quinta-feira, 10 de agosto de 2017
Titanic
Sexta-feira, dia 4. Noite, 15 graus. Um grupo de uns 50 jovens, com pouco mais de 20 anos, portando três bandeiras negras do anarquismo, alguns mascarados, a maioria de cara limpa, fecha a pista direita da avenida Paulista. Eles caminham gritando palavras de ordem contra os políticos de maneira geral, desde o vão do MASP (Museu de Arte de São Paulo) até quase a esquina da rua da Consolação. Param. Fazem uma rápida assembleia, decidem voltar pela faixa esquerda. Andam um quarteirão, e indecisos param novamente, e resolvem descer a rua Augusta, em direção ao centro.
Vários carros e motocicletas e dezenas de homens da Polícia Militar acompanham o protesto, perfazendo o triplo do número de manifestantes. Um policial fardado e outro à paisana filmam a passeata que segue organizadíssima. Embora causem enorme confusão no trânsito, em pleno horário de rush, não se ouve nenhuma buzina. Nas calçadas, apressados, passam os transeuntes pendurados em seus celulares, driblando os camelôs que apregoam seus produtos. Anestesiada, a noite cruza os braços de frio.
Dois dias antes, em Brasília, 263 deputados federais garantiram a aprovação do parecer do tucano Paulo Abi-Ackel favorável ao arquivamento da denúncia de corrupção passiva contra o presidente não eleito, Michel Temer. Para alcançar seu objetivo, Temer não precisou recorrer a conversas privadas, extraoficiais, como a que deu origem à acusação do empresário Joesley Batista, da JBS. Deixando de lado o pudor, Temer passou os últimos dois meses dedicando-se exclusivamente a editar medidas e a negociar emendas que assegurassem os votos necessários para a salvação do seu mandato – e, para isso, mandou às favas a decência e as contas públicas.
Naquele dia, não havia, em frente ao prédio do Congresso Nacional, carros de som de centrais sindicais, nem estandartes de partidos políticos, nem patos gigantes, nem bandeiras nacionais: apenas o olhar incrédulo do pedreiro, garçom e pintor mineiro, André Rhouglas, que, após percorrer de ônibus 910 quilômetros em 15 horas para acompanhar a votação, se viu sozinho com a faixa de “Fora Temer”. O fenômeno se repetiu Brasil afora: quarta-feira, dia 2, era apenas mais uma data como outra qualquer.
Na madrugada de 15 de abril de 1912, o gigantesco navio RMS Titanic afundou, após abalroar um iceberg, nas águas geladas do Atlântico Norte. Nele estavam 2.224 pessoas, entre passageiros e tripulantes – 1.514 das quais, ou seja, 68% do total, morreram afogadas ou congeladas. Quase metade dos que perderam a vida, 696, eram tripulantes (ou seja, carvoeiros, foguistas, mecânicos, cozinheiros, mordomos, etc) – outros 528 eram passageiros da 3ª classe. Dos passageiros ricos, que ocupavam a 1ª classe, 62% sobreviveram; na segunda classe, 41% se salvaram; enquanto, entre os pobres da 3ª classe, apenas um em cada quatro permaneceram vivos.
Segundo índice da Confederação Nacional da Indústria, aferido entre março e julho, o medo do desemprego chegou a 66,1 pontos, o quarto maior da série histórica iniciada em 1999. A taxa de crescimento do Produto Interno Bruto brasileiro para este ano, segundo a otimista projeção do Fundo Monetário Nacional, deve ser de apenas 0,2%. E nosso índice de homicídios, segundo relatório da Organização Mundial de Saúde, com base em dados de 2015, é 30,5 assassinatos por 100 mil habitantes, número que vem crescendo ano a ano.
O pior de tudo, entretanto, é esta estranha sensação de calmaria, a mesma que antecedeu o desastre do Titanic. Na época, não se sabia que um mar de águas muito tranquilas é sinônimo da presença de icebergs. Somos um navio sem comandante navegando a pleno vapor na noite escura. Se ainda tivéssemos esperança de que lá na frente alguém comprometido com o salvamento do país assumiria o controle... mas nem isso... Aqui a história se repete de maneira cruel: quem sofrerá as consequências será, como sempre, o pessoal que ocupa a terceira classe, os pobres. E os ratos serão os primeiros a abandonar o barco...
Vários carros e motocicletas e dezenas de homens da Polícia Militar acompanham o protesto, perfazendo o triplo do número de manifestantes. Um policial fardado e outro à paisana filmam a passeata que segue organizadíssima. Embora causem enorme confusão no trânsito, em pleno horário de rush, não se ouve nenhuma buzina. Nas calçadas, apressados, passam os transeuntes pendurados em seus celulares, driblando os camelôs que apregoam seus produtos. Anestesiada, a noite cruza os braços de frio.
Dois dias antes, em Brasília, 263 deputados federais garantiram a aprovação do parecer do tucano Paulo Abi-Ackel favorável ao arquivamento da denúncia de corrupção passiva contra o presidente não eleito, Michel Temer. Para alcançar seu objetivo, Temer não precisou recorrer a conversas privadas, extraoficiais, como a que deu origem à acusação do empresário Joesley Batista, da JBS. Deixando de lado o pudor, Temer passou os últimos dois meses dedicando-se exclusivamente a editar medidas e a negociar emendas que assegurassem os votos necessários para a salvação do seu mandato – e, para isso, mandou às favas a decência e as contas públicas.
Naquele dia, não havia, em frente ao prédio do Congresso Nacional, carros de som de centrais sindicais, nem estandartes de partidos políticos, nem patos gigantes, nem bandeiras nacionais: apenas o olhar incrédulo do pedreiro, garçom e pintor mineiro, André Rhouglas, que, após percorrer de ônibus 910 quilômetros em 15 horas para acompanhar a votação, se viu sozinho com a faixa de “Fora Temer”. O fenômeno se repetiu Brasil afora: quarta-feira, dia 2, era apenas mais uma data como outra qualquer.
Na madrugada de 15 de abril de 1912, o gigantesco navio RMS Titanic afundou, após abalroar um iceberg, nas águas geladas do Atlântico Norte. Nele estavam 2.224 pessoas, entre passageiros e tripulantes – 1.514 das quais, ou seja, 68% do total, morreram afogadas ou congeladas. Quase metade dos que perderam a vida, 696, eram tripulantes (ou seja, carvoeiros, foguistas, mecânicos, cozinheiros, mordomos, etc) – outros 528 eram passageiros da 3ª classe. Dos passageiros ricos, que ocupavam a 1ª classe, 62% sobreviveram; na segunda classe, 41% se salvaram; enquanto, entre os pobres da 3ª classe, apenas um em cada quatro permaneceram vivos.
Segundo índice da Confederação Nacional da Indústria, aferido entre março e julho, o medo do desemprego chegou a 66,1 pontos, o quarto maior da série histórica iniciada em 1999. A taxa de crescimento do Produto Interno Bruto brasileiro para este ano, segundo a otimista projeção do Fundo Monetário Nacional, deve ser de apenas 0,2%. E nosso índice de homicídios, segundo relatório da Organização Mundial de Saúde, com base em dados de 2015, é 30,5 assassinatos por 100 mil habitantes, número que vem crescendo ano a ano.
O pior de tudo, entretanto, é esta estranha sensação de calmaria, a mesma que antecedeu o desastre do Titanic. Na época, não se sabia que um mar de águas muito tranquilas é sinônimo da presença de icebergs. Somos um navio sem comandante navegando a pleno vapor na noite escura. Se ainda tivéssemos esperança de que lá na frente alguém comprometido com o salvamento do país assumiria o controle... mas nem isso... Aqui a história se repete de maneira cruel: quem sofrerá as consequências será, como sempre, o pessoal que ocupa a terceira classe, os pobres. E os ratos serão os primeiros a abandonar o barco...
Hábitos noturnos da República
Por habito, segundo já confessou o presidente Michel Temer, ou talvez para manter sigilo sobre certos encontros, é no escuro da noite, se necessário no protegido porão do palácio que ele cumpre seu terceiro expediente diário de trabalho.
Isso quase lhe custou o mandato presidencial. Um dos seus visitantes noturnos, o empresário Joesley Batista, foi admitido no palácio com o nome falso e gravou o que disse a Temer e o que ouviu dele. Desde então se instalou por lá um equipamento anti-grampo.
Sábia providência. Que devolveu a Temer a confiança para insistir na prática. O ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), é assíduo frequentador do Jaburu, sem discriminar entre o dia e a noite, sempre ocupado em fazer “análises de circunstâncias”.
