quarta-feira, 6 de fevereiro de 2019

Futuro pousou no Brasil


Quantos erros ainda serão necessários até que a Vale aprenda?

Enquanto as equipes de buscas seguem incansáveis, de sol a sol, atrás de novas vítimas do desastre causado pelo rompimento da barragem da Vale em Brumadinho, outras faces dessa tragédia começam a dividir a atenção do poder público. A Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) fez nesta terça-feira um alerta para as epidemias que podem assolar a cidade após a passagem do mar de rejeitos da mineração. A luz vermelha está acesa para surtos de dengue, febre amarela e esquistossomose, essa última já prevalente na cidade. A exemplo do pequeno município de Barra Longa (MG), vizinho a Mariana, que viu os índices de diversas doenças —como ansiedade, diabetes, dermatite, dengue, hipertensão e parasitoses— saltarem nos meses seguintes ao rompimento da barragem da Samarco, em 2015, a Fiocruz traça agora uma previsão que pode castigar ainda a mais a já debilitada Brumadinho, de quase 40.000 habitantes.

Para além dos traumas e das perdas inestimáveis que os cidadãos de Brumadinho estão sofrendo, essa tragédia pode persistir no cotidiano de seus moradores e se estender por quilômetros do local de origem ao longo de meses, e até anos. As enfermidades mencionadas pela Fiocruz podem surgir em decorrência de alguns fatores, como o contato com a lama com materiais tóxicos e a contaminação das águas do rio Paraopeba, cujo curso passa por ao menos 21 cidades. Especialistas alertam que a descarga de lama no leito do rio pode fazer com que alguns dos seus trechos simplesmente desapareçam. “Alguns trechos do rio poderão virar poeira”, afirmou Mariano Andrade da Silva, do Centro de Estudos e Pesquisas em Emergências e Desastre em Saúde. E essa poeira pode ser tóxica, causando doenças respiratórias e de pele, por exemplo.

Embora nenhuma unidade de saúde da cidade tenha sido soterrada pelo lamaçal de rejeitos, que já deixa 142 mortos e 194 desaparecidos, toda a rede está, neste momento, voltada para o atendimento das vítimas. “Isso pode agravar algumas doenças crônicas que exigem acompanhamento”, afirmou Christovam Barcellos, do Observatório do Clima e da Saúde da Fiocruz. A reportagem procurou a Prefeitura para saber se o setor público de saúde da cidade está, de fato, sofrendo com a sobrecarga, mas não recebeu resposta.

Também questionou à Vale se a companhia enviou ou pretende enviar reforços para os atendimentos, mas também não houve resposta. Durante toda a semana passada, pairava a informação de que uma equipe de psicólogos do hospital paulistano Albert Einstein chegaria à cidade para ajudar no acolhimento de vítimas e familiares. Até o momento, os profissionais não chegaram. Em uma nota, na semana passada, a empresa informava que cerca de 80 voluntários estavam mobilizados para prestar assistência, 24 horas por dia, na Estação Conhecimento, espécie de centro comunitário da Vale em Brumadinho que se transformou em um dos QGs dessa tragédia. Ao longo dos primeiros dias após o rompimento da barragem, chegaram psicólogos e assistentes sociais aos montes, tanto da Vale, quanto de fora da empresa vindos de diferentes Estados do país para ajudar. De graça. Soma-se a esse batalhão os voluntários que estão cozinhando e limpando o local ou cadastrando as famílias que perderam seus entes.

Mas no apagar das luzes, quando os voluntários tiverem que voltar às suas rotinas e seus empregos, a poeira em Brumadinho ainda não terá baixado. “Os impactos do desastre não se limitam aos dias iniciais do processo”, afirmou Mariano da Silva. E ainda não se sabe por quanto tempo perduram os serviços prestados no QG da Estação Conhecimento.

Assolados pela tragédia, os moradores da comunidade do Córrego do Feijão, uma das mais atingidas pelo tsunami de lama por sua proximidade com a barragem, tentam reagir como podem. Criam grupos de WhatsApp, como o Parentes de Brumadinho, para tentar se organizar e cobrar, minimamente, uma reposta da mesma empresa que um dia criou centenas de empregos e, no outro, tirou tudo o que seus funcionários tinham.

Recorre-se ao dito popular – “é errando que se aprende”, um eufemismo para amortecer a responsabilidade da Vale sobre essa tragédia, e perguntar se a companhia não aprendeu nada com os erros que levaram ao desastre da Samarco [empresa controlada pela Vale] em Mariana. Essa conta, porém, é injusta. Enquanto erros são cometidos, pessoas estão morrendo, adoecendo, perdendo o que tinham, sucumbindo ao desamparo. Afinal, quantos erros ainda serão necessários até que a Vale aprenda?

