecado é que levou àquele estado de coisas, sendo a peste uma mão de Deus para punir a nova Sodoma. Embora o narrador apresente estas teses, ele culpa também a população que não se preveniu e continuou contaminando outros cidadãos, em uma espiral infinita. Famílias mais abastadas que não saíram a tempo teriam sido contaminadas pelos seus criados, pois “é preciso reconhecer que, embora a peste atingisse os mais pobres, também foram os pobres que mais destemidamente se expuseram a ela, dirigindo-se aos seus empregos com um tipo de coragem brutal”. Houve fechamento de comércio e de fábricas, o que resultou na “dispensa e demissão de um número incontável de diaristas e operários de todos os tipos”. Esta população, a mais sacrificada, acabou presa à sua pobreza e morrendo em quantidades absurdas (ao todo, foram 75 mil mortos), ao ponto de serem jogadas em valas comuns e obrigando as autoridades a abrir novos cemitérios.

A população que não tinha posses para deixar Londres, ou que foi negligente quando podia fazer isso, restou na cidade. O narrador conta a tentativa de fuga de três irmãos trabalhadores, um velho soldado, um padeiro e um marinheiro aleijado, que com um pouco de dinheiro e provisão tentaram ir para outras vilas, mas eram proibidos de entrar nelas.

Revelando-se politicamente, Defoe, oculto neste narrador anônimo, conclui que o acerto do prefeito, que com sua equipe ficou na cidade, foi trancafiar a população (principalmente a mais pobre) nas suas casas e na cidade, para evitar a propagação da peste. Houve também controle para que não ocorressem saques nas casas e lojas fechadas, o que distinguiu a “boa administração do lorde prefeito e dos juízes […] para impedir que a fúria e o desespero do povo explodissem em arruaças e tumultos, em suma: que os pobres roubassem os ricos”. Neste elogio está a visão de classe do narrador, que mostra para que serviram as autoridades constituídas e qual foi a solução sanitária encontrada: transformar a cidade de Londres em um imenso campo de concentração, em que a população mais necessitada morresse ali, sem causar maiores danos à economia, ao comércio e aos cofres públicos. Uma política que, com alguns disfarces, talvez seja a mesma que estejamos vivendo em certos setores do Brasil de hoje.

Polarização à brasileira

O vocabulário da política brasileira tem consagrado o conceito de polarização para traduzir o sentimento do eleitorado em relação ao momento que o País atravessa. O termo se tornou uma recorrência na expressão popular, a partir de 2018, quando o ex-capitão Jair Bolsonaro ganhou o pleito, no segundo turno, por 55,13% contra 44,87% do petista Fernando Haddad. A polarização foi o conceito usado por uma parcela do eleitorado para explicar a vitória do candidato da direita contra o candidato de esquerda. E, também, para explicar a vitória de Lula em 2022.

A polarização política, é oportuno lembrar, ganhou espaço no cenário eleitoral ao longo do ciclo da redemocratização dos anos de 1990, quando o PT ainda se apresentava como o legítimo intérprete do ideário socialista, enfrentando o PSDB, que tentava fincar as estacas da social-democracia. As diferenças entre os dois se apresentavam no modo de implementar seus programas, pois os escopos se aproximavam.

Enquanto os partidos socialistas defendem a igualdade social, a justiça, a redução da desigualdade e a intervenção do Estado na economia para garantir o bem-estar social, por meio de mudanças radicais, os partidos social-democratas defendem o Estado do Bem-Estar Social, focando em reformas gradualistas, sob a égide do Estado Democrático de Direito.

Era esse o ideário que abria espaço para a polarização. Hoje, a disputa entre tucanos e petistas não tem mais sentido. O tucanato se apequenou, ninho, diminuiu de tamanho e, para sobreviver, funde-se, agora, com um partido amorfo, o Pode (Podemos), da família Abreu (Renata Abreu), para formar uma Federação, essa nova figura criada com o objetivo de permitir às legendas atuarem de forma unificada em todo o País. A nova Federação promete atuar na área de centro-direita.


Como se vê, os tucanos mudam para outro lado do arco ideológico, estreitando o espaço de centro-esquerda e engordando o centro.

Já o PT, que se apresentava como o único partido a desfraldar a bandeira socialista, também corre para o centro, premido pelas circunstâncias e forçado por um aglomerado composto de uma batelada de siglas sem doutrina (o Centrão). Urge reconhecer, porém, que o petismo ainda atrai uma legião de simpatizantes, principalmente os bolsões que recebem benefícios, contingentes da baixa classe média, grupos da academia e do mundo das artes e pequenos proprietários, entre outros.

O fato é que o partido amaciou sua imagem, adoçou sua narrativa extremista, limpou arestas, e contém vozes mais radicais, como os integrantes da Articulação de Esquerda, que ainda defendem um “projeto de direção socialista para realizar um processo de transformação radical do Brasil”.

A imagem de partido ideológico dá lugar à de um partido que joga o “jogo das conveniências”. Um partido que busca apoio de entes amorfos, sem ideologia, sem programas e sem marca.

O PSB do prefeito de Recife, João Campos, e do vice-presidente Geraldo Alckmin, por sua vez, já não habita a seara socialista, embora o S da sigla (S de socialista) tenha perdido sentido.

Voltemos, então, a analisar a polarização. Como ela pode existir sob uma moldura que mostra um PT centrista, um PSDB quase morrendo, o PDT do ministro da Previdência, Carlos Lupi, sendo destroçado pela crise do INSS, o PSB de João Campos sem programas, o PSD de Gilberto Kassab crescendo no espaço de centro-direita, e o PL de Valdemar da Costa Neto e de Bolsonaro, tendo como único objetivo derrotar Lula em 2026. Defende o PL um ideário, uma linha programática que lhe desse uma identidade? Ora, se ganhou em 2018 a disputa contra o PT, não foi por conta de uma marca ideológica e, sim, porque o eleitorado viu em Bolsonaro um perfil novo, alguém que se contrapunha à mesmice.

A ciência política ensina: a polarização costuma ocorrer em sistemas bipartidários, como os dos Estados Unidos, onde dois partidos, o republicano e o democrata, se revezam no assento presidencial da Casa Branca.

Portanto, a polarização no Brasil, nos termos definidos pela política, não existe ou é insignificante. Temos 29 siglas registradas no TSE e não há, entre elas, disputas ideológicas, com exceção de um outro partido, de índole extremada, como o PSOL ou o PSTU.

Se a disputa ideológica é de pouca intensidade, já na esfera social ela ganha força, ancorada em divergências entre duas bandas da sociedade, uma que se proclama liberal (defesa de princípios que enfatizam a liberdade individual, a igualdade perante a lei, a democracia, o livre mercado e a propriedade privada); e outra que defende valores conservadores (defesa da manutenção das instituições sociais tradicionais, como a família, a comunidade local e a religião, além dos usos, costumes e tradições).

Qual o tamanho dessas bandas? As pesquisas de opinião calculam que ambas não passam de 30% do eleitorado. Sobram 70%.

Pergunta que fica no ar: é possível se afirmar que temos forte polarização no País, como costumam dizer bolsonaristas e petistas?