A mais recente ida de Gilmar ao palácio foi no último domingo, véspera da entrada no STF da arguição de suspeição e impedimento do procurador-geral da República Rodrigo Janot apresentada pela defesa do presidente da República. Dará em nada.
Na última terça-feira, depois das 22 horas, foi a vez de Raquel Dodge, que sucederá a Janot no cargo, visitar Temer no Jaburu. O encontro teria escapado à atenção dos jornalistas se não fosse o registro acidental feito por um cinegrafista.
Que assunto urgente e aparentemente grave levaria Dodge a reunir-se com Temer em horário tão impróprio? A reunião não constava da agenda oficial de nenhum deles. Dodge explicou depois: foi para tratarem de detalhes da cerimônia de posse dela em setembro. E só.
Sabe-se que Dodge, por temperamento, é centralizadora. Quer estar a par de tudo do que lhe compete e a seus subordinados. Temer é mais ou menos assim também. Quem sabe não preferiram cuidar eles mesmos dos detalhes da cerimônia?
Tipo: em que local ela ocorrerá – no maior salão do Palácio do Planalto ou em outro menor? Os dois entrarão juntos – ou Dodge primeiro e depois Temer? Haverá um coquetel mais tarde? Para quantas pessoas? Onde? O que será servido? Por quantos garçons?
Nem de longe os dois se preocuparam com o risco de o encontro ser mal interpretado. São representantes de poderes distintos. Os bons costumem sugerem que pessoas assim se reúnam à luz do dia, respeitados todos os protocolos, informado o distinto público.
Foi Temer que preferiu escolher Dodge para o cargo, desprezando o nome mais votado pelos procuradores da República na lista tríplice que lhe foi enviada. Ela foi a segunda mais votada. O primeiro mais votado era do gosto de Janot, que considera Dodge uma “víbora”.
A futura procuradora-geral da República está decidida a devolver o Ministério Público ao seu leito natural. Por tal coisa, entenda-se, um Ministério Público mais ortodoxo, cioso das regras, que não se deixe encantar pelo foto-fátuo das operações correntes. Entenderam?
Dodge é fiel depositária da esperança de todos, principalmente dos políticos, que se julgam alvos de injustiças que poderão lhes custar o mandato e a liberdade. Deveria sentir-se, pois, obrigada a zelar com severidade pelas aparências e a preservar a dignidade do cargo.
Transparência partidária e reforma política
É simbólico e revelador que o Tribunal Superior Eleitoral não consiga examinar a contento as contas dos partidos brasileiros ao mesmo tempo em que se observam as mais graves denúncias de corrupção de nossa história envolvendo agentes públicos e privados, empresários e dirigentes partidários.
No começo deste ano, a corte eleitoral ainda analisava as contas de 2011 e teve de fazer uma força-tarefa para dar cabo de fazê-lo antes que prescrevessem. O passivo sem análise, contudo, segue à mercê do tempo, aumentando o risco de impunidade.
Ademais, essa prestação de contas ainda ocorre de modo extremamente rudimentar. Em pleno ano de 2017, no curso de uma das mais graves crises políticas de todos os tempos, os partidos políticos brasileiros ainda enviam suas contas ao órgão de controle apenas uma vez ao ano, em pedaços de papel.
Já seria grave, mas é pior. Levantamento da consultoria Pulso Público analisou as fotografias publicadas na página de internet do TSE dos balanços contábeis dos cinco maiores partidos em termos de representação na Câmara dos Deputados, nos três últimos anos disponíveis. Esse estudo demonstrou que:
1. O modo como as contas estão prestadas contraria a Lei de Acesso a Informação (Lei 12.527/2011), que determina que esse tipo de arquivo esteja publicado em formato aberto.
2. Não há padronização das rubricas nas quais são feitos os lançamentos e grande parte das rubricas de despesa é ampla o suficiente para impedir que se identifique com precisão a destinação dos recursos. Em muitos casos, milhões de reais são alocados em rubricas genéricas como “serviços técnico-profissionais”, “manutenção da sede e serviços do partido” e “despesas com fins eleitorais”.
3. O nível de detalhamento das informações apresentadas difere muito entre os partidos e a cada ano.
4. As transferências a diretórios estaduais e municipais ultrapassaram R$ 420 milhões no período considerado, desconsideradas as transferências com fins eleitorais. Desse montante, quase R$ 190 milhões provieram de recursos do Fundo Partidário. Demonstrativos contábeis dos diretórios estaduais dos partidos são publicados nos sites dos tribunais regionais eleitorais dos estados, mas na maioria dos casos, essas publicações não estão padronizadas, além de estarem incompletas e desatualizadas.
5. As transferências para as fundações e institutos ligados aos partidos somaram mais de R$ 160 milhões no período e praticamente todo desse montante proveio do Fundo Partidário, mas não estão disponíveis dados sobre o emprego desses recursos sequer nas páginas de internet das respectivas instituições.
A autonomia dos partidos políticos é constitucional, mas não absoluta. O princípio republicano que pauta nosso pacto social impede que se utilize dessa garantia para obstruir o aumento da oxigenação das agremiações ou limitar a transparência que é dada ao uso dos tributos pagos por toda a sociedade.
Entre 2013 e 2015, o Fundo Partidário entregou mais de 1 bilhão e 600 milhões de reais em dinheiro público aos partidos. É evidente que devem prestar contas à sociedade que os financia e para a qual são o único instrumento de representação política possível.
Mal fiscalizados, os partidos políticos surgem como veículos de desvios em praticamente todos os escândalos noticiados. Não importa, portanto, o modelo de financiamento partidário e eleitoral vigente; se não houver regras e procedimentos que favoreçam a transparência e a efetividade da fiscalização dos recursos utilizados pelos partidos políticos, permanecerão estruturais os riscos de corrupção do sistema político brasileiro.
Constatada a conjuntura e a partir dessas premissas, constitui-se desde o final de 2016 o Movimento Transparência Partidária, um agrupamento de cientistas políticos, jornalistas, advogados, cidadãos engajados e ativistas, além de profissionais liberais de diversos campos de atuação e matizes ideológicos.
Convicto de que para mudar a política é preciso reformar os partidos, o grupo busca sensibilizar as instituições, conscientizar e mobilizar a opinião pública a respeito da necessidade de alteração legislativa para determinar que as contas dos partidos políticos brasileiros sejam padronizadas, atualizadas e acessíveis via internet para qualquer pessoa conseguir acompanhá-las e entendê-las.
No dia 20 de junho, a Comissão Especial da Reforma Política da Câmara dos Deputados recebeu em para participar das discussões que visam alterar as regras que estruturam nosso sistema político. Nessa ocasião, o Movimento Transparência Partidária chamou a atenção dos deputados para a necessidade de criar mecanismos e incentivos de publicidade e controle social sobre as contas dos partidos políticos, a fim de que a sociedade civil organizada, a imprensa e os próprios filiados possam ser colaboradores ativos do processo de fiscalização do uso desses recursos.
No mês passado, o relator da Comissão Especial, deputado Vicente Cândido (PT/SP), apresentou complementação de voto para alterar a Lei dos Partidos Políticos, de modo a vincular a garantia de autonomia dessas instituições à observância dos seguintes princípios:
1. Gestão democrática e participação dos filiados;
2. Renovação periódica nos cargos de direção e deliberação dentro dos partidos;
3. Transparência no que à utilização de recursos públicos e privados.
Nesta quarta-feira, a Comissão Especial votará o relatório do deputado Vicente Cândido. É preciso que a opinião pública esteja atenta à preservação desses dispositivos. Ainda mais quando se cogita estabelecer um fundo público bilionário para financiamento de partidos e campanhas. Dar mais transparência à utilização desses recursos é a contrapartida mínima que se deve exigir diante do novo modelo proposto.
A crise de representatividade que vivemos coloca em risco importantes avanços civilizatórios e sua superação demanda novos paradigmas de transparência e controle social de nossas instituições políticas. Essas medidas talvez não sejam suficientes, mas certamente estão alinhadas aos valores e às melhores práticas da democracia no século XXI.
Marcelo Issa
No começo deste ano, a corte eleitoral ainda analisava as contas de 2011 e teve de fazer uma força-tarefa para dar cabo de fazê-lo antes que prescrevessem. O passivo sem análise, contudo, segue à mercê do tempo, aumentando o risco de impunidade.
Ademais, essa prestação de contas ainda ocorre de modo extremamente rudimentar. Em pleno ano de 2017, no curso de uma das mais graves crises políticas de todos os tempos, os partidos políticos brasileiros ainda enviam suas contas ao órgão de controle apenas uma vez ao ano, em pedaços de papel.
