quarta-feira, 6 de novembro de 2019

Nova economia do Brasil


De J.Portela@edu para Heleno@mil

Caro general,
Outro dia o senhor falou das dificuldades para se baixar um Ato Institucional nº 5 no Brasil de hoje. Nas vossas palavras: “Essas coisas, hoje, num regime democrático... é complicado. Tem de passar em um monte de lugares. Não é assim. (...) Tem de estudar como vai fazer, como vai conduzir”.

Para se fazer o AI-5 era preciso destruir a ordem constitucional da Carta de 1967, e posso dizer que vi a arquitetura desse desmanche. Eu, Jaime Portela de Melo, general, paraibano, chefe do Gabinete Militar do presidente Costa e Silva, estive em todas as encrencas militares do meu tempo.

Acho que o senhor, ou qualquer outra pessoa disposta a estudar como se pode conduzir o Brasil para um AI-5, deve entender que faltam diversas condições. Hoje não há uma esquerda assaltando bancos, sequestrando aviões, matando militares e planejando guerrilhas rurais. 2019 não é 1968, a Venezuela não é Cuba e a China não é o Vietnã. Tínhamos também um ministro do Exército vaidoso, vazio e vacilante.


De qualquer forma, quero mostrar os ingredientes que foram adicionados à crise.

Primeiro, precisa-se de alguém que fique falando na necessidade de um ato institucional. Já em janeiro de 1968, o senador Dinarte Mariz, meu amigo, defendia essa ideia.

Havia uma tensão vinda da esquerda e ela foi exacerbada. Antes do primeiro assalto a banco de Carlos Marighella, houve um roubo de armas num quartel da Força Pública de São Paulo. Isso era coisa de um maluco que estudava discos voadores, um místico dado a profecias anunciando a chegada do Anticristo. Usava muitos nomes, inclusive o de Aladino Félix.

Ele disse que recebia ordens minhas, mas, sendo maluco, quem há de crer? Esse doido explodiu 14 bombas em São Paulo e assaltou pelo menos um banco. Não matou ninguém. Já o terrorismo da esquerda, só em 1968, matou seis militares (dois estrangeiros).

A estratégia da tensão foi ajudada por esquadrões que tumultuavam espetáculos e espancavam artistas. No Rio um grupo de terroristas punha bombas em teatros vazios e livrarias fechadas. Nele militavam oficiais da reserva e da ativa, lotados no Centro de Informações do Exército. Eles explodiram 18 bombas. Fez-se nada. Dois cidadãos foram sequestrados e levados para um quartel, onde os torturaram. Não sei como, mas os americanos desvendaram esse caso.

O Alceu Amoroso Lima, católico, porém comunista, me chamava de “sanguinário”. Em julho mostrei ao Conselho de Segurança Nacional que havia um plano internacional de tomada do poder pela esquerda. Denunciei a cumplicidade da imprensa. Exagerava? Em setembro, o Jornal do Brasil publicou um extenso artigo intitulado “Algumas Questões sobre as Guerrilhas”. Seu autor era Carlos Marighella.

Dias depois da minha fala, Aladino explodiu três bombas em São Paulo, alguém pôs uma bomba numa reunião de estudantes em Porto Alegre e os esquerdistas assaltaram mais um banco em Belo Horizonte.

Quando nós pedimos à Câmara a cassação do Márcio Moreira Alves muita gente achou que o AI-5 seria um plano B. Na reunião do dia 13 de dezembro, quando o presidente baixou o ato, eu disse apenas 14 palavras.

Tensão, general, sem ela não se consegue AI-5.

Atenciosamente,
General Jaime Portela de Melo
Elio Gaspari 

Bolsonaro abre palácio para festival de autoelogios

Jair Bolsonaro completou 300 dias no poder, mas ainda não desceu do palanque. Ontem ele abriu o palácio para mais uma solenidade marcada por autoelogios. Em discurso, voltou a exaltar a própria gestão e a atacar o jornalismo profissional.

O presidente disse que a imprensa “não colabora com o Brasil”. A frase mostra que ele não sabe conviver com críticas — e continua a confundir os interesses do país com os interesses de sua família.

Bolsonaro acusou o jornalismo de tentar “colocar em seu colo” o assassinato de Marielle Franco. Mais uma distorção. Na verdade, o Jornal Nacional informou que ele foi citado no depoimento de uma testemunha, o que obrigou o Ministério Público a submeter o caso ao Supremo Tribunal Federal.



