segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017

Ninguém é de ferro

Olho a tela com coração dividido. Confesso. As notícias vêm cobertas de imagens bonitas, em palco iluminado onde desfila um Carnaval sem fim. Olhando para frente ou para trás, os olhos só alcançam a realidade dura e perversa. Como se este estado de alegria fosse apenas um hiato, ou, talvez pior, uma ilha.

Difícil e inútil apontar a contradição entre a beleza da alegria, ainda que temporária, ou por vezes, simplesmente falsa. Seria muito melhor não pensar. Entregar-se a comemoração daquilo que a gente nem se lembra mais. Não consigo. Nunca localizei botão que desconecta o cérebro dos olhos.

O ser humano, quando possível, ignora as agruras do dia a dia. Não sem bons motivos. Mentiras doces confortam mais que verdades amargas. Por isso parar para festa seja talvez fundamental. Certamente a gente pode usar um pouco de alegria.

Infelizmente a 4ª feira chega logo. Implacável. Fria. E a gente é obrigado a olhar de frente as dificuldades. E enxergar é preciso. Enxergar não garante que os problemas resolvidos. Mas não se tem notícia de que qualquer problema tenha sido resolvido sem que tenha sido enxergado antes.

Talvez na 4ª feira à noite a gente possa voltar a se preocupar com o ambiente que ajudamos a criar. Entender como e porque a vida tem se resumido ao acompanhamento de crimes de toda espécie, violentos ou não.


E que desta contemplação surja o aprendizado e o reconhecimento da nossa história que levou a tudo isto. Somente aí é possível mudar. História não é passado. É presente. Foi ela que produziu cada um de nós. E gerou a maneira como nos relacionamos, somos tratados e tratamos aos outros. Cada um de nós carrega dentro de si a história, própria e coletiva. Cada um de nós tem a responsabilidade de entende-la e, quando necessário, moldar o futuro.

Daqui a pouco a tela vai mostrar imagens diferentes. Sem modelos, sem nudez, e sem beleza. Neste começo de ano já marcado por maldade insolente, é urgente entender e mudar a nação que gerou tanta iniquidade.

Mas pode esperar até a fim do carnaval. Ninguém é de ferro.

O bom e os maus ladrões na Lava Jato

Do alto do púlpito da Igreja da Misericórdia, em Lisboa, em 1655, desafiando a Inquisição, o Padre Antonio Vieira, o mais valente dos pregadores, desafiou o poderoso Império Português e seus maus ladrões:
– “Navegava Alexandre Magno em sua poderosa armada pelo Mar Eritreu a conquistar a Índia, e como fosse trazido à sua presença um pirata que por ali andava roubando os pescadores, repreendeu-o muito Alexandre de andar em tão mau ofício. Porém, ele que não era medroso nem lerdo, respondeu assim:
– Basta, senhor, que eu, porque roubo em uma barca, sou ladrão, e vós, porque roubais em uma armada, sois imperador? Assim é. O roubar pouco é culpa, o roubar muito é grandeza; o roubar com pouco poder faz os piratas, o roubar com muitos faz os Alexandres. Se o rei da Macedônia, ou qualquer outro, fizer o que fazem o ladrão e o pirata, o ladrão, o pirata e o rei, todos têm o mesmo lugar, e merecem o mesmo nome”.
“- Ladrão que furta para comer, não vai, nem leva ao inferno. Os que não só vão, mas levam, de quem eu trato, são outros ladrões, de maior calibre e de mais alta esfera; os quais debaixo do mesmo nome e do mesmo predicamento distingue muito bem São Basílio Magno. Diógenes, que tudo via com mais aguda vista que outro homem viu, que uma grande tropa de varas e ministros da justiça levava a enforcar uns ladrões e começou a bradar: – Lá vão os ladrões grandes a enforcar os pequenos. Ditosa Grécia que tinha tal pregador! Quantas vezes se viu Roma ir a enforcar um ladrão por ter furtado um carneiro, e no mesmo dia ser levado em triunfo um Cônsul ou ditador, por ter roubado uma província? E quantos ladrões teriam enforcado estes mesmos ladrões triunfantes?”