Já seria grave, mas é pior. Levantamento da consultoria Pulso Público analisou as fotografias publicadas na página de internet do TSE dos balanços contábeis dos cinco maiores partidos em termos de representação na Câmara dos Deputados, nos três últimos anos disponíveis. Esse estudo demonstrou que:
1. O modo como as contas estão prestadas contraria a Lei de Acesso a Informação (Lei 12.527/2011), que determina que esse tipo de arquivo esteja publicado em formato aberto.
2. Não há padronização das rubricas nas quais são feitos os lançamentos e grande parte das rubricas de despesa é ampla o suficiente para impedir que se identifique com precisão a destinação dos recursos. Em muitos casos, milhões de reais são alocados em rubricas genéricas como “serviços técnico-profissionais”, “manutenção da sede e serviços do partido” e “despesas com fins eleitorais”.
3. O nível de detalhamento das informações apresentadas difere muito entre os partidos e a cada ano.
4. As transferências a diretórios estaduais e municipais ultrapassaram R$ 420 milhões no período considerado, desconsideradas as transferências com fins eleitorais. Desse montante, quase R$ 190 milhões provieram de recursos do Fundo Partidário. Demonstrativos contábeis dos diretórios estaduais dos partidos são publicados nos sites dos tribunais regionais eleitorais dos estados, mas na maioria dos casos, essas publicações não estão padronizadas, além de estarem incompletas e desatualizadas.
5. As transferências para as fundações e institutos ligados aos partidos somaram mais de R$ 160 milhões no período e praticamente todo desse montante proveio do Fundo Partidário, mas não estão disponíveis dados sobre o emprego desses recursos sequer nas páginas de internet das respectivas instituições.
A autonomia dos partidos políticos é constitucional, mas não absoluta. O princípio republicano que pauta nosso pacto social impede que se utilize dessa garantia para obstruir o aumento da oxigenação das agremiações ou limitar a transparência que é dada ao uso dos tributos pagos por toda a sociedade.
Entre 2013 e 2015, o Fundo Partidário entregou mais de 1 bilhão e 600 milhões de reais em dinheiro público aos partidos. É evidente que devem prestar contas à sociedade que os financia e para a qual são o único instrumento de representação política possível.
Mal fiscalizados, os partidos políticos surgem como veículos de desvios em praticamente todos os escândalos noticiados. Não importa, portanto, o modelo de financiamento partidário e eleitoral vigente; se não houver regras e procedimentos que favoreçam a transparência e a efetividade da fiscalização dos recursos utilizados pelos partidos políticos, permanecerão estruturais os riscos de corrupção do sistema político brasileiro.
Constatada a conjuntura e a partir dessas premissas, constitui-se desde o final de 2016 o Movimento Transparência Partidária, um agrupamento de cientistas políticos, jornalistas, advogados, cidadãos engajados e ativistas, além de profissionais liberais de diversos campos de atuação e matizes ideológicos.
Convicto de que para mudar a política é preciso reformar os partidos, o grupo busca sensibilizar as instituições, conscientizar e mobilizar a opinião pública a respeito da necessidade de alteração legislativa para determinar que as contas dos partidos políticos brasileiros sejam padronizadas, atualizadas e acessíveis via internet para qualquer pessoa conseguir acompanhá-las e entendê-las.
No dia 20 de junho, a Comissão Especial da Reforma Política da Câmara dos Deputados recebeu em para participar das discussões que visam alterar as regras que estruturam nosso sistema político. Nessa ocasião, o Movimento Transparência Partidária chamou a atenção dos deputados para a necessidade de criar mecanismos e incentivos de publicidade e controle social sobre as contas dos partidos políticos, a fim de que a sociedade civil organizada, a imprensa e os próprios filiados possam ser colaboradores ativos do processo de fiscalização do uso desses recursos.
No mês passado, o relator da Comissão Especial, deputado Vicente Cândido (PT/SP), apresentou complementação de voto para alterar a Lei dos Partidos Políticos, de modo a vincular a garantia de autonomia dessas instituições à observância dos seguintes princípios:
1. Gestão democrática e participação dos filiados;
2. Renovação periódica nos cargos de direção e deliberação dentro dos partidos;
3. Transparência no que à utilização de recursos públicos e privados.
Nesta quarta-feira, a Comissão Especial votará o relatório do deputado Vicente Cândido. É preciso que a opinião pública esteja atenta à preservação desses dispositivos. Ainda mais quando se cogita estabelecer um fundo público bilionário para financiamento de partidos e campanhas. Dar mais transparência à utilização desses recursos é a contrapartida mínima que se deve exigir diante do novo modelo proposto.
A crise de representatividade que vivemos coloca em risco importantes avanços civilizatórios e sua superação demanda novos paradigmas de transparência e controle social de nossas instituições políticas. Essas medidas talvez não sejam suficientes, mas certamente estão alinhadas aos valores e às melhores práticas da democracia no século XXI.
Marcelo Issa
Bolsa político: 10 motivos para impedi-la
A Câmara dos Deputados apresentou na quarta seu Cavalo de Troia. Ele vem sendo articulado há meses, recheado de maldades, para roubar de nós, cidadãos brasileiros, a pouca esperança que nos resta. Dentro dele, nossos parlamentares, quase todos eles, esfregam as mãos esperando a torneira de dinheiro ser aberta para que possam gastar em suas campanhas.
O Cavalo de Troia é o novo Fundo Eleitoral que Vicente Cândido, do PT, quer criar para que nós cidadãos contribuamos com R$ 3,6 bilhões adicionais para a campanha de nossos pobres políticos.
A proposta de Vicente, uma atrocidade moral que eles ousam chamar de Reforma Política, carrega armadilhas perversas. Aponto aqui as mais graves.
1. Nosso país está quebrado. A "meta" de rombo, neste ano, é de R$ 139 bilhões, e o governo está em dificuldades para honrá-la. Sem a reforma da previdência, e gastando desvairadamente para comprar apoio no Congresso, está num beco sem saída. Vai ter que aumentar o rombo, ou aumentar impostos. Os dois cairão no nosso colo. Jornais mostraram nesta semana fotos de hospitais públicos que, sem verbas, não podem fazer cirurgias de coração. Enquanto tem gente morrendo por falta de dinheiro, irresponsáveis querem mais dinheiro para eleições. É uma atrocidade.
2. A população não quer. Qualquer pesquisa mostraria que não há um brasileiro sequer disposto a pagar um novo fundo eleitoral. Ora, são os deputados e senadores nossos representantes ou não? Ao implementar algo que nenhum de seus eleitores quer, merecem continuar lá? Estão lá por eles ou por nós? Merecem ser reeleitos? Têm alguma legitimidade moral?
3. Não há tempo para debate e discussão pública. Faltam menos de dois meses para acabar o prazo constitucional para mudanças de legislação eleitoral, que têm que ser feitas até início de outubro —um ano antes das eleições. Os deputados postergaram o trâmite deliberadamente, para que seja feito a toque de caixa, com a desculpa do prazo. Tentarão aprovar a reforma, de forma expressa e dissimulada, votando em madrugadas.
Discussões de assuntos do interesse do povo levam meses. A discussão na comissão da Câmara foi feita em um dia. Fique de olho, eles vão voar.
4. A proposta diminui a representatividade. Como se não bastasse a já combalida representatividade do nosso Congresso, qualquer aumento de dinheiro público a piora, e muito. Para entender o porquê, imagine hipoteticamente que os partidos políticos tivessem acesso ilimitado a recursos públicos. Para que precisariam dar satisfação à população e aos seus eleitores, se têm recursos para comprar os votos dos menos informados? Por outro lado, com menos dinheiro público, teriam que cativar suas bases, criar militantes e contribuidores, pesquisar o que querem, e representá-los no congresso. Enfim, precisariam se aproximar dos eleitores.
Dinheiro público é inversamente proporcional à representatividade.
5. O fundo é variável. Vicente Cândido, que não é bobo, está tentando fixar o valor do novo fundo como um percentual da RCL (Receita Corrente Líquida) da União. Ele havia sinalizado 0,25% da RCL. Agora quer dobrar para 0,50%. Isso daria, este ano, R$ 3,6 bilhões. Porém, como sabemos, estamos ainda no fundo do poço criado por Dilma, Lula e o PT. Quando a economia se recuperar, a RCL também crescerá, e com ela o Fundo Eleitoral.
