quinta-feira, 27 de maio de 2021

A velha truculência da ditadura, em pleno século 21

Parece coisa do Brasil da ditadura, mas aconteceu no Brasil de 2021. O servidor federal de carreira e sociólogo Celso Rocha de Barros foi convocado a depor pela Polícia do Senado por ter escrito um artigo criticando senadores que defendem o governo na CPI da Covid. Essa foi a parte da notícia que chegou aos jornais. O que não se sabia até hoje é que a truculência foi além.

Num dia da semana passada, o telefone tocou na casa de um parente dele. Na ligação, pessoas não identificadas “sugeriram”: se ele apresentasse um pedido de desculpas por escrito, talvez desse para evitar as consequências legais do que publicara. Em sua coluna na “Folha de S.Paulo”, Rocha de Barros disse que os senadores Eduardo Girão (Podemos-CE) e Luis Carlos Heinze (PP-RS) buscam tumultuar a CPI mentindo sobre medicina e cloroquina, formando um “consultório do crime” a favor de Bolsonaro.

Dias antes, foi o professor da Universidade de São Paulo (USP), Conrado Hübner Mendes, que se surpreendeu com a represália a um artigo seu, também publicado na “Folha”. O professor, que costuma se referir ao procurador-geral da República, Augusto Aras, como “poste-geral da República” em suas redes sociais, escreveu que o PGR, que tem como função fiscalizar e investigar as condutas do presidente, é omisso e trabalha o tempo todo para impedir que se apurem as condutas de Bolsonaro na pandemia. Aras não gostou e entrou com uma queixa-crime na Justiça e com uma representação na USP, pedindo que o conselho de ética julgasse o comportamento do professor Mendes.


São os casos mais recentes, mas não isolados. Desde 2019, a Lei de Segurança Nacional — criada pela ditadura para coibir atentados à segurança e à soberania nacional — já foi usada para justificar a abertura de 77 investigações, bem mais que as 44 dos quatro anos anteriores. Pelo menos 12 foram abertas a pedido do próprio Ministério da Justiça, contra políticos e jornalistas que manifestaram críticas a Bolsonaro.

O próprio Aras já processou criminalmente outro jornalista que o criticou por ser leniente com o governo de Bolsonaro. Até agora, não ganhou. E a vitória deve ficar ainda mais difícil depois que o próprio ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes mandou realizar uma operação de combate à corrupção no Ministério do Meio Ambiente sem comunicar a Aras. Por confiar na combatividade da PGR para investigar o governo é que não foi.

A Constituição brasileira tem dois artigos que garantem a liberdade de expressão, de imprensa, de crença e de convicção política, mas os senadores e o poste, ops, o procurador-geral da República, se julgam acima da lei. Evocam respeito a suas autoridades e às instituições que representam, mas esquecem que, quando se dispuseram a exercer funções públicas, sendo remunerados com dinheiro público, (supostamente) para servir ao público, colocaram-se voluntariamente sob o escrutínio… público.

A eles é dado, como a todo cidadão, o direito à reparação e à indenização por calúnia e difamação na esfera cível. Mas, pelo menos até agora, não lhes é dado impedir que outros cidadãos lhes façam críticas, mesmo que ácidas ou supostamente injustas.

Até onde se sabe, não voltamos (ainda) aos tempos da ditadura, quando professores universitários sofriam processos bizarros e eram afastados de seus cargos por razões políticas, e intelectuais recebiam ameaças veladas por suas opiniões e textos em telefonemas anônimos.

Por enquanto, ainda é possível que 88 professores da USP subscrevam as críticas do professor Hübner Mendes num manifesto intitulado “Poste, Servo, Omisso” sem sofrer maiores consequências. Ainda não aconteceu nada ao sociólogo Rocha de Barros, que se recusou a prestar depoimento numa investigação que a Polícia do Senado não tem poder para realizar. E está claro que ainda há, felizmente, muita gente disposta a batalhar pela saúde da democracia brasileira. 