Uma fábula

Em 17 de abril de 1910 entrou festivamente na Baía de Guanabara, vindo dos estaleiros da Inglaterra, o encouraçado Minas Gerais, navio da classe "dreadnought", o que havia de mais avançado na época, e sua chegada desencadeou uma onda de patriotismo. Para o jornal O País, o "vulto de açoões da embarcação" simbolizava o Brasil novo, opulento e poderoso que vai na rota de progresso e civilização.

Para a "Gazeta de Notícias", incumbiria ao Minas Gerais, "pedaço flutuante da pátria&", levar pelos mares "a força afirmativa da nossa cultura, da nossa grandeza e da nossa civilização". Contada no recém-lançado "Juca Paranhos, o Barão do Rio Branco", exemplar biografia do patrono da diplomacia brasileira escrita por Luís Cláudio Villafañe G. Santos, a história iniciada com a chegada da portentosa embarcação desdobra-se em dois atos e encerra-se como uma fábula.

Minas Gerais, o "dreadnought" fabricado na Inglaterra
 e trazido ao Brasil, em fotografia de 1910 

A causa do reaparelhamento da Marinha brasileira teve em Rio Branco seu mais ardente defensor. A seu ver, tratava-se de contraponto indispensável ao laborioso quebra-cabeça com que negociava nossas fronteiras e toureava as rivalidades e desconfianças com os vizinhos. O governo brasileiro decidiu jogar alto, e optou por encomendar logo três "dreadnoughts", a nova maravilha dos mares, lançada em 1906 pela Inglaterra. Em especial, naqueles anos, preocupavam a superioridade militar da Argentina e as pretensões do Peru a nacos do território brasileiro. Por questão de custo, a encomenda foi reduzida a dois, mas ainda assim causava furor. À chegada do Minas Gerais, o primeiro deles, as celebrações incluíram uma canção que aproveitava a melodia da italiana Vieni sul Mar, para honrar o navio com o estribilho, "Oh, Minas Gerais". (Com letra modificada, em anos posteriores a canção passaria a celebrar o Estado de Minas Gerais.).

O segundo "dreadnought", batizado São Paulo, chegou em outubro, bem a tempo de ser incluído no elenco no ato 2 da nossa fábula. Em 22 de novembro, aproveitando-se da ausência do comandante, João Batista das Neves, que saíra para jantar num navio francês em visita ao Rio, a tripulação do Minas Gerais apoderou-se do navio. Ao voltar a bordo, Neves foi saudado aos gritos de "Abaixo a chibata" e morto ao tentar uma reação.

A insubordinação dos marinheiros, remoída por anos, explodira ao impacto das 250 chibatadas aplicadas na antevéspera a um companheiro. A Revolta da Chibata espalhou-se por outros cinco navios estacionados na Baía de Guanabara. A fina flor da Armada brasileira passara às mãos da chucra marujada, sob o comando de João Cândido, o "Almirante Negro", como seria apelidado.

Que fazer? Os navios iam e vinham nas águas da baía exibindo as bandeiras vermelhas da insurgência. O governo manteve-se pasmo e paralisado até o dia 25, quando se decidiu pelo ataque aos rebeldes. "Rio Branco se desesperou", escreve Villafañe Santos. "Assustava-o a perspectiva de ver os principais navios da Armada brasileira destruídos e, em consequência, o Brasil, outra vez, em total inferioridade de meios militares frente a seus vizinhos". O chanceler chegou a procurar o oficial encarregado do ataque, na tentativa de dissuadi-lo. Afinal, o destino inglório de ver os "dreadnoughts", tinindo de novos, arrasados pelas próprias forças a que deviam integrar-se foi evitado depois de negociações no Congresso que incluíram, no dia 26, a promessa de anistia aos revoltosos.

A promessa não foi cumprida. Dois dias depois a repressão já começava a baixar sem piedade contra os amotinados — mas essa é outra história. Interessa-nos o contraste entre o sonho de potência de abril de 1910, à chegada do Minas Gerais, e a realidade de uma Marinha que tratava os marujos a chibatadas, exposta em novembro. "O episódio conta muito sobre a ilusão de modernidade e prosperidade de um país no qual pouco mais de um par de décadas antes a posse de outros seres humanos era legalizada e cuja economia se baseava na exportação de uns poucos produtos agrícola", escreve o autor do livro. A frustração bateu forte em Rio Branco. Um contemporâneo, Carlos de Laet, data daí a decadência física que o levaria à morte, um ano e dois meses depois.

