Morro Branco (CE) |
quinta-feira, 12 de abril de 2018
Lula conduz o PT ao matadouro
A sorte do Partido dos Trabalhadores sempre esteve atrelada a Lula. Estabeleceu-se entre os dois uma relação de dependência, onde, erigido a semideus, o caudilho pensava e decidia por todos. Se no passado a lulo-dependência deu bons frutos, agora pode levar o PT ao isolamento político e eleitoral se for para valer a decisão de sua executiva de Lula ser o candidato e “em qualquer circunstância”.
A prisão de Lula – e a possibilidade de ela se estender por um prazo longo – recomenda a revisão da estratégia petista. Mas o próprio caudilho tomou medidas acautelatórias para que isto não aconteça. Da cela, escalou sua dama de ferro, Gleisi Hoffman, como porta-voz e responsável pela articulação com outras forças políticas. O recado foi claro: qualquer negociação, interna e externa, tem de se dar em torno da candidatura de Lula. Fora disso, não há conversa.
Desde sua condenação em primeira instância, estabeleceu-se uma estratégia de mão única – ele ou ele -, vedando qualquer debate sobre um plano alternativo. Era pedra cantada, mas o ex insistiu no bordão “eleição sem Lula é fraude”, afastando aliados como o PSB e o PDT de Ciro Gomes.
O próprio Lula passou atestado do isolamento quando no circo de São Bernardo bradou que ali não estavam os engravatadinhos. De fato, de aliados apenas dois puxadinhos do PT: o PC do B de Manuela D’Avila e o Psol de Guilherme Boulos.
Se Lula não é mais senhor do próprio destino, por que então está conduzindo o PT para o matadouro mesmo sabendo que o registro de sua candidatura será negado de ofício pela Justiça Eleitoral?
Possivelmente está mais interessado na sobrevivência da narrativa que construiu para a história do que no destino do partido. Não necessariamente, os interesses de Lula e do PT são coincidentes.
A recusa em adotar o plano B é uma espada de Dâmocles na cabeça dos parlamentares petistas que vão disputar a eleição. E um obstáculo para a costura de alianças eleitorais.
Até quando será possível interditar um debate que está na cabeça de muitos petistas?
Outro fator contribui para a ampliação do isolamento petista: o “Lulinha paz e amor” deu lugar ao Lula carbonário, como se viu em seu discurso em São Bernardo.
É voltar ao PT do macacão. Só que este PT não pode ser reinventado, e a radicalização de seu líder acontece no momento em que se esvaiu o seu dom de mobilização. O palanque do ABC de agora ilustra bem que pouco ou quase nada restou do líder que encantava multidões.
Hubert Alquéres
A prisão de Lula – e a possibilidade de ela se estender por um prazo longo – recomenda a revisão da estratégia petista. Mas o próprio caudilho tomou medidas acautelatórias para que isto não aconteça. Da cela, escalou sua dama de ferro, Gleisi Hoffman, como porta-voz e responsável pela articulação com outras forças políticas. O recado foi claro: qualquer negociação, interna e externa, tem de se dar em torno da candidatura de Lula. Fora disso, não há conversa.
O próprio Lula passou atestado do isolamento quando no circo de São Bernardo bradou que ali não estavam os engravatadinhos. De fato, de aliados apenas dois puxadinhos do PT: o PC do B de Manuela D’Avila e o Psol de Guilherme Boulos.
Se Lula não é mais senhor do próprio destino, por que então está conduzindo o PT para o matadouro mesmo sabendo que o registro de sua candidatura será negado de ofício pela Justiça Eleitoral?
Possivelmente está mais interessado na sobrevivência da narrativa que construiu para a história do que no destino do partido. Não necessariamente, os interesses de Lula e do PT são coincidentes.
A recusa em adotar o plano B é uma espada de Dâmocles na cabeça dos parlamentares petistas que vão disputar a eleição. E um obstáculo para a costura de alianças eleitorais.
Até quando será possível interditar um debate que está na cabeça de muitos petistas?
Outro fator contribui para a ampliação do isolamento petista: o “Lulinha paz e amor” deu lugar ao Lula carbonário, como se viu em seu discurso em São Bernardo.
É voltar ao PT do macacão. Só que este PT não pode ser reinventado, e a radicalização de seu líder acontece no momento em que se esvaiu o seu dom de mobilização. O palanque do ABC de agora ilustra bem que pouco ou quase nada restou do líder que encantava multidões.