Em outro momento, o presidente saiu em defesa do filho Eduardo, alvo de pedidos de cassação. Disse que ele não merece perder o mandato por causa de suas declarações a favor de um “novo AI-5”. “Em todos os momentos a Câmara respeitou o sagrado direito de opinião, seja ela qual for”, afirmou.

Quando o governo fez 200 dias, as expectativas em relação ao Zero Três eram mais elevadas. Bolsonaro ainda apostava na promoção do herdeiro a embaixador em Washington, plano abortado para evitar uma derrota no Senado. “Eu quero um filho melhor do que eu”, ele justificou, na ocasião.

Ontem o presidente encontrou um jeito de encaixar outra reverência aos Estados Unidos. “Tem um senhor ali com um boné escrito ‘Trump 2020’. É um herói da guerra do Vietnã”, disse, apontando para um idoso que assistia à cerimônia entre as autoridades.

No início da solenidade, o ministro Onyx Lorenzoni usou a tribuna para bajular o chefe. Repetiu sua citação bíblica preferida, exaltou seu discurso desastrado na ONU e criticou a “extrema imprensa”, termo usado pela militância bolsonarista na internet.

Em folheto comemorativo, a Secom anunciou que “os escândalos de corrupção sumiram do Palácio do Planalto e dos noticiários”. Propaganda é propaganda, mas o pessoal não precisa exagerar.

A mentalidade bolsonarista

Para que reste logo assentada a constituição deste escriba, aquilo que dá regência a este texto: não acredito em liberalismo econômico sem liberalismo político. Não numa democracia. Para que fique ainda mais claro, com aplicação prática: não acredito na vitalidade – na viabilidade – de um projeto de reformas liberais do Estado que não tenha os princípios da democracia liberal como um valor inegociável.

Tampouco creio ser possível, no mundo real, atrair investimentos – investimentos, não especulações – para um solo obviamente instável, inseguro; chão cujo desequilíbrio é forjado artificialmente por uma fábrica de crises institucionais que tem centro no próprio presidente da República.

Quem botará dinheiro – para valer, para ficar – nisso aqui?

A rigor, objetivamente, desconfio do interesse de o bolsonarismo, fenômeno autocrático, investir num programa liberal na economia – algo estrutural, com corpo de longo prazo – para além da geração das condições básicas mínimas para um voo de galinha capaz de assegurar a reeleição de Jair Bolsonaro em 2022. Não será preciso muito... Dado o fosso em que nos afundamos, uma breve reação na curva da geração de empregos faria boa parte do serviço.


Argumento nenhum desmonta a minha suspeita – com alicerce histórico – de que a intenção bolsonarista, nem um pouco original, seja usar o liberal econômico para conquistar alguma descompressão fiscal, algum fôlego para gastar, para fazer obras; e depois: tchau. Não seria novidade. É o que os mais espertos entre os populistas fazem.

Muito mais grave do que a recessão econômica é a depressão política que nos ata, pelo menos, desde 2013. É difícil supor que a primeira possa ser superada – com consistência, com fundamentos – sem que resolvamos a segunda. Eu diria: é impossível. Pergunte-se, portanto: será este governo – que opera em guerra constante, que planta conflitos como alimento, que está em campanha permanente, que radicaliza, que avança no racha do “nós contra eles”, que é a própria antipolítica – apetrechado para vencer uma doença política sem precedentes em tempo democrático (e da qual talvez seja a mais alta febre)? Ou seria vocacionado para ardê-la ainda mais?

Como não citar, a propósito, a fábula bolsonarista recente do leão e as hienas? O leão! O presidente leão. O rei da selva. Rei da selva – e (ao mesmo tempo, num arranjo improvável) vítima. Ele, o dono do pedaço, impedido de imperar plenamente por uma concertação golpista de hienas – as próprias instituições da República, os instrumentos de mediação e fiscalização; incluída a imprensa. O maldito establishment que não deixa o homem reinar acima dos marcos republicanos e da democracia representativa.

Para que não haja dúvida: o cenário – divulgado por Jair Bolsonaro em vídeo – expressa real inconformismo ante a teia impessoal que regula o ímpeto do governante por se espalhar. Para que não haja dúvida: as hienas são a institucionalidade – os freios e contrapesos que limitam o abuso de poder.

Não tem como dar certo.

Na já célebre entrevista à jornalista Leda Nagle, aquela em que falou em recurso a algo como um "novo AI-5", Eduardo Bolsonaro declarou também que o que faz um país forte não é um Estado forte; mas indivíduos fortes. Belo, né? Concordo. Há, porém, uma armadilha totalitária na formulação. Vejamos. Quem fala em novo AI-5 fala numa medida de exceção que, obrigatoriamente, suprime – cassa – garantias individuais. Certo? Quem fala em novo AI-5 fala, pois, em Estado forte; obrigatoriamente. Fala, por óbvio, em Estado forte na mão – obrigatoriamente – de indivíduos fortes; porque alguém precisará operar a máquina forte. Certo?

