Talvez, em algum momento do passado, tal proposição tenha sido válida, mas hoje não mais. Tornou-se apenas mais um exemplo da célebre frase de Keynes, quando disse que políticos e homens de negócio com frequência são escravos de economistas mortos, assim destacando o fato de que muitas vezes ideias persistem apesar de as mudanças sociais e econômicas as terem tornado ultrapassadas, equivocadas.
Uma questão básica a ser levada em conta é que a acumulação de mudanças quantitativas leva a mudanças qualitativas. São muitos os exemplos: um copo de água pode matar a sede, um balde pode afogar o sedento; uma dose de droga salva o paciente, muitas o matam; um milhão de humanos afetam a biosfera minimamente, dez bilhões – ajudados por potentes equipamentos movidos pela dissipação de energia acumulada por milênios – ocasionam profundas alterações na geografia (literalmente movendo montanhas), nas composições química e biológica do ar e da água etc. Em suma, mudanças profundas na biosfera.
Sabemos, ainda, que as transformações da biosfera provocadas pelos humanos têm ocasionado, entre outras, a sexta extinção em massa, além de levar os próprios humanos a respirarem gases tóxicos e a se alimentarem de outros tóxicos. Assim, a velha regra aplicável a diversas ciências – mudanças quantitativas levam a mudanças qualitativas – deve também ser aplicada aos processos sociais e econômicos que vivem os humanos. É este fato que torna obsoleta e equivocada a busca pela “retomada da economia”, ou pelo “crescimento”.
O objetivo, agora deve ser outro, e direto: melhorar a qualidade de vida dos mais pobres e recuperar a resiliência dos vários biomas. Para tal, há que identificar objetivos socioambientais intermediários alcançáveis no curto prazo, ou seja, pequenas melhorias que abram espaço e mostrem o caminho para conquistas maiores.
Não é recente a ideia, em economia, de que a qualidade de vida depende também de fatores que não a renda: acesso à saúde, a uma moradia hígida, a transporte confiável, à percepção de progressiva melhoria para os filhos etc.
Exemplificando, o natimorto programa “Cartão Reforma”, lançado no governo Temer e que nunca vingou – pois criado atabalhoadamente, mais para promover o ministro que o propôs que para alcançar os objetivos de melhoria das habitações – é, a princípio, bem melhor, mais barato e eficaz, que o “Minha Casa Minha Vida”, cujas deficiências em termo de estrutura urbana são notórias. O “Cartão Reforma”, mais bem pensado, estruturado e negociado com prefeituras e associações comunitárias, pode, ao contrário, contribuir para solucionar problemas urbanos e habitacionais de longa data. Entre eles, menos resíduos espalhados nas vias públicas e melhor acesso ao transporte público e ao saneamento.
A questão habitacional é complexa, e não pode ser esgotada neste breve artigo. O ponto a destacar é que melhorias cumulativas, ainda que inicialmente pequenas e nem sempre observáveis quando a preocupação central é o crescimento do PIB, podem transformar para melhor e mais rapidamente a vida das populações mais carentes.
A multiplicação da quantidade de humanos e dos volumes de nossas intervenções na biosfera sinalização a impossibilidade de continuar no mesmo rumo e exigem uma mudança qualitativa: perseguir a progressiva redução de problemas concretos que afligem a maioria, e não mais almejar a miragem dita “desenvolvimento econômico”.
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