Hubert Alquéres
A política com cifrão
Na sua maioria, os políticos são muito anti-contemporâneos e defasados do quadro socialWashington Olivetto, publicitário
As autoridades têm liberdade de expressão?
A cultura política brasileira lida mal com a liberdade de expressão. A imensa maioria das lideranças – sejam de esquerda, sejam de direita, bem como as lideranças que se declaram “nem de esquerda nem de direita” – não se pauta pelo apreço ao direito que homens e mulheres têm de dizer o que pensam. Podemos generalizar, sem medo de errar: no Brasil, com pouquíssimas exceções, os políticos não compreendem – isso quando não hostilizam abertamente – o que a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, em 1789, na França, classificou como “um dos direitos mais preciosos do homem”: a livre comunicação das ideias e das opiniões.
Quase diariamente chefes partidários, dos mais medíocres aos mais ilustres, bradam agressões contra a instituição da imprensa. Semana sim, semana não, um jornalista é vítima de ofensas morais ou intimidações físicas. Deputados que jamais alcançaram o sentido da palavra news (em inglês ou português) querem legislar contra as fake news. Quiseram proibir as notícias “prejudicialmente incompletas”, como se houvesse na face da Terra alguma notícia que não prejudicasse nenhum interesse – ou alguma notícia que não fosse, de algum modo, incompleta.
Atenção! Sob pretexto de conter as notícias fraudulentas, existem autoridades que planejam banir do território nacional não as reportagens falsificadas, mas o noticiário crítico e verdadeiro. Não fazem ideia de que a liberdade de expressão é parte necessária do direito que tem a sociedade de fiscalizar e contestar as ações dos governantes; acham que a crítica só atrapalha e que a comunicação social deveria cumprir a função precípua de adestrar os governados.
Esse déficit da cultura política nacional costuma manifestar-se em episódios tristes, opressivos, que asfixiam os espaços democráticos. Mas de vez em quando há lances cômicos, lances de pastelão, como se a cena política no Brasil fosse uma paródia que faz troça dos ideais iluministas. Vez por outra aparece uma autoridade que, depois de praticar abusos verbais incompatíveis com sua função de Estado, vai buscar abrigo na desculpa de que disparou seus disparates exercendo sua “liberdade de expressão”. Aí, o legado iluminista é virado de pernas para o ar: a liberdade de expressão deixa de ser um direito do cidadão para questionar o Estado e se rebaixa a uma prerrogativa do Estado para intimidar a sociedade.
Há poucos dias tivemos um exemplo dessa desviante cômica, quando o general Eduardo Villas Bôas, comandante do Exército, resolveu “tuitar” barbaridades. No dia 3 de abril, às vésperas do julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF) que negaria o habeas corpus ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ele postou nas redes sociais a seguinte declaração: “Asseguro à Nação que o Exército Brasileiro julga compartilhar o anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade e de respeito à Constituição, à paz social e à democracia, bem como se mantém atento às suas missões institucionais”.
Muita gente se assustou, é óbvio, e no dia seguinte não se falava de outra coisa. Até mesmo no plenário do STF as admoestações do militar repercutiram. De modo elegante, mas vigoroso, o ministro Celso de Mello, decano da Corte, advertiu: “O respeito indeclinável à Constituição e às leis da República representa o limite intransponível a que se devem submeter os agentes do Estado, quaisquer que sejam os estamentos a que eles pertencem”.
Mais claro, impossível. Um agente de Estado tem a sua liberdade de expressão, por certo, mas isso não significa que ele tenha o direito de sair por aí falando (ou “postando”) o que lhe dá na veneta. As leis da República o limitam. Sem essas leis não teríamos ordem pública, muito menos ordem democrática.
Como já era de esperar (infelizmente), o presidente Michel Temer não esboçou nenhum movimento para enquadrar o comandante, que é seu subordinado. Em lugar disso, no mesmo dia do julgamento do Supremo fez um pronunciamento público, sempre pontuado por seu estilo mordomial de dedos lívidos, trêmulo-esvoaçantes, em que deu de desfiar generalidades sobre... liberdade de expressão: “É da ordem jurídica que nasce a liberdade de expressão e de imprensa”.
Escondendo-se atrás de ambiguidades melífluas, o chefe de Estado sugeriu, com quasetodas as letras, que o general não tinha extrapolado suas atribuições, apenas exercia a sua... “liberdade de expressão”.