Quando, em 2011, o STJ (Superior Tribunal de Justiça), sob o pretexto de ilegalidade nas interceptações telefônicas, anulou a “Operação Castelo de Areia”, construiu um rastilho de pólvora que, três anos depois, explodiria: na Operação Lava Jato. Os brasileiros passariam a conhecer o maior escândalo de corrupção na vida política e econômica nacional, através da força-tarefa, do bravo juiz Sérgio Moro e do procurador Rodrigo Janot e seus infatigáveis companheiros.

Logo se articularam as aves de rapina e, na imprensa, no Congresso, nas OABs da vida, começaram a tentar fabricar leis para barrar a missão da Poli
cia, da Procuradoria, da Justiça. É hora de a Nação repetir as jornadas de 2013 e voltar às ruas para salvar a Lava Jato. O povo sabe quem são seus inimigos. E como encurralá-los. Mais do que nunca, a sociedade brasileira deve multiplicar seu apoio à força-tarefa da Lava Jato.

Os interesses poderosos contrariados, nessa fase crucial das decisões. estão escondidos, mas ainda não estão derrotados nem dormindo. Os missionários da corrupção sonham em paralisar com “chicanas” as conclusões da Lava Jato, especialmente os detentores dessa excrescência jurídica chamada “foro privilegiado” (detentores de mandatos), nos poderes Executivo e Legislativo.

Os envolvidos nos crimes de corrupção não podem alimentar o sonho da impunidade. Os brasileiros precisam acreditar que depois da Lava Jato, no Brasil, nada será como antes.

Sonhos de Carnaval

Nos recentes distúrbios no Espírito Santo, algo me impressionou especialmente: um carro de som rodando pelas ruas desertas tocando a música “Imagine”, de John Lennon, e sendo aplaudido das janelas pelos moradores amedrontados. Era uma conjuntura de violência e terror, e pelas ruas ecoava uma canção imaginando a paz entre todos os povos. Interessante a trajetória dessa música pelos tempos, como sobrevive como uma utopia nas ruas de Vitória.

E como a realidade se distancia do sonho de John Lennon e de milhões de pessoas no mundo. Difícil imaginar que não exista um inferno sob nós se da própria superfície da Síria chegam imagens tão trágicas. Difícil imaginar que não existam países com a explosão dos nacionalismos, a começar pelos Estados Unidos. A performance de Trump aumenta a instabilidade no mundo. Na semana passada, inventou um atentado terrorista na Suécia. A resposta dos suecos foi bem-humorada: um ex-primeiro-ministro perguntou a Trump pelo Twitter o que ele andava fumando. De qualquer maneira, uma informação dessas na boca de um presidente dos Estados Unidos trouxe desgaste à imagem da Suécia, um país que absorve os imigrantes com generosidade. Posso dizer com experiência própria, pois vivi lá, precisamente entre imigrantes. Ao mesmo tempo em que Trump mostra seu desequilíbrio, outros sinistros personagens se movem no cenário mundial.

Imagem relacionada

Assistimos ao vivo na tevê ao envenenamento de Kim Jong-nam, o irmão do ditador norte-coreano, Kim Jong-un. Vimos a mulher se aproximar, envolvê-lo com um lenço e, em seguida, o homem batendo com as mãos no rosto, aflito, tentando explicar o que houve. Morreu logo depois. O veneno presente no tempo dos Bórgias ainda é usado como arma pelo estado. O ex-espião russo Alexander Litvinenko foi assassinado com uma xícara de chá em Londres. No chá havia polônio 200, uma substância radioativa, usada em reatores nucleares. Alexander levou tempo para morrer. Os norte-coreanos usaram algo quase instantâneo.

Neste mundo mergulhado em violência é cada vez mais difícil ignorar o inferno. O articulista Ishaan Tharoor, do “Washington Post”, mostra que, ao mesmo tempo em que Trump mencionava um atentando inexistente na Suécia, um atentado real acontecia no Paquistão, matando 73 pessoas. Foi uma explosão realizada por um membro do Exército Islâmico contra um templo sufi. Os sufis são de um ramo do próprio islamismo. Intelectualizados, poéticos, com profetas peregrinos, sábios de pé no chão, os sufis são “tudo o que o Estado Islâmico odeia”, ele conclui. Os sufis são sonhadores e, ao lembrar do carro de som nas ruas de Vitória, pensei: os tempos não estão nada bons para os sonhadores. Como em certo momento, os tempos também não foram bons para o próprio John Lennon. Mas, ainda assim, a canção “Imagine” sobrevive porque, conforme se viu em Vitória, quanto maior a dificuldade mais temos vontade de cantá-la.