Para você ter uma ideia, a RCL mais do que triplicou nos últimos 15 anos.
O Cavalo de Troia é o novo Fundo Eleitoral que Vicente Cândido, do PT, quer criar para que nós cidadãos contribuamos com R$ 3,6 bilhões adicionais para a campanha de nossos pobres políticos.
A proposta de Vicente, uma atrocidade moral que eles ousam chamar de Reforma Política, carrega armadilhas perversas. Aponto aqui as mais graves.
1. Nosso país está quebrado. A "meta" de rombo, neste ano, é de R$ 139 bilhões, e o governo está em dificuldades para honrá-la. Sem a reforma da previdência, e gastando desvairadamente para comprar apoio no Congresso, está num beco sem saída. Vai ter que aumentar o rombo, ou aumentar impostos. Os dois cairão no nosso colo. Jornais mostraram nesta semana fotos de hospitais públicos que, sem verbas, não podem fazer cirurgias de coração. Enquanto tem gente morrendo por falta de dinheiro, irresponsáveis querem mais dinheiro para eleições. É uma atrocidade.
2. A população não quer. Qualquer pesquisa mostraria que não há um brasileiro sequer disposto a pagar um novo fundo eleitoral. Ora, são os deputados e senadores nossos representantes ou não? Ao implementar algo que nenhum de seus eleitores quer, merecem continuar lá? Estão lá por eles ou por nós? Merecem ser reeleitos? Têm alguma legitimidade moral?
3. Não há tempo para debate e discussão pública. Faltam menos de dois meses para acabar o prazo constitucional para mudanças de legislação eleitoral, que têm que ser feitas até início de outubro —um ano antes das eleições. Os deputados postergaram o trâmite deliberadamente, para que seja feito a toque de caixa, com a desculpa do prazo. Tentarão aprovar a reforma, de forma expressa e dissimulada, votando em madrugadas.
Discussões de assuntos do interesse do povo levam meses. A discussão na comissão da Câmara foi feita em um dia. Fique de olho, eles vão voar.
4. A proposta diminui a representatividade. Como se não bastasse a já combalida representatividade do nosso Congresso, qualquer aumento de dinheiro público a piora, e muito. Para entender o porquê, imagine hipoteticamente que os partidos políticos tivessem acesso ilimitado a recursos públicos. Para que precisariam dar satisfação à população e aos seus eleitores, se têm recursos para comprar os votos dos menos informados? Por outro lado, com menos dinheiro público, teriam que cativar suas bases, criar militantes e contribuidores, pesquisar o que querem, e representá-los no congresso. Enfim, precisariam se aproximar dos eleitores.
Dinheiro público é inversamente proporcional à representatividade.
5. O fundo é variável. Vicente Cândido, que não é bobo, está tentando fixar o valor do novo fundo como um percentual da RCL (Receita Corrente Líquida) da União. Ele havia sinalizado 0,25% da RCL. Agora quer dobrar para 0,50%. Isso daria, este ano, R$ 3,6 bilhões. Porém, como sabemos, estamos ainda no fundo do poço criado por Dilma, Lula e o PT. Quando a economia se recuperar, a RCL também crescerá, e com ela o Fundo Eleitoral.
Para você ter uma ideia, a RCL mais do que triplicou nos últimos 15 anos.
Podemos ter que contribuir, daqui a quatro eleições, com R$ 11 bilhões para campanhas eleitorais. O Cavalo de Troia pode virar um tirano(ssauro) que se alimenta de dinheiro.
6. Os valores atuais já são exorbitantes. O Fundo partidário foi triplicado por Romero Jucá em 2015 e, hoje, é de R$ 819 milhões (sem contar as concessões de tempo em rádio e TV, na ordem de centenas de milhões de reais). Eles não querem aumentar esse valor em 10%, mas em 340%. Seria 12 vezes o valor de 2014.
7. Os gastos partidários não são transparentes. Partidos não têm rigor na forma que prestam contas. Cada um faz de seu jeito, agrega valores da forma que bem entende, e pode mudar a metodologia de um ano para outro. Não há transparência dos gastos do dinheiro da sociedade para a sociedade.
8. Mesmo sem o Fundo, partidos grandes já receberiam mais. Com a cláusula de barreira proposta, partidos menores não terão acesso a dinheiro público. Em vez de deduzir esses valores da contribuição da sociedade, eles serão redistribuídos aos partidos grandes.
9. Há alternativas. Os parlamentares estão argumentando que, na ausência do financiamento privado, precisam aumentar o público. Não é verdade, pois podem mudar o sistema, implementando outro mais barato e eficiente. O "distritão" (será alvo de outro artigo), apesar de perverso, já é mais barato que o atual sistema proporcional, por ter menos candidatos.
Mas a melhor solução, em termos de custo e representatividade, seria a adoção do sistema distrital, que pode diminuir os custos de campanhas em até 80%. Por que não implementar agora essa modalidade, cogitada apenas para 2022?
10. A renovação política será comprometida. Os atuais parlamentares querem essa reforma para terem maiores chances de se reeleger. Se o conseguirem, perderemos uma enorme, talvez a maior, chance de renovação do nosso Congresso. Reeleitos, além de darem continuidade ao abominável desserviço que vêm prestando ao país, eles podem piorar o sistema ainda mais, revertendo medidas que estão prometendo para 2022.
A proposta de Vicente Cândido, a ser votada nas duas casas, e já apoiada pela quase totalidade do Congresso, não é reforma, mas ROMBO político, financeiro e de representatividade, que estão tentando enfiar nossa goela abaixo.
É o momento de acordarmos e exercermos cidadania. Se não o fizermos, perderemos a maior, talvez a única, chance de renovação política para tirar o Brasil deste buraco. E você? Vai ficar no sofá assistindo?
6. Os valores atuais já são exorbitantes. O Fundo partidário foi triplicado por Romero Jucá em 2015 e, hoje, é de R$ 819 milhões (sem contar as concessões de tempo em rádio e TV, na ordem de centenas de milhões de reais). Eles não querem aumentar esse valor em 10%, mas em 340%. Seria 12 vezes o valor de 2014.
7. Os gastos partidários não são transparentes. Partidos não têm rigor na forma que prestam contas. Cada um faz de seu jeito, agrega valores da forma que bem entende, e pode mudar a metodologia de um ano para outro. Não há transparência dos gastos do dinheiro da sociedade para a sociedade.
8. Mesmo sem o Fundo, partidos grandes já receberiam mais. Com a cláusula de barreira proposta, partidos menores não terão acesso a dinheiro público. Em vez de deduzir esses valores da contribuição da sociedade, eles serão redistribuídos aos partidos grandes.
9. Há alternativas. Os parlamentares estão argumentando que, na ausência do financiamento privado, precisam aumentar o público. Não é verdade, pois podem mudar o sistema, implementando outro mais barato e eficiente. O "distritão" (será alvo de outro artigo), apesar de perverso, já é mais barato que o atual sistema proporcional, por ter menos candidatos.
Mas a melhor solução, em termos de custo e representatividade, seria a adoção do sistema distrital, que pode diminuir os custos de campanhas em até 80%. Por que não implementar agora essa modalidade, cogitada apenas para 2022?
10. A renovação política será comprometida. Os atuais parlamentares querem essa reforma para terem maiores chances de se reeleger. Se o conseguirem, perderemos uma enorme, talvez a maior, chance de renovação do nosso Congresso. Reeleitos, além de darem continuidade ao abominável desserviço que vêm prestando ao país, eles podem piorar o sistema ainda mais, revertendo medidas que estão prometendo para 2022.
A proposta de Vicente Cândido, a ser votada nas duas casas, e já apoiada pela quase totalidade do Congresso, não é reforma, mas ROMBO político, financeiro e de representatividade, que estão tentando enfiar nossa goela abaixo.
É o momento de acordarmos e exercermos cidadania. Se não o fizermos, perderemos a maior, talvez a única, chance de renovação política para tirar o Brasil deste buraco. E você? Vai ficar no sofá assistindo?
Ju$tiça
Direitos indígenas esbarram na bancada ruralista
Organizações protetoras dos direitos indígenas aproveitaram o 9 de agosto, Dia Internacional dos Povos Indígenas, para denunciar a articulação de parlamentares ligados ao agronegócio para barrar políticas de disposição de terras aos povos nativos do Brasil.
A Constituição atribui ao Estado o dever de demarcar terras indígenas, que são áreas destinadas à sustentabilidade dos povos nativos. Existentes em todos os estados brasileiros, elas abrangem cerca de 14% da superfície nacional (1.173.807 km²) e, salvo situações excepcionais, não podem ser exploradas por não índios.