Errou. Omitiu-se. Nos termos da Constituição e da lei, a livre manifestação de militares fica subordinada às funções institucionais que cabem a eles. O Regulamento Disciplinar do Exército (um decreto de 2002) dispõe que um militar da ativa não deve “tomar parte em discussão a respeito de assuntos de natureza político-partidária ou religiosa”. Apenas com autorização do chefe um militar poderia “discutir ou provocar discussão, por qualquer veículo de comunicação, sobre assuntos políticos ou militares”.
Para Temer, entretanto, o direito fundamental da liberdade de expressão parece permitir que o general que comanda o Exército lance ameaças mais ou menos veladas contra os ministros do Supremo Tribunal e contra a sociedade.
Em sua convicção obtusa, o presidente não está só. A maioria dos políticos brasileiros acredita que a liberdade de expressão não é uma garantia do cidadão contra o poder, mas uma prerrogativa do poder, mesmo quando o poder investe contra o cidadão. Nada surpreendente. Afinal de contas, estamos no país em que agentes públicos desviam malas de dinheiro público para dentro de apartamentos particulares e depois, quando a polícia vai lá buscar o produto do roubo, reclamam de “invasão de privacidade”.
Não, a liberdade de expressão não pode abrigar a autoridade que comete abusos, assim como o direito à privacidade não protege esconderijos da corrupção. Quando vamos aprender uma lição tão elementar?
Atenção! Sob pretexto de conter as notícias fraudulentas, existem autoridades que planejam banir do território nacional não as reportagens falsificadas, mas o noticiário crítico e verdadeiro. Não fazem ideia de que a liberdade de expressão é parte necessária do direito que tem a sociedade de fiscalizar e contestar as ações dos governantes; acham que a crítica só atrapalha e que a comunicação social deveria cumprir a função precípua de adestrar os governados.
Esse déficit da cultura política nacional costuma manifestar-se em episódios tristes, opressivos, que asfixiam os espaços democráticos. Mas de vez em quando há lances cômicos, lances de pastelão, como se a cena política no Brasil fosse uma paródia que faz troça dos ideais iluministas. Vez por outra aparece uma autoridade que, depois de praticar abusos verbais incompatíveis com sua função de Estado, vai buscar abrigo na desculpa de que disparou seus disparates exercendo sua “liberdade de expressão”. Aí, o legado iluminista é virado de pernas para o ar: a liberdade de expressão deixa de ser um direito do cidadão para questionar o Estado e se rebaixa a uma prerrogativa do Estado para intimidar a sociedade.
Há poucos dias tivemos um exemplo dessa desviante cômica, quando o general Eduardo Villas Bôas, comandante do Exército, resolveu “tuitar” barbaridades. No dia 3 de abril, às vésperas do julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF) que negaria o habeas corpus ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ele postou nas redes sociais a seguinte declaração: “Asseguro à Nação que o Exército Brasileiro julga compartilhar o anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade e de respeito à Constituição, à paz social e à democracia, bem como se mantém atento às suas missões institucionais”.
Muita gente se assustou, é óbvio, e no dia seguinte não se falava de outra coisa. Até mesmo no plenário do STF as admoestações do militar repercutiram. De modo elegante, mas vigoroso, o ministro Celso de Mello, decano da Corte, advertiu: “O respeito indeclinável à Constituição e às leis da República representa o limite intransponível a que se devem submeter os agentes do Estado, quaisquer que sejam os estamentos a que eles pertencem”.
Mais claro, impossível. Um agente de Estado tem a sua liberdade de expressão, por certo, mas isso não significa que ele tenha o direito de sair por aí falando (ou “postando”) o que lhe dá na veneta. As leis da República o limitam. Sem essas leis não teríamos ordem pública, muito menos ordem democrática.
Como já era de esperar (infelizmente), o presidente Michel Temer não esboçou nenhum movimento para enquadrar o comandante, que é seu subordinado. Em lugar disso, no mesmo dia do julgamento do Supremo fez um pronunciamento público, sempre pontuado por seu estilo mordomial de dedos lívidos, trêmulo-esvoaçantes, em que deu de desfiar generalidades sobre... liberdade de expressão: “É da ordem jurídica que nasce a liberdade de expressão e de imprensa”.
Escondendo-se atrás de ambiguidades melífluas, o chefe de Estado sugeriu, com quasetodas as letras, que o general não tinha extrapolado suas atribuições, apenas exercia a sua... “liberdade de expressão”.