Mas é uma lástima que os mesmos que se dizem preocupados com a imagem de instituições tão importantes para a República como o Senado ou o Ministério Público não se mostrem igualmente empenhados em impedir a disseminação de mentiras sobre remédios sem eficácia para o tratamento da Covid-19. Que não se importem com a esculhambação patrocinada por um governante que promove aglomerações em meio a uma pandemia mortal. Ou que finjam não ver quando o presidente da República ameaça “dar porrada” em jornalistas ou adversários políticos. Para esses, só tem direitos quem tem poder. É gente que age como na ditadura, mas no Brasil de 2021.

Pensamento do Dia

 


Herança maldita

Lula e Fernando Henrique, de máscara, trocando soquinho: a imagem tem muitas camadas, permite várias leituras e com certeza vai ser usada para ilustrar os livros de História sobre o período de trevas que atravessamos — mas a minha primeira impressão, ao vê-la, foi de desagrado. Ela me pareceu ser, mais do que um compromisso com o futuro, o resumo do passado que nos trouxe até aqui. 

Durante boa parte da sua vida pública Lula espinafrou Fernando Henrique sem trégua. Hoje diz que as suas divergências eram “políticas”, mas quem viveu a época e tem alguma memória ousa discordar. 

Impeachment. Fora FHC. Fascistas. Herança maldita. 

A decadência do PSDB começou quando não soube (e não quis) defender o legado de FHC e impor-se como oposição — e é a essa complacência equivocada que a foto remete. 

Para representar uma verdadeira frente ampla, precisaria ter mais personagens: nela figura um só candidato à presidência. 

Com quem a foto pretende dialogar? Para o PT ela é um trunfo (o ex-ministro Celso Amorim a definiu como “transcendental”) — lá está o seu candidato com aquele que designou, ao longo de tantos anos, como seu principal inimigo; a questão é que, até por questão de estilo, FHC nunca assumiu esse papel. Lula sempre manifestou horror a Fernando Henrique e seus eleitores. O inverso não aconteceu. 

A mensagem “Unidos contra Bolsonaro” é importante? Sim, claro — mas para quem? Para os apoiadores de Bolsonaro, não faz nenhuma diferença, pelo contrário: apenas reforça o mito do capitão contra o sistema. E para quem percebe o tamanho do estrago, também não: é óbvio que estão juntos contra Bolsonaro. Quem não está? A questão não é política, é moral. Não há o que discutir entre civilização e barbárie.

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Por falar em “herança maldita”: Lula tem razão, mas não pelos motivos que alega (ou alegava). Fernando Henrique deixou mesmo uma herança maldita, que contaminou toda a política brasileira e fez um dano incalculável à nossa democracia. Chama-se reeleição. 

Desde que conseguiu comprá-la, não tivemos mais um único administrador, em qualquer nível, que se dedicasse plenamente ao ofício que é pago para exercer. Assim que sentam a derrière em suas cadeiras, nossas autoridades passam imediatamente a trabalhar em função da reeleição. 

Ou o Brasil acaba com a reeleição, ou a reeleição acaba com o Brasil. 

Sério.

Cada época tem a saúva que lhe cabe.

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O prefeito Eduardo Paes ganha muitos pontos dos cariocas apenas por não ser o seu antecessor, mas não precisa exagerar no cinismo, como fez anteontem ao dizer que uma eventual multa a Bolsonaro por ter desrespeitado o decreto que obriga o uso de máscaras teria que ser “avaliada pelo povo”: “O presidente é a principal autoridade do Brasil. Ele vai ser sempre bem-vindo no Rio de Janeiro, e nós não vamos ficar nesse joguinho de multa, né? O presidente tem essa responsabilidade, ele pode avaliar.” 

Ora, não nos faça de idiotas, Eduardo Paes! Excludente de ilicitude para uso de máscara a essa altura da pandemia? E desde quando esse presidente tem responsabilidade, e onde consegue avaliar o que quer que seja?! 

Tenha vergonha, homem. Francamente. 

Os limites da obediência

Os conflitos políticos de momento assumiram um nível preocupante para a manutenção da estabilidade e da paz social do país.