Ministro culpa mídia pelas tolices que pronuncia

Está ficando monótono. O ministro Ricardo Vélez Rodríguez (Educação) concede entrevistas e depois, incomodado com a má repercussão, põe a culpa na imprensa. Em nota divulgada na noite desta terça-feira, Vélez levou novamente à face o semblante de vítima: "Infelizmente a mídia brasileira segue com manobras de esquivar-se dos fatos, descontextualizando minhas declarações e tentando enganar a população".

Nesta penúltima polêmica, Vélez procurou sarna pra se coçar numa entrevista veiculada na edição mais recente da revista Veja. Nela, defendeu o retorno aos currículos escolares de uma velha disciplina: "educação moral e cívica". Alega, entre outras razões, que é uma forma de ensinar ao adolescente que viaja ao estrangeiro que as leis dos outros países devem ser respeitadas.

Colombiano, Vélez afirmou que o brasileiro, quando viaja, comporta-se como um "canibal". Usou canibal como um outro nome para ladrão: "Rouba coisas dos hotéis, rouba o assento salva-vidas do avião; ele acha que sai de casa e pode carregar tudo. Esse é o tipo de coisa que tem de ser revertido na escola." São declarações fortes. Mas Vélez não tem nada a ver com isso. A mídia é que descontextualiza tudo.

Vélez também esculhambou o trabalho da atriz e cineasta Carla Camurati no filme Carlota Joaquina. Queixou-se de que Dom João 6º, o príncipe regente que aportou com a Família Real no Brasil em 1808, foi retratado no filme como "um reles comedor de frango, sem nenhuma serventia". O ministro tratou a divertidíssima comédia de Camurati como se fosse umm documentário. Mas ele, naturalmente, não tem nada a ver com isso. É outra distorção grosseira da mídia.

Após elogiar o projeto conhecido como "Escola sem Partido", Vélez ecoou Jair Bolsonaro, atacando a suposta ideologização de crianças na escola. Disse que liberdade de ensino "não é fazer o que você deseja". Avalia que "liberdade é agir, fazer escolhas dentro dos limites da lei e da moralidade. Fazer o que dá vontade não é ser livre. Isso é libertinagem."

De repente, Vélez colocou na voz de Cazuza uma frase usada pelos humoristas do Casseta & Planeta: "Liberdade não é o que pregava Cazuza, que dizia que liberdade é passar a mão na bunda do guarda. Não! Isso é desrespeito à autoridade, vai para o xilindró".

Lucinha Araújo, a mãe de Cazuza, chamou o ministro de "mal informado" e "leviano". Mas Vélez, naturalmente, não tem nada a ver com nada. Culpa da mídia. "Até mesmo um equívoco simples e bobo, como uma citação errônea, transforma-se em ato político", escreveu o ministro na nota oficial. Antes, o autor do erro bobo anotara no Twitter: "Liguei para Lucinha Araújo, mãe de Cazuza, para desfazer o equívoco de uma resposta que dei atribuindo a ele frase de um programa humorístico. A conversa foi tocante".

Todos devem dar crédito ao ministro quando ele diz que não tem nada a ver com determinada coisa. O crédito se justifica porque a tese, de tão repetida, tornou-se coerente. Seria muito ruim se Vélez parasse de dar entrevistas. Uma solução alternativa seria mandar tatuar na testa uma frase singela: "O ministro da Educação não tem nada a ver com isso".

A providência eximiria o ministro de se explicar. E desobrigaria a plateia de ouvi-lo. O problema é que, ao final do mandato de Jair Bolsonaro, quando ficar constatado que a gestão de Vélez foi um desastre, não haverá culpados sobre o palco. Ora, se o doutor nunca tem nada a ver coisa nenhuma, por que passaria a ter daqui a quatro anos?


Outras histórias oferecem morais já prontas à fábula que poderia ter por título "dreadnought" e a chibata". O rei estava nu, caberia dizer, ou: o ídolo tinha pés de barro. Formulemos a nossa própria moral. Brincar de "Brasil novo, opulento e poderoso", orgulhoso "da nossa cultura, da nossa grandeza e da nossa civilização" (para repetir os arroubos ufanistas na chegada do Minas Gerais), só vale quando se traz o povo junto.