Porém, para membros da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) – entidade que reúne 231 deputados e 25 senadores de diversos partidos e que representa os interesses do agronegócio – essa prerrogativa é um entrave para o desenvolvimento do país. "Nós somos 210 milhões de brasileiros, e os índios não chegam a 1 milhão, e eles detêm 13,8% do território nacional. [Deste percentual] nós temos a informação de que 8% é de terras passíveis da agricultura", argumenta o deputado Nelson Padovani (PSDB-PR) em vídeo divulgado pela bancada.
O presidente da FPA, deputado federal Nilson Leitão (PSDB-MT), defende que os indígenas possam estabelecer parcerias para explorar as suas terras. "Eu acho que o índio tem que ter a prioridade [sobre o uso da terra], a escolha é dele. Mas claro que ele pode também terceirizar isso por falta de tecnologia, equipamento. Em algumas situações, por exemplo a questão mineral, é óbvio que ele vai precisar de parceiros. Se até uma empresa brasileira busca parceria, por que o índio não iria buscar? O que ele precisa ter é autonomia para isso, o que ele precisa ter é lucratividade com isso", argumenta.
A questão da exploração por terceiros é contraposta por defensores dos direitos dos nativos. Segundo Artionka Capiberibe, professora de antropologia da Unicamp, os interesses desses parlamentares estão voltados para um modelo econômico desenvolvimentista. "Todo o trabalho [dos ruralistas] é tentar manter os indígenas na invisibilidade. É fazer com que eles se tornem 'brasileiros', integrá-los à sociedade nacional. Com isso, o único lugar que vai lhes caber é o da pobreza. Por isso que a terra é fundamental, porque com ela não tem dependência", argumenta.
Dos 896.917 índios brasileiros (cerca de 0,5% da população), 57,7% habitam terras indígenas (TI). A maior extensão de terras indígenas (98%) está na Floresta Amazônica e tem papel importante na preservação ambiental. Um estudo realizado pela World Resources Institute (WRI) constatou que as taxas anuais de desmatamento são 2,5 vezes menores dentro de terras demarcadas.
O geógrafo Giba Wataramy, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), resume a importância da terra para os nativos: "Numa palavra que expressa bem essa perspectiva, os guarani dizem: tekohá. Traduzindo de forma aproximada, significa: 'o lugar onde se é'. Ou seja, o guarani, e podemos aplicar isso a todos os povos indígenas, só pode se realizar como povo tendo seu território como referência. Nisso, ser e estar se misturam".
Capiberibe ressalta que a interferência sobre a cultura dos nativos remonta à época colonial, quando os colonizadores portugueses forçavam os deslocamentos de populações inteiras de suas terras natais para as cercanias dos núcleos coloniais. Conhecidas como descimentos, essas práticas buscavam facilitar a catequização e o uso da mão de obra dos indígenas.
O ponto de virada na forma como o Estado enxerga o tema, conforme a pesquisadora, ocorreu apenas com a Constituição de 1988. "Antes, a questão indígena no Brasil era tratada dentro da lógica de transformá-los numa massa produtiva e, com isso, acabar com a sua distintividade sócio-cultural." Nesse sentido, as políticas propostas pelos ruralistas seriam um "retrocesso àqueles tempos".
A Constituição atribui ao Estado o dever de demarcar terras indígenas, que são áreas destinadas à sustentabilidade dos povos nativos. Existentes em todos os estados brasileiros, elas abrangem cerca de 14% da superfície nacional (1.173.807 km²) e, salvo situações excepcionais, não podem ser exploradas por não índios.
Porém, para membros da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) – entidade que reúne 231 deputados e 25 senadores de diversos partidos e que representa os interesses do agronegócio – essa prerrogativa é um entrave para o desenvolvimento do país. "Nós somos 210 milhões de brasileiros, e os índios não chegam a 1 milhão, e eles detêm 13,8% do território nacional. [Deste percentual] nós temos a informação de que 8% é de terras passíveis da agricultura", argumenta o deputado Nelson Padovani (PSDB-PR) em vídeo divulgado pela bancada.
O presidente da FPA, deputado federal Nilson Leitão (PSDB-MT), defende que os indígenas possam estabelecer parcerias para explorar as suas terras. "Eu acho que o índio tem que ter a prioridade [sobre o uso da terra], a escolha é dele. Mas claro que ele pode também terceirizar isso por falta de tecnologia, equipamento. Em algumas situações, por exemplo a questão mineral, é óbvio que ele vai precisar de parceiros. Se até uma empresa brasileira busca parceria, por que o índio não iria buscar? O que ele precisa ter é autonomia para isso, o que ele precisa ter é lucratividade com isso", argumenta.
A questão da exploração por terceiros é contraposta por defensores dos direitos dos nativos. Segundo Artionka Capiberibe, professora de antropologia da Unicamp, os interesses desses parlamentares estão voltados para um modelo econômico desenvolvimentista. "Todo o trabalho [dos ruralistas] é tentar manter os indígenas na invisibilidade. É fazer com que eles se tornem 'brasileiros', integrá-los à sociedade nacional. Com isso, o único lugar que vai lhes caber é o da pobreza. Por isso que a terra é fundamental, porque com ela não tem dependência", argumenta.
Dos 896.917 índios brasileiros (cerca de 0,5% da população), 57,7% habitam terras indígenas (TI). A maior extensão de terras indígenas (98%) está na Floresta Amazônica e tem papel importante na preservação ambiental. Um estudo realizado pela World Resources Institute (WRI) constatou que as taxas anuais de desmatamento são 2,5 vezes menores dentro de terras demarcadas.
O geógrafo Giba Wataramy, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), resume a importância da terra para os nativos: "Numa palavra que expressa bem essa perspectiva, os guarani dizem: tekohá. Traduzindo de forma aproximada, significa: 'o lugar onde se é'. Ou seja, o guarani, e podemos aplicar isso a todos os povos indígenas, só pode se realizar como povo tendo seu território como referência. Nisso, ser e estar se misturam".
Capiberibe ressalta que a interferência sobre a cultura dos nativos remonta à época colonial, quando os colonizadores portugueses forçavam os deslocamentos de populações inteiras de suas terras natais para as cercanias dos núcleos coloniais. Conhecidas como descimentos, essas práticas buscavam facilitar a catequização e o uso da mão de obra dos indígenas.
O ponto de virada na forma como o Estado enxerga o tema, conforme a pesquisadora, ocorreu apenas com a Constituição de 1988. "Antes, a questão indígena no Brasil era tratada dentro da lógica de transformá-los numa massa produtiva e, com isso, acabar com a sua distintividade sócio-cultural." Nesse sentido, as políticas propostas pelos ruralistas seriam um "retrocesso àqueles tempos".
Bolsa eleição sem qualificação do gasto é tunga
Em sessão que entrou pela madrugada desta quinta-feira, a comissão que trata da pseudoreforma política aprovou seu texto-base. E já iniciou a análise das emendas. Tudo ainda pode mudar, exceto um ponto: o Bolsa Eleição, fundo criado para financiar campanhas eleitorais com verba pública, é intocável. Para 2018, reservaram-se R$ 3,6 bilhões. A coisa foi batizada de Fundo Especial de Financiamento da Democracia. Jamais foi inventado nome mais bonito para tunga.
No fundo, no fundo a única coisa que interessa aos congressistas é o fundo. Desde que o Supremo Tribunal Federal proibiu as contribuições eleitorais de empresas, a turma não pensa noutra coisa. A medida é um avanço. Supostos representantes do povo avançam sobre o bolso de contribuintes que não se consideram representados. Fazem isso sem incluir no debate meio quilo de ideias sobre o barateamento das campanhas. Derramam dinheiro limpinho numa poça de lama.
Relator da proposta, o petista Vicente Cândido suprimiu do texto até as regras sobre a divisão do dinheiro conforme o cargo em disputa. Por ora, está entendido que a cúpula dos partidos poderá ratear a grana como bem entender. Num instante em que o governo ameaça a plateia com o aumento de impostos, os parlamentares criaram para si uma forma graciosa de gastar dinheiro público como se fosse dinheiro grátis.
Pela proposta, o Congresso não precisará quebrar a cabeça para remanejar verbas do Orçamento da União. Decidiu-se escrever na Constituição que os bilhões eleitorais poderão estourar o teto de gastos, convertendo-se em déficit público. A divisão do bolo entre os partidos será definida noutro projeto. Nenhuma palavra sobre a imposição de limites à marquetagem milionária que vende candidatos como sabonetes. Nada sobre a reformulação da propaganda-espetáculo. Nem sinal de mecanismos de fiscalização e punição para os lavajatistas que continuarem bebendo no caixa dois.