Errou. Omitiu-se. Nos termos da Constituição e da lei, a livre manifestação de militares fica subordinada às funções institucionais que cabem a eles. O Regulamento Disciplinar do Exército (um decreto de 2002) dispõe que um militar da ativa não deve “tomar parte em discussão a respeito de assuntos de natureza político-partidária ou religiosa”. Apenas com autorização do chefe um militar poderia “discutir ou provocar discussão, por qualquer veículo de comunicação, sobre assuntos políticos ou militares”.
Para Temer, entretanto, o direito fundamental da liberdade de expressão parece permitir que o general que comanda o Exército lance ameaças mais ou menos veladas contra os ministros do Supremo Tribunal e contra a sociedade.
Em sua convicção obtusa, o presidente não está só. A maioria dos políticos brasileiros acredita que a liberdade de expressão não é uma garantia do cidadão contra o poder, mas uma prerrogativa do poder, mesmo quando o poder investe contra o cidadão. Nada surpreendente. Afinal de contas, estamos no país em que agentes públicos desviam malas de dinheiro público para dentro de apartamentos particulares e depois, quando a polícia vai lá buscar o produto do roubo, reclamam de “invasão de privacidade”.
Não, a liberdade de expressão não pode abrigar a autoridade que comete abusos, assim como o direito à privacidade não protege esconderijos da corrupção. Quando vamos aprender uma lição tão elementar?
O menino
O menino passou lá adiante, na rua de paralelepípedos escaldantes. Pequenino, magrinho. Não sei se faminto ou sucinto pela aridez eterna daquela vida ainda breve, que parece correr num fio de navalha. Ele me olhou quase como um desvio indesejado, evitando mirar meus olhos por vergonha, timidez ou medo. Ou qualquer outro mistério da sua alminha. E se foi quase sumido, do jeito que se apresentou no tempo curto daquele passar.
Penso nos meninos e meninas que sofrem em qualquer quadrante do mundo. Por que crianças sofrem, meu bom Deus? Para quê? ─ na verdade, a pergunta é esta! Fico submerso nesta dúvida que não tem resposta.
Penso nos meninos e meninas que, menino também, conheci desfigurados pela fome das migrações da seca ─ aquela gente esquálida, famílias inteiras que os adultos da cidade chamavam de retirantes. Eu enxergava apenas as crianças ─ deixava os adultos para os adultos. Que riam um pouco depois da comida dada com compaixão, que até arriscavam brincar depois do prato. Um ato paliativo de pisar o terreno dos prazeres da infância, que duraria pouco porque havia a estrada por onde seguiriam na marcha em busca de algum milagre.
Penso nas meninas que apressavam meu coração infantil, ansioso por encontrar traços da beleza das princesinhas das histórias infantis. Penso na tristeza que me dominava por perceber que a fantasia das páginas coloridas não se desenhava ali naquele papel enrugado, amarelado, repleto de marcas incontornáveis, praticamente imprestável para rabiscar qualquer coisa feliz.
Penso nos meninos e meninas que, hoje sei, não escapavam de toda sorte de abusos nas trocas cruéis impostas pelo mundo de verdade, impiedoso, capaz de tirar vantagem da miséria que esgota alternativas.
Penso nos meninos e meninas que dependiam de caridade. Que seguiam de pés machucados, com alpercatas remendadas a pregos e grampos, enroladas em molambos para aliviar a precariedade do pisar.
Penso nos meninos e meninas que seguiam naquele cortejo quase fúnebre e ainda se encantavam por alguns segundos diante do grupo escolar, mesmo sabendo que sequer passariam pelo portão. Penso por que eu estava lá dentro, em farda impecável, orgulhoso, por certo causando inveja, labirinto que nunca desvendei.
Penso nos meninos e meninas que ficaram pelo caminho porque não houve tempo para alcançarem o milagre de escapar. Penso que vi tudo isso impotente, sem saber por que valeu a pena escapar sem milagre, por que nunca passei nem perto daquele sofrer, morte em vida.
Como é difícil acordar calado
Se na calada da noite eu me dano
Quero lançar um grito desumano
Que é uma maneira de ser escutado
Esse silêncio todo me atordoa
Cálice (Chico Buarque-Gilberto Gil)
Pergunto que danada de sorte foi essa que me escolheu para nascer, crescer e viver sem flagelos. Sem trilhar descalço o pó amarelo das estradas do incerto sem fim. Sem machucar tanto os pés, sem molambos imundos, ensanguentados. Que danada de sorte foi essa que me protegeu, que me levou somente até os calos e leves inchaços, no máximo aos passos em falso indignos de nota?