Daí por que se pergunte: quais são os indivíduos fortes de Eduardo Bolsonaro, os que controlariam o Estado? Os leões da família. Governantes fortes.

Isso tem passado; e não é bonito.

Podem me chamar de pessimista. Prefiro o lugar do prudente; do cético. Não importa. Tenham-me na conta do pessimista. Há, contudo, inegável lastro histórico na análise que proponho. Não existe liberalismo econômico sem liberalismo político. Não na democracia. É a história que ensina. O primeiro, sem o segundo, é o paraíso para o autocrata. Não acredito em liberalismo econômico em terra de leão. Mas acredito em liberalismo econômico na boca do leão; sendo sabido – e me desculpo por imagem tão franca – por onde sai o que pela boca entra.

Alguém duvida de que liberal – por ora instrumento necessário – também seja hiena, um inimigo, sob a mentalidade bolsonarista? A história – sempre ela – ensina. A história ensina também que não terão sido poucos os liberais que, caindo no conto do autoritário liberal, legitimaram e financiaram projetos autocráticos de poder. Projetos autocráticos de poder que não tardariam, chupada meia laranja liberal, a descartar o saco liberal todo como bagaço.

Pensamento do Dia

Nova Delhi (Índia)

Governo Bolsonaro vira um martírio para generais

Era de vidro a estima que Jair Bolsonaro parecia nutrir pelos militares que convocou para ajudá-lo a governar. Em dez meses, trincou seis vezes. O capitão expurgou do seu governo meia dúzia de generais. O penúltimo foi o quatro estrelas Maynard Marques de Santa Rosa, que deixou a Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência.

Depois que Bolsonaro mandou para o olho da rua um amigo de três décadas, o general Carlos Alberto dos Santos Cruz, desalojado do comando da Secretaria de Governo da Presidência, ficara entendido que a lâmina seria implacável. Mas não se imaginou que, sob o capitão, farda viraria um outro nome para instabilidade no emprego.

Já ficaram pelo caminho os generais Franklimberg de Freitas (Funai), Juarez Cunha (Correios), João Carlos Jesus Corrêa (Incra) e Marco Aurélio Vieira (Secretaria Especial de Esporte). Agora, Maynard Santa Rosa (Secretaria de Assuntos Estratégicos). Santos Cruz, o precursor, foi substituído por outro general: Luiz Eduardo Ramos. Que já recebeu da deputada Joyce Hasselmann um alerta: "Você será o próximo".

A conversão de generais da reserva em funcionários civis despertara muita expectativa. Os pessimistas apostavam na militarização camuflada de um governo supostamente civil. Os otimistas contavam com o talento dos ex-companheiros de caserna para civilizar um presidente que se considera militar a despeito de ter sido excluído da tropa por indisciplina.


Frustraram-se todas as apostas. Nem o governo se militarizou nem o presidente foi civilizado. Abriu-se uma terceira via, que conduz os generais gradativamente à porta de saída sob dois pretextos, ambos humilhantes: hipotética incompetência ou manifesta incompatibilidade com o alto-comando ideológico do governo, chefiado por Olavo de Carvalho desde o estado americano da Virgínia.

Virou fumaça a suposição de que algum general ilustrado faria ao Brasil o favor de tutelar um capitão indomável. Sucede o contrário. Um general como Augusto Heleno, por exemplo, segura-se na chefia do Gabinete de Segurança Institucional contemporizando com ideias amalucadas como a de Eduardo Bolsonaro.

O filho Zero Três do presidente sugeriu um "novo AI-5" como resposta a uma eventual radicalização de esquerda. E Heleno: "Se ele falou, tem de estudar como vai fazer, como vai conduzir. Acho que, se houver uma coisa no padrão do Chile, é lógico que tem de fazer alguma coisa para conter. Mas até chegar a esse ponto tem um caminho longo".

Quer dizer: o governo Bolsonaro tornou-se um martírio para os generais. Ou saem com a fama de incompetentes ou com a pecha de melancia (verde por fora, vermelho por dentro). Para ficar, precisam se infiltrar no meio dos insensatos. O problema é que as pessoas que observam à distância já não conseguem distinguir quem é quem.

Num governo assim, convertido em palco de guerra, bater em retirada passou a ser uma grande vitória para os generais.