No Brasil, somos forçados a fazer uma espécie de corte nos sonhos, uma equivalência simbólica ao corte nos gastos. No entanto, é possível sonhar, sobretudo agora. É uma conversa de réveillon que agora tem um outro sentido prático: o ano começa realmente depois do carnaval. E 2017 será vital para se achar um novo caminho que nos tire dessa área de instabilidade, crise social, desemprego, violência crescente e sistema político vivendo num mundo paralelo. O ato inaugural do ano será a quebra do sigilo das delações de 77 funcionários da Odebrecht. Depois da tsunami, será possível recolher os cacos e reconstruir o sistema político.

A tsunami atinge vários países do continente. Mas é no Brasil que tudo está sendo investigado, foi aqui que o sistema de corrupção foi instalado e exportado como um produto nacional. Muitos temem que a sacudida no universo político comprometa a retomada econômica. Acho que são complementares. De que adianta chegar na frente com mais empregos, um pouco mais de dinheiro no bolso e com a mesma farsa política dominando o país? Existem muitos projetos em gestação, muitos sonhos na gaveta. Eles dependem de uma estabilidade que nos dê alguma confiança no país, como já tivemos lá atrás, com a conquista de eleições diretas para a presidência. Do governo Collor para cá constatamos que eleger um presidente pelo voto direto não é tudo. Será necessário construir uma atmosfera política em que o presidente possa se mover com decência. Uma atmosfera que reduza a distância abissal entre sociedade e representantes pagos por ela.

Tudo acaba na Quarta-feira de Cinzas. Mas tudo começa também depois dela. Nada melhor que circular o carro de som tocando “Imagine”, mesmo sabendo que a realidade vai contemplar apenas uma fração mínima de nossos sonhos.

Imagem do Dia

Watchman towers at the main entrance to Zion Canyon in Zion National Park, Utah • photo: Jeffrey Murray:
Parque Nacional de Zion, em Utah (EUA)

De mulatos e mulatas

A PPC – Polícia do Politicamente Correto – quer proibir, na base do delírio ideológico, um número razoável de palavras da língua portuguesa. É mais um modismo norte-americano que a universidade brasileira importou. E aqui se casa com outro modismo “made in USA” que também importamos: o racialismo.

Dessa lista de vocábulos, insistem em querer banir de nosso repertório lexical a bela palavra “mulata”, que sempre me faz lembrar de Clementina de Jesus cantando (“ensaboa, mulata, ensaboa”) e do admirável uso estético que dela fizeram os poetas de nossa música popular.

Resultado de imagem para mulata do samba desenho
Nesse papo furado acadêmico-ativista, duas coisas não deixam de chamar minha atenção. A primeiro é que eles evitam o masculino “mulato”, insistindo no feminino “mulata”. A razão é simples.

Quando dizemos “mulato”, não se tem como sobrepor, à cor, o estigma da violência sexual. Além disso, racialistas preferem esquecer o fato de que mulatas sofreram o diabo nas mãos de mulatos, longe de qualquer solidariedade racial.

A outra coisa é a insistência em fazer de tudo para que mulata venha de mula, quando existem outras hipóteses etimológicas até mais consistentes, como a que indica a origem árabe da palavra, mulad, significando cruzamento de árabe e preto. O sadomasoquismo é inseparável desse tipo de militância.

Mas o problema, na verdade, não é a palavra mulata. É a ideologia racialista norte-americana (criada originalmente pelos senhores escravistas-racistas do sul dos EUA), que, copiada pelos racialistas e a turma do "politicamente correto" no Brasil, decretou que mestiços não existem.

Os EUA são uma anomalia planetária: o único país do mundo que não reconhece oficialmente a existência de mestiços de branco e preto. Mas, em vez de fazerem uma reflexão sobre a esquisitice de serem únicos nesse quesito, eles acham que o resto do planeta é que está errado.