Ah, o destino! As linhas tortas do mistério, longas ou fatais, sublinhadas pelos acasos e predestinações. Decifradas sem nenhuma certeza pela lábia das videntes e cartomantes, com seus truques, ênfases e incensos penetrantes. Pelo verbo torto das ciganas, que traçavam as cidades com seus dentes de ouro, afiados, reluzentes. Com seus batons extravagantes e roupas incandescentes.
As mesmas esquinas e encruzilhadas, rotas de fuga ou armadilhas tramadas. As forças ocultas indomáveis. O medo das bruxarias. As atrizes que metiam medo na molecada. As eternas simonias, o dinheiro colhido no roçado da boa-fé.
Alguns dias, eu já nem lembrava mais daquele menino sucinto andado sobre os paralelepípedos escaldantes, que me trouxe de volta a dor de tantos meninos e meninas, e suas sinas que eu mal conseguia esboçar.
Madrugada alta, quase amanhecendo. A matriz silenciosa, casa da minha santinha. Dobrei a esquina, susto danado: aquele menino sucinto na ruela. Tive medo dos olhos que me encaravam sem desvio. Dele. Raquítico. Vindo rápido em minha direção, mesmo eu um brutamontes, ele mal alcançando minha cintura.
Era ruela, encontro inevitável, ninguém por perto, pouco espaço para desvencilhar ou recuar. Ele parou, me encarou com a força de quem domina a arte de escapar dos apertos e disse com um fiapo de voz firme:
– O senhor é um moço bonito. Gostei de lhe conhecer porque também gosto de música!
Esbocei um sorriso, pronto para desabar. Ele me estendeu um saco de papel:
– Pode pegar um, está quentinho. Meu pai faz pão, eu vendo. Mas o senhor não precisa pagar. É minha cortesia.
Nem sei se tive tempo de agradecer, o pão nu aquecendo a ponta dos dedos. Caiu sobre mim, como sereno de madrugada, uma música que gostaria de ter ouvido junto com ele:
Debulhar o trigo
Recolher cada bago do trigo
Forjar no trigo o milagre do pão
E se fartar de pão
Afagar a terra
Conhecer os desejos da terra
Cio da terra, propícia estação
E fecundar o chão
Cio da Terra (Milton Nascimento-Chico Buarque)
Ouvi tudo misturado, Milton, Pena Branca, Chico, Xavantinho. O fraseado potente do contrabaixo urbano, a simplicidade das violas do interior. O sobressalto do sino, parceiro do relógio da matriz anunciando juntos que a escuridão da noite estava por um fio diante da manhã iminente. O desenho de um sonho esmaecendo na paisagem, o encanto do conto infantil prestes a ser quebrado pela luz do sol. Hora última para sossegar tantos personagens.
E foi embora ligeiro e me deixou paralisado, com vergonha de chorar por ele, por mim, por todos os meninos e meninas que ressuscitaram naquele nosso encontro breve. Segui sem olhar para trás. Chorei por todos nós. Sem qualquer vergonha. Era tudo que me restava fazer. O milagre do pão!
Entrei na casa semi-adormecida no silêncio que eu tanto precisava para adormecer antes que tudo acordasse a tempo de seguir no fio da navalha cotidiano. Acaso? Predestinação? Sorte?
Perguntas para depois do acordar, pois a sonolência é negligente. E a bola de cristal não costuma rodar. E as cartas são marcadas. E os dados viciados estão lançados, prestes a mostrar de um a seis nas contas do crupiê. As apostas estão abertas.
Heraldo Palmeira
Penso nos meninos e meninas que sofrem em qualquer quadrante do mundo. Por que crianças sofrem, meu bom Deus? Para quê? ─ na verdade, a pergunta é esta! Fico submerso nesta dúvida que não tem resposta.
Penso nas meninas que apressavam meu coração infantil, ansioso por encontrar traços da beleza das princesinhas das histórias infantis. Penso na tristeza que me dominava por perceber que a fantasia das páginas coloridas não se desenhava ali naquele papel enrugado, amarelado, repleto de marcas incontornáveis, praticamente imprestável para rabiscar qualquer coisa feliz.