Enquanto os congressistas definiam os contornos da tunga, Michel Temer discutia com a equipe econômica, do outro lado da Praça dos Três Poderes, o estouro do déficit nas contas públicas. A meta fiscal para 2017, que previa um rombo de R$ 139 bilhões, vai virar uma cratera ainda maior. Coisa de R$ 158 bilhões. A meta para 2018, antes deficitária em 129 bilhões, deve virar um abismo de R$ 170 bilhões.
É contra esse pano de fundo que os congressistas informam aos contribuintes que ninguém deve fazer muitas perguntas sobre a mordida eleitoral. Pague o Imposto de Renda e todas as outras tributações em dia. E vê se não chateia.
No fundo, no fundo a única coisa que interessa aos congressistas é o fundo. Desde que o Supremo Tribunal Federal proibiu as contribuições eleitorais de empresas, a turma não pensa noutra coisa. A medida é um avanço. Supostos representantes do povo avançam sobre o bolso de contribuintes que não se consideram representados. Fazem isso sem incluir no debate meio quilo de ideias sobre o barateamento das campanhas. Derramam dinheiro limpinho numa poça de lama.
Pela proposta, o Congresso não precisará quebrar a cabeça para remanejar verbas do Orçamento da União. Decidiu-se escrever na Constituição que os bilhões eleitorais poderão estourar o teto de gastos, convertendo-se em déficit público. A divisão do bolo entre os partidos será definida noutro projeto. Nenhuma palavra sobre a imposição de limites à marquetagem milionária que vende candidatos como sabonetes. Nada sobre a reformulação da propaganda-espetáculo. Nem sinal de mecanismos de fiscalização e punição para os lavajatistas que continuarem bebendo no caixa dois.
Enquanto os congressistas definiam os contornos da tunga, Michel Temer discutia com a equipe econômica, do outro lado da Praça dos Três Poderes, o estouro do déficit nas contas públicas. A meta fiscal para 2017, que previa um rombo de R$ 139 bilhões, vai virar uma cratera ainda maior. Coisa de R$ 158 bilhões. A meta para 2018, antes deficitária em 129 bilhões, deve virar um abismo de R$ 170 bilhões.
É contra esse pano de fundo que os congressistas informam aos contribuintes que ninguém deve fazer muitas perguntas sobre a mordida eleitoral. Pague o Imposto de Renda e todas as outras tributações em dia. E vê se não chateia.
Desafio descomunal para que tudo não acabe numa vitória de Pirro
O ministro Luís Roberto Barroso, no dia seguinte à decisão da Câmara Federal de não aceitar, para que prosperasse no STF, a denúncia do procurador geral República, Rodrigo Janot, contra o presidente Temer, disse o seguinte: “A operação abafa é uma realidade visível e ostensiva no Brasil de hoje. Há muita resistência às mudanças que precisam ser feitas. Há os que não querem ser punidos, e há um lote pior – os que não querem ficar honestos nem daqui pra frente. Estas pessoas têm aliados em toda parte, nos altos escalões da República, na imprensa e nos lugares onde a gente nem imagina”, detalhou o ministro.
A advertência de Luís Roberto Barroso tem o pé na realidade, mas precisa ser bem explicada. Os “altos escalões da República” estariam no STF? O Executivo e o Legislativo já estão devastados por inúmeras denúncias. Sobre a imprensa, o que se vê é, exatamente, o contrário. Ela não tem dado trégua a nenhum investigado.
Já disse mais de uma vez e volto a dizer agora: para o bem do país, num gesto de grandeza do presidente Temer, o melhor teria sido sua renúncia. Como isso, por meio de declarações teimosas do próprio, verificou-se absolutamente impossível, pergunto-lhe, leitor: a aceitação da denúncia (precária, como dizem alguns juristas), para que fosse processado agora, teria sido o melhor caminho? Principalmente quando se sabe que, em 2018, teremos, finalmente, eleições diretas?
O regime democrático tem suas contradições. Elas são, todavia, sua essência. A crítica ao presidente de que saiu vitorioso na Câmara só porque usou meios deploráveis (a liberação de emendas a parlamentares e a exoneração de ministros para votar) até que procede. Mas uma vitória política – e essa foi política –, se dependesse dos “virtuosos”, jamais ocorreria. A presidente Dilma, quando tentou livrar-se do impeachment, não fez a mesma coisa? Por que, então, a condenação do presidente pela oposição, se esta aceitou, quando a botina apertava-lhe o calo, o mesmo jogo? Não é mais ou menos isso o que ocorre em quase todos os Parlamentos do mundo?
O mal, claro, não pode estar no regime democrático.
Mas a piada do ano está no que disse Joesley Batista, que assistiu à sessão da Câmara em companhia de subordinados: “O dia 2 de agosto ficará marcado como o dia da vergonha”. Não é equiparável, mas também merece pelo menos citação o que disse à imprensa Rodrigo Janot depois da não aceitação da denúncia: “A Câmara é a Câmara, o Ministério Público é o Ministério Público, o Judiciário é o Judiciário”.
Que se cuide o presidente Temer! Chumbo grosso ainda surgirá por aí por meio da PGR. Sua situação ainda poderá piorar. O desafio que tem pela frente é descomunal. Ou o enfrenta e ajuda o país a sair dessa terrível crise política e econômica, por meio de reformas imediatas, ou, então, espera sentado pelo pior, que com certeza virá.
Já a crise ética, mesmo com a reforma política, só será mitigada com a educação, no longo prazo. Até porque ela não botará fim a nosso Estado mastodôntico, que esconde todos os nossos males.
O homem, leitor, foi feito de barro...
A advertência de Luís Roberto Barroso tem o pé na realidade, mas precisa ser bem explicada. Os “altos escalões da República” estariam no STF? O Executivo e o Legislativo já estão devastados por inúmeras denúncias. Sobre a imprensa, o que se vê é, exatamente, o contrário. Ela não tem dado trégua a nenhum investigado.
A crise ética só será mitigada com a educação, no longo prazo. Até porque não botará fim a nosso Estado mastodôntico, que esconde todos os nossos malesMas voltemos à votação na Câmara na semana passada. Votaram pela não aceitação da denúncia 263 deputados; pela aceitação, 227. As 21 ausências e abstenções favoreceram o presidente. E ainda ficou uma suspeita no ar: quando a apuração atingiu o número 172, de que necessitava o governo, alguns parlamentares, para fazer média com a opinião pública, votaram a favor da aceitação da denúncia.
Já disse mais de uma vez e volto a dizer agora: para o bem do país, num gesto de grandeza do presidente Temer, o melhor teria sido sua renúncia. Como isso, por meio de declarações teimosas do próprio, verificou-se absolutamente impossível, pergunto-lhe, leitor: a aceitação da denúncia (precária, como dizem alguns juristas), para que fosse processado agora, teria sido o melhor caminho? Principalmente quando se sabe que, em 2018, teremos, finalmente, eleições diretas?
O regime democrático tem suas contradições. Elas são, todavia, sua essência. A crítica ao presidente de que saiu vitorioso na Câmara só porque usou meios deploráveis (a liberação de emendas a parlamentares e a exoneração de ministros para votar) até que procede. Mas uma vitória política – e essa foi política –, se dependesse dos “virtuosos”, jamais ocorreria. A presidente Dilma, quando tentou livrar-se do impeachment, não fez a mesma coisa? Por que, então, a condenação do presidente pela oposição, se esta aceitou, quando a botina apertava-lhe o calo, o mesmo jogo? Não é mais ou menos isso o que ocorre em quase todos os Parlamentos do mundo?
O mal, claro, não pode estar no regime democrático.
Mas a piada do ano está no que disse Joesley Batista, que assistiu à sessão da Câmara em companhia de subordinados: “O dia 2 de agosto ficará marcado como o dia da vergonha”. Não é equiparável, mas também merece pelo menos citação o que disse à imprensa Rodrigo Janot depois da não aceitação da denúncia: “A Câmara é a Câmara, o Ministério Público é o Ministério Público, o Judiciário é o Judiciário”.
Que se cuide o presidente Temer! Chumbo grosso ainda surgirá por aí por meio da PGR. Sua situação ainda poderá piorar. O desafio que tem pela frente é descomunal. Ou o enfrenta e ajuda o país a sair dessa terrível crise política e econômica, por meio de reformas imediatas, ou, então, espera sentado pelo pior, que com certeza virá.
