Um amigo recebeu-me e, no interior de sua enorme tenda, tive a grata surpresa de encontrar Dick Moneygrand, meu querido professor, de cuja boca — aliás — ouvi o nome “nacirema”, pronunciado não como uma portentosa nação, mas como um feixe de costumes. Lembro que muitos imitam os costumes políticos aparentemente fáceis dos nacirema. Já houve um tempo no qual o mundo se dividia entre eles e os sossur do Leste.
Um mito afirma que os nacirema surgiram no tempo em que animais e homens viviam juntos. Daí a sua obsessão pela igualdade e pela austeridade. Entre eles era terminantemente proibida a ostentação que diferenciava. Todos eram vistos e tratados por “você”. Cada nacirema era concebido como livre das amarras de suas relações, as quais jamais deveriam ser utilizadas na vida pública.
Os nacirema ignoravam — vejam só — algo como o nosso apadrinhamento e a nossa velha e boa malandragem. Sua cosmologia abominava ambiguidades, dilemas e ambivalências. Donde a sua aversão à mentira, à burla, ao fingimento, à dissimulação e ao “mais ou menos” — normas que segui com muita dificuldade.
Tais escolhas resultaram numa incessante busca de racionalidade e utilitarismo. Lá, tudo é ordenado, o que faz com que imprevistos sejam indesejáveis. Bruxos especializados em prever o futuro têm um enorme prestígio, de modo que a igualdade e a austeridade acabaram criando coisas não previstas, como uma notável riqueza e inúmeras diferenciações que os nacirema se esforçam em sanar. Foi assim que os austeros, econômicos e racionais acumularam muita riqueza. A modéstia os levou ao uso parcimonioso dos recursos econômicos e à igualdade radical — eles proibiram a escravidão e a servidão — e fez com que a utilidade se tornasse um dado substancial de sua sociedade. Ademais, isso engendrou segregação racial.
Sem criados, jardineiros, babás, cozinheiros, lavadeiras e, acima de tudo, escravos, secretários, ajudantes e empregados domésticos, os nacirema desenvolveram uma imensa “cultura material” e inventaram uma infinidade de aparelhos, artefatos, bugigangas e maquinas — alguns dos quais se difundiram pelas tribos vizinhas, promovendo reviravoltas em seus cotidianos. Quando falam disso, os nacirema citam orgulhosamente a latrina com descarga e a carroça sem cavalos.
Um outro mito relata como máquinas substituíram os homens que eram máquinas. Mas a interdependência entre pessoas e máquinas transformou sua vida social, e hoje os nacirema se preocupam com o que chamam de “mecanização da vida”, pois as máquinas quebram e deixam de funcionar, os humanos engolem misérias e iniquidades.
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Peço desculpa se gastei tempo nessa pequena introdução a esse grande povo, cujos rituais de limpeza corporal chamaram atenção do antropologista Horace Miner, que os descreveu com irônica precisão num ensaio publicado em 1956. A ideia de que o corpo é um problema percorre toda área cultural desta tribo. Num certo sentido, o trabalho de Miner é premonitório quando fala da compulsão para com a limpeza da boca — essa cavidade gulosa e falante que a abundância e o individualismo extremo dos nacirema acabou por transformar no portal de corpos consumidores de uma dieta abundante, responsável por uma população obesa ao ponto da deficiência física.
A oralidade dos nacirema chama atenção. Em todos os seus rituais de passagem existe um juramento ou declaração verbal. Dizer a verdade ou mentira pela própria boca é um costume impossível em certas culturas nas quais — como é o nosso caso — a assinatura num livro de posse e um diploma (ou seja, a mão alfabetizada e promotora de distinção) são o centro de ritos públicos.
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Estávamos trocando essas mal arrumadas ideias quando soubemos que um compatriota havia sofrido “bullying moral” por parte do seu senhorio, que, sem aviso prévio, o proibiu de usar o endereço da casa que havia alugado para receber sua correspondência.
A ruptura do direito à correspondência é sagrada entre os nacirema e os civilizados. O que também nos surpreendeu nesse abuso foi descobrir que o senhorio é negro.
Eis um exemplo de como situações engendram desigualdade e opressão. De senhorio a opressor e criador de uma ficção legal injusta, basta um passo. A igualdade não nos livra da desigualdade, tal como a liberdade não extingue a censura. A questão não é ser isso ou aquilo, pois, como me ensinou um velho barbado faz tempo, é a situação — a sociedade — que produz a “essência” e a consciência, não o contrário.
Roberto DaMatta
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