E querem (não raro, conseguem) impor seu ponto de vista ao mundo. É o movimento para absolutizar o absurdo binarismo ianque, a dicotomia racista, como se Camila Pitanga e Sônia Braga fossem ilusões de ótica.

Na base dessa ideologia racial que nosso ativismo acadêmico importou, o que está é o horror puritano à mistura. A mixofobia anglo-saxônica. Mas nem vem que não tem. Não queiram me obrigar a ver o mundo – e o povo brasileiro – pelas lentes racistas de uma ideologia senhorial-acadêmica incorporada pelo ativismo norte-americano.

Jamais entrarei na viagem dessa fantasia racista. E digo alto e bom som: viva o mulato! viva a mulata!

Uma Capital Verde

A capital da Eslovênia, com pouco mais do que 270 mil habitantes, foi reconhecida com este título graças aos esforços da prefeitura local que, nos últimos quinze anos, incrementou o transporte público e as ciclovias. Por outra parte aperfeiçoou o tratamento dos esgotos domésticos e corporativos e reforçou os cuidados com suas áreas verdes. Este ponto desperta meu interesse porque quando estive em Liubliana, conhecendo a região onde minha mãe nasceu, fiquei impressionado com seus parques.

O parque Tívoli, por exemplo, tem uma área de cinco milhões de metros quadrados e foi projetado pelo francês Jean Blanchard em 1813 e conta com várias edificações, como um castelo do século XVII, um lago de águas rasas, uma estufa com plantas tropicais e um jardim com uma coleção de 160 espécies de rosas. Há também o Jardim das Esculturas, algo que apaixona os eslovenos pela tradição nas artes plásticas.


Suas praças aparecem por todos os lados: à praça da República, à praça do Congresso e muitas outras complementam uma cidade de ruas e avenidas arborizadas onde pode-se tomar um café na calçada desfrutando da sombra de algum carvalho, de uma tília ou de uma cerejeira repleta de flores na primavera.

Ah, sim! Não posso deixar de citar o Jardim Botânico de Liubliana, com mais de duzentos anos de idade e uma coleção com 4.500 espécies, muitas endêmicas da Eslovênia. A instituição é membro da rede internacional Botanic Gardens Conservation International e coopera com mais de 270 jardins botânicos em todo o mundo.
Raul Canovas

A Quaresma de Janot

Como diria a canção, todo carnaval tem seu fim. Este ano, junto com a Quaresma, começa a contagem regressiva pela nova “lista do Janot”.

O procurador-geral da República e sua equipe trabalham diuturnamente na preparação dos inquéritos, denúncias e arquivamentos que serão pedidos, provavelmente em vários blocos, contra políticos a partir da megadelação premiada de 77 executivos, funcionários e ex-diretores da Odebrecht.

Como na primeira leva de inquéritos apresentada por Rodrigo Janot contra autoridades com foro privilegiado, em 2015, novamente os procuradores agrupam os depoimentos dos delatores ligados à empreiteira em fatos.

Cada fato deve corresponder a um pedido de procedimento, com vários políticos juntos, no Supremo Tribunal Federal. Assim, o mesmo político poderá ser alvo de mais de um pedido.

Resultado de imagem para rodrigo janot e as delações charge
Janot acredita que, ao agir dessa maneira, facilita o “caminho probatório” dos delitos narrados. Assim, cada fato será corroborado pela colaboração de apenas um ou de vários delatores.

O método de trabalho obriga a uma logística insana. Os depoimentos foram colocados num software que permite fazer buscas e cruzamentos por assuntos, nomes de políticos citados, delatores, datas etc.

Nas exaustivas reuniões para fechar o pacote de pedidos ao STF, não é raro um procurador se lembrar que esse fato narrado já aparecera em alguma delação anterior às da Odebrecht, o que obriga a novas pausas, outros cruzamentos e mais horas de trabalho. Os envolvidos na “operação Quaresma” de Janot garantem que logo após a Quarta-Feira de Cinzas devem começar a pipocar as providências do procurador-geral.

Uma das primeiras será pedir o levantamento do sigilo de uma fatia grande das delações da Odebrecht. Apenas aqueles depoimentos cuja publicidade pode levar à obstrução das investigações permanecerão em segredo.