Já a crise ética, mesmo com a reforma política, só será mitigada com a educação, no longo prazo. Até porque ela não botará fim a nosso Estado mastodôntico, que esconde todos os nossos males.
O homem, leitor, foi feito de barro...
Samarco pagou só 1% das multas ambientais por tragédia de Mariana
A tragédia de Mariana, que deixou 19 mortos e um rastro de lama e destruição ao longo de 600 quilômetros entre Minas Gerais e Espírito Santo, completará dois anos em novembro. Mas, até agora, as principais multas impostas pelos órgãos ambientais dos governos federal e dos dois Estados afetados à mineradora Samarco, dona da barragem que se rompeu, ainda não foram pagas. Das 68 penalidades, que totalizam quase 552 milhões de reais, 67 estão em fase de recurso. Apenas uma, parcelada em 59 vezes, começou a ser quitada: o valor corresponde a 1% do total.
Levantamento do EL PAÍS junto ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) aponta que o órgão federal aplicou 24 autos de infração à mineradora por motivos ligados ao rompimento da barragem de Fundão, em Mariana. A Samarco recorreu de todos: 22 ainda estão na primeira instância administrativa do órgão e outros dois na segunda; se perder nas duas instâncias, a empresa ainda pode recorrer à Justiça, somando suas penalidades à longa lista de multas do Ibama ainda não pagas devido ao grande número de recursos disponíveis.
Segundo o Ibama, o total de penalidades aplicadas pelo órgão federal à Samarco totaliza 344,85 milhões de reais. A última delas é de fevereiro deste ano, com data de vencimento em março, segundo o auto de infração, que explica que a penalidade se deve ao fato de a mineradora deixar de atender a exigências legais após ser notificada pelas autoridades. Foi a quarta multa aplicada em 2017 relacionada ao rompimento da barragem, por situações que incluem, por exemplo, a entrega em desconformidade do que foi fixado pelo Ibama em um programa de busca e resgate de fauna afetada pela lama.
A situação não é diferente nos órgãos ambientais estaduais, que aplicam sanções adicionais às do Ibama. Dados da Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (SEMAD) de Minas Gerais apontam que desde o desastre foram aplicadas 38 multas à mineradora, totalizando 205,86 milhões de reais. Destas, 37 estão em fase de recurso. Só uma, a primeira, aplicada logo em novembro de 2015 e chamada pelo órgão de "multão" por se referir ao rompimento da barragem em si, começou a ser paga. O valor original era de 112,7 milhões, que acabou atualizado para 127,6 milhões. A Samarco parcelou a dívida em uma entrada de 6,38 milhões —o único valor pago do total das multas aplicadas pelos dois órgãos até agora— e outras 59 parcelas que, em média, custarão dois milhões de reais cada. Apenas para efeito de comparação, o lucro líquido de uma das donas da mineradora, a Vale, foi de 7,89 bilhões de reais nos três primeiros meses deste ano, um valor 25% maior que o mesmo período de 2016.
No Espírito Santo, todas as seis multas aplicadas pelo Governo estão em fase de recurso. Elas totalizam cerca de 1,25 milhão de reais, segundo o secretário de Meio Ambiente, Aladim Cerqueira. "Nenhuma até agora foi paga. A empresa entrou com recurso. Essa questão dos prazos [para o pagamento de multas] é algo estrutural, de muito tempo. Reconhecemos que temos que melhorar o sistema e estamos investindo nisso", afirma ele, que aponta processos na secretaria que estão tramitando há cinco anos. Ele ressalta, entretanto, que apesar da demora, as empresas multadas costumam sanar a situação flagrada. No caso da Samarco, ressalta ele, foi feito um acordo para que sejam implementados programas para diminuir os danos provocados.
A Samarco afirma que recorre das multas por entender que "há aspectos técnicos e jurídicos nas decisões que precisam ser reavaliados e, por isso, aguarda a decisão administrativa das defesas apresentadas". A empresa afirmou, ainda, que em 2016 aplicou dois bilhões de reais nas ações de reparação e compensação assumidas em um Termo de Transação de Ajustamento de Conduta (TTAC), firmado em 2016 com os governos federal, de Minas Gerais e do Espírito Santo. "Outros investimentos continuam sendo feitos pela Fundação Renova, entidade sem fins lucrativos que assumiu em agosto de 2016 a responsabilidade de implementar todos os programas do TTAC".
Levantamento do EL PAÍS junto ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) aponta que o órgão federal aplicou 24 autos de infração à mineradora por motivos ligados ao rompimento da barragem de Fundão, em Mariana. A Samarco recorreu de todos: 22 ainda estão na primeira instância administrativa do órgão e outros dois na segunda; se perder nas duas instâncias, a empresa ainda pode recorrer à Justiça, somando suas penalidades à longa lista de multas do Ibama ainda não pagas devido ao grande número de recursos disponíveis.
Segundo o Ibama, o total de penalidades aplicadas pelo órgão federal à Samarco totaliza 344,85 milhões de reais. A última delas é de fevereiro deste ano, com data de vencimento em março, segundo o auto de infração, que explica que a penalidade se deve ao fato de a mineradora deixar de atender a exigências legais após ser notificada pelas autoridades. Foi a quarta multa aplicada em 2017 relacionada ao rompimento da barragem, por situações que incluem, por exemplo, a entrega em desconformidade do que foi fixado pelo Ibama em um programa de busca e resgate de fauna afetada pela lama.
A situação não é diferente nos órgãos ambientais estaduais, que aplicam sanções adicionais às do Ibama. Dados da Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (SEMAD) de Minas Gerais apontam que desde o desastre foram aplicadas 38 multas à mineradora, totalizando 205,86 milhões de reais. Destas, 37 estão em fase de recurso. Só uma, a primeira, aplicada logo em novembro de 2015 e chamada pelo órgão de "multão" por se referir ao rompimento da barragem em si, começou a ser paga. O valor original era de 112,7 milhões, que acabou atualizado para 127,6 milhões. A Samarco parcelou a dívida em uma entrada de 6,38 milhões —o único valor pago do total das multas aplicadas pelos dois órgãos até agora— e outras 59 parcelas que, em média, custarão dois milhões de reais cada. Apenas para efeito de comparação, o lucro líquido de uma das donas da mineradora, a Vale, foi de 7,89 bilhões de reais nos três primeiros meses deste ano, um valor 25% maior que o mesmo período de 2016.
No Espírito Santo, todas as seis multas aplicadas pelo Governo estão em fase de recurso. Elas totalizam cerca de 1,25 milhão de reais, segundo o secretário de Meio Ambiente, Aladim Cerqueira. "Nenhuma até agora foi paga. A empresa entrou com recurso. Essa questão dos prazos [para o pagamento de multas] é algo estrutural, de muito tempo. Reconhecemos que temos que melhorar o sistema e estamos investindo nisso", afirma ele, que aponta processos na secretaria que estão tramitando há cinco anos. Ele ressalta, entretanto, que apesar da demora, as empresas multadas costumam sanar a situação flagrada. No caso da Samarco, ressalta ele, foi feito um acordo para que sejam implementados programas para diminuir os danos provocados.
A Samarco afirma que recorre das multas por entender que "há aspectos técnicos e jurídicos nas decisões que precisam ser reavaliados e, por isso, aguarda a decisão administrativa das defesas apresentadas". A empresa afirmou, ainda, que em 2016 aplicou dois bilhões de reais nas ações de reparação e compensação assumidas em um Termo de Transação de Ajustamento de Conduta (TTAC), firmado em 2016 com os governos federal, de Minas Gerais e do Espírito Santo. "Outros investimentos continuam sendo feitos pela Fundação Renova, entidade sem fins lucrativos que assumiu em agosto de 2016 a responsabilidade de implementar todos os programas do TTAC".
Notícia dos nacirema
Passei este fim de julho entre os nacirema — aquela assombrosa tribo situada entre os ameríndios cree do Canadá e os yaqui do México. Estive entre eles muitas vezes, mas a imensa variedade de suas feiras permanentes — onde encontro tudo que preciso e muito mais do que pensei em precisar — ainda me assombra.
Um amigo recebeu-me e, no interior de sua enorme tenda, tive a grata surpresa de encontrar Dick Moneygrand, meu querido professor, de cuja boca — aliás — ouvi o nome “nacirema”, pronunciado não como uma portentosa nação, mas como um feixe de costumes. Lembro que muitos imitam os costumes políticos aparentemente fáceis dos nacirema. Já houve um tempo no qual o mundo se dividia entre eles e os sossur do Leste.