Penso nos meninos e meninas que, hoje sei, não escapavam de toda sorte de abusos nas trocas cruéis impostas pelo mundo de verdade, impiedoso, capaz de tirar vantagem da miséria que esgota alternativas.
Penso nos meninos e meninas que dependiam de caridade. Que seguiam de pés machucados, com alpercatas remendadas a pregos e grampos, enroladas em molambos para aliviar a precariedade do pisar.
Penso nos meninos e meninas que seguiam naquele cortejo quase fúnebre e ainda se encantavam por alguns segundos diante do grupo escolar, mesmo sabendo que sequer passariam pelo portão. Penso por que eu estava lá dentro, em farda impecável, orgulhoso, por certo causando inveja, labirinto que nunca desvendei.
Penso nos meninos e meninas que ficaram pelo caminho porque não houve tempo para alcançarem o milagre de escapar. Penso que vi tudo isso impotente, sem saber por que valeu a pena escapar sem milagre, por que nunca passei nem perto daquele sofrer, morte em vida.
Como é difícil acordar calado
Se na calada da noite eu me dano
Quero lançar um grito desumano
Que é uma maneira de ser escutado
Esse silêncio todo me atordoa
Cálice (Chico Buarque-Gilberto Gil)
Pergunto que danada de sorte foi essa que me escolheu para nascer, crescer e viver sem flagelos. Sem trilhar descalço o pó amarelo das estradas do incerto sem fim. Sem machucar tanto os pés, sem molambos imundos, ensanguentados. Que danada de sorte foi essa que me protegeu, que me levou somente até os calos e leves inchaços, no máximo aos passos em falso indignos de nota?
Ah, o destino! As linhas tortas do mistério, longas ou fatais, sublinhadas pelos acasos e predestinações. Decifradas sem nenhuma certeza pela lábia das videntes e cartomantes, com seus truques, ênfases e incensos penetrantes. Pelo verbo torto das ciganas, que traçavam as cidades com seus dentes de ouro, afiados, reluzentes. Com seus batons extravagantes e roupas incandescentes.
As mesmas esquinas e encruzilhadas, rotas de fuga ou armadilhas tramadas. As forças ocultas indomáveis. O medo das bruxarias. As atrizes que metiam medo na molecada. As eternas simonias, o dinheiro colhido no roçado da boa-fé.
Alguns dias, eu já nem lembrava mais daquele menino sucinto andado sobre os paralelepípedos escaldantes, que me trouxe de volta a dor de tantos meninos e meninas, e suas sinas que eu mal conseguia esboçar.
Madrugada alta, quase amanhecendo. A matriz silenciosa, casa da minha santinha. Dobrei a esquina, susto danado: aquele menino sucinto na ruela. Tive medo dos olhos que me encaravam sem desvio. Dele. Raquítico. Vindo rápido em minha direção, mesmo eu um brutamontes, ele mal alcançando minha cintura.
Era ruela, encontro inevitável, ninguém por perto, pouco espaço para desvencilhar ou recuar. Ele parou, me encarou com a força de quem domina a arte de escapar dos apertos e disse com um fiapo de voz firme:
– O senhor é um moço bonito. Gostei de lhe conhecer porque também gosto de música!
Esbocei um sorriso, pronto para desabar. Ele me estendeu um saco de papel:
– Pode pegar um, está quentinho. Meu pai faz pão, eu vendo. Mas o senhor não precisa pagar. É minha cortesia.
Nem sei se tive tempo de agradecer, o pão nu aquecendo a ponta dos dedos. Caiu sobre mim, como sereno de madrugada, uma música que gostaria de ter ouvido junto com ele:
Debulhar o trigo
Recolher cada bago do trigo
Forjar no trigo o milagre do pão
E se fartar de pão
Afagar a terra
Conhecer os desejos da terra
Cio da terra, propícia estação
E fecundar o chão
Cio da Terra (Milton Nascimento-Chico Buarque)
Ouvi tudo misturado, Milton, Pena Branca, Chico, Xavantinho. O fraseado potente do contrabaixo urbano, a simplicidade das violas do interior. O sobressalto do sino, parceiro do relógio da matriz anunciando juntos que a escuridão da noite estava por um fio diante da manhã iminente. O desenho de um sonho esmaecendo na paisagem, o encanto do conto infantil prestes a ser quebrado pela luz do sol. Hora última para sossegar tantos personagens.
