sexta-feira, 16 de junho de 2023
Corrigir um erro fundamental
Talvez, em algum momento do passado, tal proposição tenha sido válida, mas hoje não mais. Tornou-se apenas mais um exemplo da célebre frase de Keynes, quando disse que políticos e homens de negócio com frequência são escravos de economistas mortos, assim destacando o fato de que muitas vezes ideias persistem apesar de as mudanças sociais e econômicas as terem tornado ultrapassadas, equivocadas.
Uma questão básica a ser levada em conta é que a acumulação de mudanças quantitativas leva a mudanças qualitativas. São muitos os exemplos: um copo de água pode matar a sede, um balde pode afogar o sedento; uma dose de droga salva o paciente, muitas o matam; um milhão de humanos afetam a biosfera minimamente, dez bilhões – ajudados por potentes equipamentos movidos pela dissipação de energia acumulada por milênios – ocasionam profundas alterações na geografia (literalmente movendo montanhas), nas composições química e biológica do ar e da água etc. Em suma, mudanças profundas na biosfera.
Sabemos, ainda, que as transformações da biosfera provocadas pelos humanos têm ocasionado, entre outras, a sexta extinção em massa, além de levar os próprios humanos a respirarem gases tóxicos e a se alimentarem de outros tóxicos. Assim, a velha regra aplicável a diversas ciências – mudanças quantitativas levam a mudanças qualitativas – deve também ser aplicada aos processos sociais e econômicos que vivem os humanos. É este fato que torna obsoleta e equivocada a busca pela “retomada da economia”, ou pelo “crescimento”.
O objetivo, agora deve ser outro, e direto: melhorar a qualidade de vida dos mais pobres e recuperar a resiliência dos vários biomas. Para tal, há que identificar objetivos socioambientais intermediários alcançáveis no curto prazo, ou seja, pequenas melhorias que abram espaço e mostrem o caminho para conquistas maiores.
Não é recente a ideia, em economia, de que a qualidade de vida depende também de fatores que não a renda: acesso à saúde, a uma moradia hígida, a transporte confiável, à percepção de progressiva melhoria para os filhos etc.
Exemplificando, o natimorto programa “Cartão Reforma”, lançado no governo Temer e que nunca vingou – pois criado atabalhoadamente, mais para promover o ministro que o propôs que para alcançar os objetivos de melhoria das habitações – é, a princípio, bem melhor, mais barato e eficaz, que o “Minha Casa Minha Vida”, cujas deficiências em termo de estrutura urbana são notórias. O “Cartão Reforma”, mais bem pensado, estruturado e negociado com prefeituras e associações comunitárias, pode, ao contrário, contribuir para solucionar problemas urbanos e habitacionais de longa data. Entre eles, menos resíduos espalhados nas vias públicas e melhor acesso ao transporte público e ao saneamento.
A questão habitacional é complexa, e não pode ser esgotada neste breve artigo. O ponto a destacar é que melhorias cumulativas, ainda que inicialmente pequenas e nem sempre observáveis quando a preocupação central é o crescimento do PIB, podem transformar para melhor e mais rapidamente a vida das populações mais carentes.
A multiplicação da quantidade de humanos e dos volumes de nossas intervenções na biosfera sinalização a impossibilidade de continuar no mesmo rumo e exigem uma mudança qualitativa: perseguir a progressiva redução de problemas concretos que afligem a maioria, e não mais almejar a miragem dita “desenvolvimento econômico”.
Humanidade
suas ambições
Eu fui envelhecendo
E perdendo
as ilusões
o que predomina é a
maldade
porque a bondade:
Ninguém pratica
Humanidade ambiciosa
E gananciosa
Que quer ficar rica!
Quando eu morrer…
Não quero renascer
é horrível, suportar a humanidade
Que tem aparência nobre
Que encobre
As péssimas qualidades
Notei que o ente humano
É perverso, é tirano
Egoísta, interesseiros
Mas trata com cortesia
Mas tudo é hipocrisia
São rudes, e trapaceiros.