Nesse contexto, as relações entre a sociedade civil e o poder militar vêm sendo colocadas como aditivos aos desafios cotidianos.

O comportamento e a formação militares são prioritariamente cartesianos. Não obstante, nos últimos anos absorveram traços mais robustos das ciências humanas e sociais.

A Academia Militar das Agulhas Negras, escola de formação da oficialidade do Exército, como qualquer organização militar, é um mundo de quietude severa. Reina dentro de seus muros normas rígidas de comportamento com base na ética, na disciplina e na moral.

Não faltar à verdade. Não prevaricar. Não roubar. Fortalecer o espírito de corpo. Não abandonar companheiros feridos em campo de batalha e muitos outros “mandamentos” estão grafados a cinzel nas decenárias paredes de mármore da Real Academia. Quem disso destoa, não pode chamar-se de militar.


O professor Samuel Huntington, conselheiro de segurança no governo americano de Jimmy Carter, aponta a lealdade e a obediência como as mais altas virtudes militares. De fato, são atributos indissociáveis da cultura militar. Mas, segundo ele, quais serão os limites da obediência?

Essa obediência é incondicional? Ou se subordina às atribuições diretamente relacionadas com a atividade de exercer, a nome da sociedade, a violência institucional do Estado?

Em sua análise, Huntington certifica que as instituições democráticas americanas nunca geraram um vácuo de poder. Quase sempre o controle civil sobre o militar esteve claro no relacionamento entre esses dois atores sociais.

O vácuo, físico, intelectual ou moral, do agente controlador foi fator coincidente na história do desvio do soldado da sua atividade precípua. O que pode trazer o efeito colateral da corrupção lato sensu. Da corrupção moral, a genitora de todas as outras corrupções. Todas insuportáveis.

É importante que se consolide em nosso país a crença de que o profissionalismo militar está indelevelmente atrelado ao efetivo controle civil na defesa nacional.

Dentre os atores que atuam nesse processo, o posto honorífico de comandante supremo das Forças Armadas precisa ser respeitado por quem o exerce.

Só assim, quando houver a exigência de instalação de uma estrutura de guerra, seja ela interna ou externa, essa autoridade estará respaldada para definir as diretivas no nível mais alto da política de Estado.

Eventual interferência nos níveis subalternos do processo decisório não produzirá o efeito desejado. Será apenas “um manda o outro obedece” sem aprofundamento na liturgia e na missão dos respectivos deveres hierárquicos.

O que a sociedade brasileira espera dos militares de nossas Forças Armadas?

Os sistemas de preparo, emprego e ensino de cada uma das forças se adequaram a promover especialização dos seus recursos humanos, movidos por elevado senso de responsabilidade e atuando em ambiente de companheirismo essencial quando se aceita entregar a vida para sobrevivência Nação.

A unidade de comando, fundamental para o desempenho legal e imparcial dos comandantes, tem sido alvo de ataque aos pilares da hierarquia e da disciplina com possibilidade de rachar os círculos castrenses de forma vertical e até horizontal.

O agente político das Forças Armadas é o Estado. A estrutura hierárquica na qual as Forças Armadas estão inseridas tem no topo da pirâmide o Estado, suportado por seu povo e por suas leis.

À sociedade como um todo exigir-se-á firmeza de atitude para assegurar o dever implícito das Forças Armadas, clarificados no artigo 142, da Constituição Federal.

É preciso reforçar o muro que separa o estamento militar dessas pendengas políticas-partidárias-pessoais.

A segurança do Estado vem em primeiro lugar. Objetivos exógenos, pessoais ou ideológicos, que possam fazer fraquejar essa segurança, que ao fim e ao cabo também é uma garantia social, não devem ser perseguidos.

Como emulação: “O Brasil espera que cada um cumpra o seu dever” (Almirante Barroso, na Batalha de Riachuelo). Nós também!