E foi embora ligeiro e me deixou paralisado, com vergonha de chorar por ele, por mim, por todos os meninos e meninas que ressuscitaram naquele nosso encontro breve. Segui sem olhar para trás. Chorei por todos nós. Sem qualquer vergonha. Era tudo que me restava fazer. O milagre do pão!
Entrei na casa semi-adormecida no silêncio que eu tanto precisava para adormecer antes que tudo acordasse a tempo de seguir no fio da navalha cotidiano. Acaso? Predestinação? Sorte?
Perguntas para depois do acordar, pois a sonolência é negligente. E a bola de cristal não costuma rodar. E as cartas são marcadas. E os dados viciados estão lançados, prestes a mostrar de um a seis nas contas do crupiê. As apostas estão abertas.
Heraldo Palmeira
Partido do nariz grande
A propaganda do PT, amplamente reverberada, dá de barato que Lula estaria eleito se concorresse. Falso. Ele estaria no segundo turno, favorito sim para perder (menos, provavelmente, contra Jair Bolsonaro). Apenas pessoas emocionalmente envolvidas, intelectualmente desonestas ou ambas as coisas menosprezam a rejeição antipetistaIgor Gielow
PT nunca mais?
Caros brasileiros,
Alguém ainda se lembra de Miriam Cordeiro? A ex-namorada do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva ficou famosa nas primeiras eleições livres depois da ditadura militar em novembro 1989. Poucos dias antes do segundo turno ela fez uma acusação bombástica contra Lula: depois de um relacionamento extraconjugal, ele a teria forçado a fazer um aborto.
A denúncia, que foi ao ar no programa eleitoral do então candidato Fernando Collor de Mello, surtiu efeito: Collor, que disputava ponto a ponto nas pesquisas de opinião com Lula, ganhou as eleições.
O aborto que não foi feito foi a minha primeira lição na política brasileira. Aprendi: a briga pelo poder é feia e não tem limites.
Naquele tempo, parecia que eu estava num filme errado. Na Alemanha, depois de 40 anos de ditadura socialista na antiga “República Democrática Alemã”, o Muro tinha acabado de cair. No Brasil, no entanto, depois de 25 anos de ditadura militar, o medo do socialismo dominava a campanha eleitoral.
Essa lição me marcou e revelou um mecanismo da política brasileira para mim: o acesso e a permanência ao poder tem limite. Se o povo vota “errado”, ele tem que ser “corrigido”. Parece que esse mecanismo funciona ainda hoje.
A campanha do ex-presidente Collor em 1989, apoiada pela Rede Globo, é um exemplo disso. O impeachment de Dilma, reeleita em outubro 2014, é outro. Sem crime comprovado contra ela, o julgamento no Congresso brasileiro no dia 31 de agosto de 2016 virou um tribunal político que “corrigiu” o resultado das urnas.
O mesmo Congresso brasileiro que votou a favor do impeachment de Dilma rejeitou a denúncia contra o presidente Michel Temer. O vice de Dilma havia sido denunciado por corrupção pelo procurador-geral da República, Rodrigo Janot.
Com essa votação, ficou evidente que o Congresso brasileiro combate o combate a corrupção. Os deputados que nos tempos do mensalão aceitaram dinheiro do governo do PT para votar a favor de programas sociais do governo desta vez aceitaram favores do presidente Temer para livrar ele da investigação.
Vale ressaltar também que esse mesmo Congresso até hoje barra a tão pedida reforma eleitoral que mudaria as regras de votação de deputados e senadores. Essa reforma impediria a entrada no Congresso de representantes que não foram escolhidos pelo povo, mas pegaram carona nos candidatos mais votados.
Observo que o combate à corrupção perde força política quando ela não serve mais para combater o PT. Parece que a raiva contra o PT virou programa nacional. Lula na prisão, PT nunca mais?
Reconheço: a raiva é uma poderosa arma política. Como vemos na Europa, na Alemanha com ascensão da nova direita, ou nos Estados Unidos, ela consegue mobilizar milhões de pessoas. Mas cuidado: ela leva diretamente ao abismo.
Na Inglaterra, ela colocou o país no caminho do Brexit, uma decisão da qual cada vez mais britânicos se arrependem. Nos Estados Unidos, a raiva do Trump e seus seguidores faz o país lutar contra todos e todo mundo: “o establishment”, “os chineses”, “os mexicanos”, “os muçulmanos”, e cada dia aparecem mais inimigos.