Carolina Maria de Jesus, "Meu estranho diário"
O trator e a fome
Inquietavam-se as terras do oeste sob os efeitos da metamorfose incipiente. Os estados ocidentais estavam intranquilos como cavalos antes de temporal. Os grandes proprietários inquietavam-se, pressentindo a metamorfose e sem atinar com a sua natureza. Os grandes proprietários atacavam o que lhes ficava mais próximo: o governo de poder crescente, a unidade trabalhista cada vez mais firme; atacavam os novos impostos e os novos planos, ignorando que tudo isto era efeito, e não causa. As causas escondiam-se bem no fundo e eram simples — as causas eram a fome, a barriga vazia, multiplicada por milhões; fome na alma, fome de um pouco de prazer e de um pouco de tranquilidade, multiplicada por milhões; músculos e cérebros que queriam crescer, trabalhar, criar, multiplicados por milhões. A última função clara e definida do homem — músculos que querem trabalhar, cérebros que querem criar algo além da mera necessidade — isto é o homem. Construir um muro, construir uma casa, um dique, e pôr nesse muro, nessa casa, nesse dique algo do próprio homem, é retirar para o homem algo desse muro, dessa casa, desse dique; obter músculos fortes à força de movê-los, obter linhas e formas elegantes pela concepção. Porque o homem, ao contrário de qualquer coisa orgânica ou inorgânica do universo, cresce para além de seu trabalho, galga os degraus de suas próprias ideias, emerge acima de suas próprias realizações. É isto o que se pode dizer a respeito do homem. Quando teorias mudam e caem por terra, quando escolas filosóficas, quando caminhos estreitos e obscuros das concepções nacionais, religiosas, econômicas alargam-se e se desintegram, o homem se arrasta para diante, sempre para a frente, muitas vezes cheio de dores, muitas vezes pelo caminho errado. Tendo dado um passo à frente, pode voltar atrás, mas não mais que meio passo, nunca o passo todo que já deu. Isto se pode dizer do homem, dizer-se e saber-se. Isto se constata quando as bombas caem dos aviões negros sobre a praça do mercado, quando prisioneiros são tratados como porcos imundos, e os corpos esmagados se consomem imundos na poeira. Pode ser constatado desta forma. Não tivesse sido dado esse passo, não estivesse vivo no pensamento o desejo de avançar sempre, essas bombas jamais cairiam e nenhum pescoço seria jamais cortado. Tenha-se medo de quando as bombas não mais caem, enquanto os bombardeiros ainda existam, pois que cada bomba é uma demonstração de que o espírito não morreu ainda. E tenha-se medo de quando as greves cessam, enquanto os grandes proprietários estão vivos, pois cada greve vencida é uma prova de que um passo está sendo dado. E isto se pode saber — tenha-se medo da hora em que o homem não mais queira sofrer e morrer por um ideal, pois que esta é a qualidade básica da humanidade, é a que a distingue entre tudo no universo.
Um homem, uma família, expulsos de suas terras, esse veículo enferrujado arrastando-se e rangendo pela estrada rumo ao Oeste. Perdi as minhas terras; um trator, um só, arrebatou-as. Estou sozinho e apavorado. E uma família pernoita numa vala e outra família chega e as tendas surgem. Os dois homens acocoram-se no chão e as mulheres e as crianças escutam em silêncio. Aqui está o nó, ó tu que odeias as mudanças e temes as revoluções. Mantém esses dois homens apartados; faze com que eles se odeiem, receiem-se, desconfiem um do outro. Porque aí começa aquilo que tu temes. Aí é que está o germe do que te apavora. É o zigoto. Porque aí transforma-se o “Eu perdi minhas terras”; uma célula se rompe e dessa célula rompida brota aquilo que tu tanto odeias, o “Nós perdemos nossas terras”. Aí é que está o perigo, pois que dois homens nunca se sentem tão sozinhos e abatidos como um só. E desse primeiro “nós” nasce algo muito mais perigoso: “Eu tenho um pouco de comida” mais “Eu não tenho nenhuma”. Quando a solução desta soma é “Nós temos um pouco de comida”, aí a coisa toma um rumo, o movimento passa a ter um objetivo. Apenas uma pequena multiplicação, e esse trator, essas terras são nossas. Os dois homens acocorados numa vala, a pequena fogueira, a carne que se cozinha numa frigideira comum, as mulheres caladas, de olhos vidrados; atrás delas as crianças, escutando com o coração palavras que seu cérebro não abrange. A noite desce. A criança sente frio. Aqui, tome esse cobertor. É de lã. Pertenceu à minha mãe — tome, fique com ele para a criança. Sim, é aí que tu deves lançar a tua bomba. É este o começo da passagem do “Eu” para o “Nós”.