O Brasil e os dias

É outono no Brasil. Os dias de maio são luminosos. Mas, para a maior parte da população os tempos são sombrios. A pandemia, que chegou em março de 2020, segue seu caminho de morte, sem parada, e sem que o governo federal invista em políticas de prevenção. Avançamos para 500 mil mortes em ritmo acelerado, e não há previsão de alteração no quadro de perdas e dor. Pelo contrário. O presidente da nação segue apostando alto no contágio de rebanho e faz ele mesmo a sua parte, circulando, aglomerando, sem máscaras ou cuidados. E, atrás dele, segue o bonde da negação e da ignorância.


O Congresso Nacional, depois de mais de um ano de omissão, decidiu instalar uma CPI para investigar se há ou não responsabilidade do governo na disseminação acelerada da doença. Passaram por lá os três últimos ministros da sáude, todos eles revelando o que o país inteiro já sabia. O governo não se preocupou em proteger a população, o governo incentivou o não uso de máscaras, incentivou o tratamento precoce com remédios inúteis para a Covid, não atuou para resolver a falta de oxigênio em Manaus – quando morreram centenas de pessoa, sem ar – e não está preocupado com a vacinação. Nenhuma novidade, portanto.

Mas, apesar de tudo isso, mesmo com os depoimentos e as provas, nada acontece e ao que parece nada acontecerá. Isso porque a escolha governamental tem sido muito boa tanto para os cofres públicos quanto para os negócios da pequena fatia dos brasileiros que conforma a elite local. Os idosos – considerados como peso para a previdência – são os que mais morreram, somando mais de 70% das mortes, e esse dado foi comemorado pela Superintendência de Seguros Privados, pois diminuiria o chamado rombo das contas da previdência. Segundo a Fundação Getúlio Vargas, a morte dos velhos retirou cerca de cinco bilhões de reais da renda potencial das famílias, muitas delas tendo nos aposentados a única fonte de renda. Isso significa um número considerável de gente sendo jogada para a miséria.

Para os empresários esses números são considerados bons também porque aumenta o exército de reserva e eles podem barganhar ainda mais os salários, exigindo mais dos seus trabalhadores e pagando menos. É um momento propício para aumentar os lucros.

Não bastasse isso, enquanto o país se distrai com os depoimentos da CPI gerando memes nas redes sociais, a casa legislativa segue arrochando ainda mais a vida dos brasileiros, seja votando leis que tiram cada vez mais direitos ou entregando a preço de banana o patrimônio nacional. A última agora foi a aprovação para a venda da Eletrobras, empresa brasileira de geração de energia elétrica. A historinha é a mesma de sempre: tem muita dívida, e empresa dá prejuízo, a conta da luz vai baixar. Ora, uma empresa estatal – a quinta maior do mundo – que cuida de um setor estratégico como o da energia não é uma empresa para dar lucro e sim para servir a nação. Qual empresa privada vai investir e adentrar no interior do país para atender as necessidades de pequenos consumidores? Nenhuma.

Outro golpe que corre célere no congresso é a tal da reforma administrativa do ministro Guedes, que prevê acabar com o serviço público no país. É um desmonte total do estado, cujas consequências não são divulgadas para a população visto que a mídia comercial é totalmente cúmplice do projeto ultraliberal do governo Bolsonaro.

Não vou nem falar nos inúmeros casos de corrupção envolvendo a família do presidente que, apesar de todas as evidências e provas concretas, não comove o judiciário brasileiro, igualmente cúmplice dessa tragédia nacional que vivenciamos. E, se está tudo bem para a classe dominante, dane-se o populacho. Essa é a tônica.

Já vamos entrar no sexto mês do segundo ano da pandemia e por aqui menos de 10% da população está vacinada. Não há indícios de que as coisas possam melhorar, bem como não há indícios de que haja uma reação massiva. Num país onde a Covid-19 só avança, o medo ainda é o nosso maior inimigo. Porque além de não haver vacinas, não há também qualquer garantia de que haverá hospitais, leitos de UTI ou oxigênio para os infectados. É o cenário perfeito para a classe dominante – que se vacina nos EUA – avançar sobre os direitos dos trabalhadores e saquear a nação.

Nesses tristes dias, nem deus é por nós!