Um mito afirma que os nacirema surgiram no tempo em que animais e homens viviam juntos. Daí a sua obsessão pela igualdade e pela austeridade. Entre eles era terminantemente proibida a ostentação que diferenciava. Todos eram vistos e tratados por “você”. Cada nacirema era concebido como livre das amarras de suas relações, as quais jamais deveriam ser utilizadas na vida pública.
Os nacirema ignoravam — vejam só — algo como o nosso apadrinhamento e a nossa velha e boa malandragem. Sua cosmologia abominava ambiguidades, dilemas e ambivalências. Donde a sua aversão à mentira, à burla, ao fingimento, à dissimulação e ao “mais ou menos” — normas que segui com muita dificuldade.
Tais escolhas resultaram numa incessante busca de racionalidade e utilitarismo. Lá, tudo é ordenado, o que faz com que imprevistos sejam indesejáveis. Bruxos especializados em prever o futuro têm um enorme prestígio, de modo que a igualdade e a austeridade acabaram criando coisas não previstas, como uma notável riqueza e inúmeras diferenciações que os nacirema se esforçam em sanar. Foi assim que os austeros, econômicos e racionais acumularam muita riqueza. A modéstia os levou ao uso parcimonioso dos recursos econômicos e à igualdade radical — eles proibiram a escravidão e a servidão — e fez com que a utilidade se tornasse um dado substancial de sua sociedade. Ademais, isso engendrou segregação racial.
Sem criados, jardineiros, babás, cozinheiros, lavadeiras e, acima de tudo, escravos, secretários, ajudantes e empregados domésticos, os nacirema desenvolveram uma imensa “cultura material” e inventaram uma infinidade de aparelhos, artefatos, bugigangas e maquinas — alguns dos quais se difundiram pelas tribos vizinhas, promovendo reviravoltas em seus cotidianos. Quando falam disso, os nacirema citam orgulhosamente a latrina com descarga e a carroça sem cavalos.
Um outro mito relata como máquinas substituíram os homens que eram máquinas. Mas a interdependência entre pessoas e máquinas transformou sua vida social, e hoje os nacirema se preocupam com o que chamam de “mecanização da vida”, pois as máquinas quebram e deixam de funcionar, os humanos engolem misérias e iniquidades.
Peço desculpa se gastei tempo nessa pequena introdução a esse grande povo, cujos rituais de limpeza corporal chamaram atenção do antropologista Horace Miner, que os descreveu com irônica precisão num ensaio publicado em 1956. A ideia de que o corpo é um problema percorre toda área cultural desta tribo. Num certo sentido, o trabalho de Miner é premonitório quando fala da compulsão para com a limpeza da boca — essa cavidade gulosa e falante que a abundância e o individualismo extremo dos nacirema acabou por transformar no portal de corpos consumidores de uma dieta abundante, responsável por uma população obesa ao ponto da deficiência física.
A oralidade dos nacirema chama atenção. Em todos os seus rituais de passagem existe um juramento ou declaração verbal. Dizer a verdade ou mentira pela própria boca é um costume impossível em certas culturas nas quais — como é o nosso caso — a assinatura num livro de posse e um diploma (ou seja, a mão alfabetizada e promotora de distinção) são o centro de ritos públicos.
Estávamos trocando essas mal arrumadas ideias quando soubemos que um compatriota havia sofrido “bullying moral” por parte do seu senhorio, que, sem aviso prévio, o proibiu de usar o endereço da casa que havia alugado para receber sua correspondência.
A ruptura do direito à correspondência é sagrada entre os nacirema e os civilizados. O que também nos surpreendeu nesse abuso foi descobrir que o senhorio é negro.
Eis um exemplo de como situações engendram desigualdade e opressão. De senhorio a opressor e criador de uma ficção legal injusta, basta um passo. A igualdade não nos livra da desigualdade, tal como a liberdade não extingue a censura. A questão não é ser isso ou aquilo, pois, como me ensinou um velho barbado faz tempo, é a situação — a sociedade — que produz a “essência” e a consciência, não o contrário.
Roberto DaMatta
Um amigo recebeu-me e, no interior de sua enorme tenda, tive a grata surpresa de encontrar Dick Moneygrand, meu querido professor, de cuja boca — aliás — ouvi o nome “nacirema”, pronunciado não como uma portentosa nação, mas como um feixe de costumes. Lembro que muitos imitam os costumes políticos aparentemente fáceis dos nacirema. Já houve um tempo no qual o mundo se dividia entre eles e os sossur do Leste.
Um mito afirma que os nacirema surgiram no tempo em que animais e homens viviam juntos. Daí a sua obsessão pela igualdade e pela austeridade. Entre eles era terminantemente proibida a ostentação que diferenciava. Todos eram vistos e tratados por “você”. Cada nacirema era concebido como livre das amarras de suas relações, as quais jamais deveriam ser utilizadas na vida pública.
Os nacirema ignoravam — vejam só — algo como o nosso apadrinhamento e a nossa velha e boa malandragem. Sua cosmologia abominava ambiguidades, dilemas e ambivalências. Donde a sua aversão à mentira, à burla, ao fingimento, à dissimulação e ao “mais ou menos” — normas que segui com muita dificuldade.
Tais escolhas resultaram numa incessante busca de racionalidade e utilitarismo. Lá, tudo é ordenado, o que faz com que imprevistos sejam indesejáveis. Bruxos especializados em prever o futuro têm um enorme prestígio, de modo que a igualdade e a austeridade acabaram criando coisas não previstas, como uma notável riqueza e inúmeras diferenciações que os nacirema se esforçam em sanar. Foi assim que os austeros, econômicos e racionais acumularam muita riqueza. A modéstia os levou ao uso parcimonioso dos recursos econômicos e à igualdade radical — eles proibiram a escravidão e a servidão — e fez com que a utilidade se tornasse um dado substancial de sua sociedade. Ademais, isso engendrou segregação racial.
Sem criados, jardineiros, babás, cozinheiros, lavadeiras e, acima de tudo, escravos, secretários, ajudantes e empregados domésticos, os nacirema desenvolveram uma imensa “cultura material” e inventaram uma infinidade de aparelhos, artefatos, bugigangas e maquinas — alguns dos quais se difundiram pelas tribos vizinhas, promovendo reviravoltas em seus cotidianos. Quando falam disso, os nacirema citam orgulhosamente a latrina com descarga e a carroça sem cavalos.
Um outro mito relata como máquinas substituíram os homens que eram máquinas. Mas a interdependência entre pessoas e máquinas transformou sua vida social, e hoje os nacirema se preocupam com o que chamam de “mecanização da vida”, pois as máquinas quebram e deixam de funcionar, os humanos engolem misérias e iniquidades.
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Peço desculpa se gastei tempo nessa pequena introdução a esse grande povo, cujos rituais de limpeza corporal chamaram atenção do antropologista Horace Miner, que os descreveu com irônica precisão num ensaio publicado em 1956. A ideia de que o corpo é um problema percorre toda área cultural desta tribo. Num certo sentido, o trabalho de Miner é premonitório quando fala da compulsão para com a limpeza da boca — essa cavidade gulosa e falante que a abundância e o individualismo extremo dos nacirema acabou por transformar no portal de corpos consumidores de uma dieta abundante, responsável por uma população obesa ao ponto da deficiência física.
A oralidade dos nacirema chama atenção. Em todos os seus rituais de passagem existe um juramento ou declaração verbal. Dizer a verdade ou mentira pela própria boca é um costume impossível em certas culturas nas quais — como é o nosso caso — a assinatura num livro de posse e um diploma (ou seja, a mão alfabetizada e promotora de distinção) são o centro de ritos públicos.
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Estávamos trocando essas mal arrumadas ideias quando soubemos que um compatriota havia sofrido “bullying moral” por parte do seu senhorio, que, sem aviso prévio, o proibiu de usar o endereço da casa que havia alugado para receber sua correspondência.
A ruptura do direito à correspondência é sagrada entre os nacirema e os civilizados. O que também nos surpreendeu nesse abuso foi descobrir que o senhorio é negro.
Eis um exemplo de como situações engendram desigualdade e opressão. De senhorio a opressor e criador de uma ficção legal injusta, basta um passo. A igualdade não nos livra da desigualdade, tal como a liberdade não extingue a censura. A questão não é ser isso ou aquilo, pois, como me ensinou um velho barbado faz tempo, é a situação — a sociedade — que produz a “essência” e a consciência, não o contrário.
Roberto DaMatta
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