No Brasil, a raiva levou o país a uma crise política e econômica que nem Dilma Rousseff teria sido capaz de produzir se tivesse ficado no Planalto. A raiva revela atitudes desumanas e perigosas, como a gravação transcrita de um operador de voo ao piloto que conduzia o Lula para a prisão em Curitiba: “Manda este lixo janela abaixo aí”.
Caros brasileiros, por favor, derrubem esse muro de ódio e raiva! O antipetismo não serve como programa político nacional. Lula na prisão não vai fazer o Brasil um país melhor. Melhor seria renovar nas próximas eleições o Congresso com candidatos que trabalhem pelo bem comum e não pelo bem próprio. Os brasileiros merecem representantes melhores e os seus votos não precisam de “correções” posteriores.
Astrid Prange de Oliveira
Alguém ainda se lembra de Miriam Cordeiro? A ex-namorada do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva ficou famosa nas primeiras eleições livres depois da ditadura militar em novembro 1989. Poucos dias antes do segundo turno ela fez uma acusação bombástica contra Lula: depois de um relacionamento extraconjugal, ele a teria forçado a fazer um aborto.
A denúncia, que foi ao ar no programa eleitoral do então candidato Fernando Collor de Mello, surtiu efeito: Collor, que disputava ponto a ponto nas pesquisas de opinião com Lula, ganhou as eleições.
O aborto que não foi feito foi a minha primeira lição na política brasileira. Aprendi: a briga pelo poder é feia e não tem limites.
Naquele tempo, parecia que eu estava num filme errado. Na Alemanha, depois de 40 anos de ditadura socialista na antiga “República Democrática Alemã”, o Muro tinha acabado de cair. No Brasil, no entanto, depois de 25 anos de ditadura militar, o medo do socialismo dominava a campanha eleitoral.
Essa lição me marcou e revelou um mecanismo da política brasileira para mim: o acesso e a permanência ao poder tem limite. Se o povo vota “errado”, ele tem que ser “corrigido”. Parece que esse mecanismo funciona ainda hoje.
O mesmo Congresso brasileiro que votou a favor do impeachment de Dilma rejeitou a denúncia contra o presidente Michel Temer. O vice de Dilma havia sido denunciado por corrupção pelo procurador-geral da República, Rodrigo Janot.
Com essa votação, ficou evidente que o Congresso brasileiro combate o combate a corrupção. Os deputados que nos tempos do mensalão aceitaram dinheiro do governo do PT para votar a favor de programas sociais do governo desta vez aceitaram favores do presidente Temer para livrar ele da investigação.
Vale ressaltar também que esse mesmo Congresso até hoje barra a tão pedida reforma eleitoral que mudaria as regras de votação de deputados e senadores. Essa reforma impediria a entrada no Congresso de representantes que não foram escolhidos pelo povo, mas pegaram carona nos candidatos mais votados.
Observo que o combate à corrupção perde força política quando ela não serve mais para combater o PT. Parece que a raiva contra o PT virou programa nacional. Lula na prisão, PT nunca mais?
Reconheço: a raiva é uma poderosa arma política. Como vemos na Europa, na Alemanha com ascensão da nova direita, ou nos Estados Unidos, ela consegue mobilizar milhões de pessoas. Mas cuidado: ela leva diretamente ao abismo.
Na Inglaterra, ela colocou o país no caminho do Brexit, uma decisão da qual cada vez mais britânicos se arrependem. Nos Estados Unidos, a raiva do Trump e seus seguidores faz o país lutar contra todos e todo mundo: “o establishment”, “os chineses”, “os mexicanos”, “os muçulmanos”, e cada dia aparecem mais inimigos.
No Brasil, a raiva levou o país a uma crise política e econômica que nem Dilma Rousseff teria sido capaz de produzir se tivesse ficado no Planalto. A raiva revela atitudes desumanas e perigosas, como a gravação transcrita de um operador de voo ao piloto que conduzia o Lula para a prisão em Curitiba: “Manda este lixo janela abaixo aí”.
Caros brasileiros, por favor, derrubem esse muro de ódio e raiva! O antipetismo não serve como programa político nacional. Lula na prisão não vai fazer o Brasil um país melhor. Melhor seria renovar nas próximas eleições o Congresso com candidatos que trabalhem pelo bem comum e não pelo bem próprio. Os brasileiros merecem representantes melhores e os seus votos não precisam de “correções” posteriores.
Astrid Prange de Oliveira
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