E tratores abrem sulcos múltiplos nas terras abandonadas.
John Steinbeck, "As vinhas da ira"
Empresas, governos e a conta do aquecimento global
É bem verdade que as tratativas evoluíam razoavelmente até que a COVID19 seguida da guerra na Ucrânia arrefeceram a disposição dos governos e das empresas de cumprir as metas multilaterais de descarbonização, especialmente nos setores de energia, combustíveis e alimentos.
Contudo, nem o Corona Vírus e nem Putin podem ser condenados como carrascos isolados (nem sequer principais) da desaceleração das providências previstas nos acordos climáticos vigentes.
Acontece que o fator limitante dos avanços é estrutural e se encontra entre os pilares da economia moderna, que fundamentam tanto o investimento privado como o gasto público que o subsidia. Ao final, seja governo, seja empresa, ninguém se anima em fechar seus balanços no vermelho.
Para sermos mais exatos, a regra básica dos mercados é não apenas fechar no azul, como também maximizar esses resultados positivos. É uma ‘lei’ da eficiência que não merece juízo de valor em si, porque busca a obtenção dos melhores resultados possíveis, como em qualquer outra atividade humana.
Para isso, um caminho comprovadamente eficaz é minimizar os custos. E é exatamente nessa minimização de custos que o setor privado desde sempre tem exagerado em economizar, negligenciando nos princípios da Responsabilidade Socioambiental (RSE) ou, mais recentemente, Governança Social e Ambiental (ESG).
O passivo ambiental e social vem sendo percebido, contabilizado, regulamentado e tratado gradualmente, a partir das legislações e políticas trabalhistas, de saúde pública, saneamento, poluição do ar e água. O problema é que a produção industrial, a agropecuária, as cidades, a população e o consumo crescem muito mais rápido do que o nível de conscientização geral sobre a degradação que se provoca sobre as condições de sustentação da vida em grau planetário.
Até algumas décadas atrás, só se percebeu a escala global do estrago depois que ele estava feito. Em certo momento, fez todo o sentido quando Al Gore chamou o dilema climático de “verdade inconveniente”, porque se tratava de um despertar para um problema temporal difícil de responder: como corrigir os estragos passados, estancar os estragos atuais, prevenir os estragos futuros e se adaptar aos estragos irreversíveis?
Hoje, mesmo sendo possível prever o agravamento e os efeitos futuros, a resposta poderia ser mais fácil se não estivesse inevitavelmente associada a questões adicionais: como resolver tudo isso ao mesmo tempo, sem parar a economia e sem aprofundar as desigualdades sociais? Dito de outra forma, como descascar o abacaxi da mudança climática mantendo o setor privado lucrativo, os governos eficientes e os pobres menos pobres.
Vai ser difícil chegar a uma solução efetiva sem um volume de investimento em tecnologias, infraestruturas e serviços (públicos e privados) que transcende as vacas sagradas da economia e da administração contemporâneas. Será indispensável rever as definições de público, privado, lucro, risco, custo, produtividade, riqueza e soberania. Em alguma medida, ninguém vai escapar de pagar essa conta.