Diferentemente de 2015, quando não denunciou ninguém de imediato, Janot deverá fazê-lo agora, pois o “arcabouço probatório” – com mais dois anos de investigações e os documentos fornecidos pelos delatores da Odebrecht – é muito mais sólido que o da primeira lista.

Da mesma forma, os procuradores devem propor o arquivamento de fatos imputados a políticos descritos como inconsistentes, laterais ou impossíveis de comprovar.

O rol de personagens citados pelos delatores da Odebrecht supera em muito a centena. Figuram ali, além de autoridades com foro, ex-prefeitos, ex-deputados, ex-governadores etc.

A nova lista do Janot, aqueles que serão objeto de alguma providência por parte do procurador-geral, será um pouco menor. Muitos nomes serão encaminhados para as instâncias inferiores sem ter a situação analisada pelo grupo de trabalho da PGR.

Há, no entanto, políticos que não têm mais foro no Supremo, mas serão incluídos pelo procurador nos procedimentos que pedirá na corte. Poderá ser o caso, por exemplo, dos ex-presidentes Lula e Dilma Rousseff, citados na delação de Marcelo Odebrecht.

Janot ainda estuda se pedirá a abertura de novos procedimentos contra eles ou se recomendará que as novas revelações sejam juntadas a processos já em curso – expediente, aliás, que será largamente usado no intrincado “Lego” que o Ministério Público monta a partir da mãe de todas as delações.

Paisagem brasileira

Cachoeira dos Cristais, Alto Paraíso de Goiás, Brasil.:
Cachoeira dos Cristais, Alto Paraíso de Goiás

O novo Collor

Mais uma vez, o prefeito João Dória Júnior procurou o governador Geraldo Alckmin para jurar que não é candidato a presidente da República, em 2018. Mentira ou precipitação? Contam-se nos dedos de uma só mão as vezes em que, na história da República, eram para valer as afirmações de presidentes da República que, quando candidatos, desmentiam suas pretensões.

Traduzindo: João Dória Júnior só não disputará o palácio do Planalto caso careça de popularidade, recursos e de um partido que o apoie. Quanto a concluir que dispõe de chances, é outra conversa. Recente pesquisa revelou ser o alcaide paulistano conhecido de 70% dos consultados, inclusive no Nordeste.

O que parece respaldar as referências a João Dória Júnior é o mesmo fenômeno que, guardadas as proporções, um dia alimentou a candidatura de Fernando Collor: a busca pelas elites conservadoras de um novo nome capaz de derrotar adversários desgastados, de um lado, e de outro quem parecia disposto a virar o país de cabeça para baixo sob acusações de implantar o socialismo e sucedâneos.

Os desgastados de hoje são o próprio Alckmin, Aécio Neves, José Serra, Ciro Gomes, Marina Silva e mais, classificados como ultrapassados políticos profissionais, à maneira do que foram em 1989 Aureliano Chaves, Ulisses Guimarães, Mário Covas, Paulo Maluf, Leonel Brizola e outros.

A “perigosa ameaça ideológica” de agora, em condições de revogar as linhas conservadoras e reacionárias, é o mesmo: o Lula, que perdeu para Collor mas, anos depois, elegeu-se contra Serra.

Dizem que a História só se repete como farsa, mas ressurge o vaticínio de Marx e de Lenin: a possibilidade de o segundo turno das eleições do ano que vem ferir-se entre João Dória Júnior e Lula.

Um, centralizando a esperança das elites financeiras e da parcela da classe média que se aferra ao modelo neoliberal. Outro, disposto a mudar as diretrizes agora impostas pelas reformas do governo Michel Temer. Claro que descontado o interregno em que o Lula e o PT já ocuparam o poder, fator capaz de gerar mudanças nas concepções atuais do eleitorado. Mas, de qualquer forma, a disputa poderá travar-se entre as duas forças históricas e conflitantes de sempre: conservadores e reformistas.

Entregaram o nosso ouro


consume... - (barcode)(suicide)(hanging)(noose)(capitalism):
As nações perderam influência sobre o curso das coisas e delegaram às forças da globalização todos os meios de orientação do mundo, do destino e da defesa contra todas as variedades do medo
Jacques Attali

Todos às ruas

Estamos gostando muito dessa brincadeira. Até porque é boa, barata, pode ser bem divertida e é essencialmente democrática. Social, colaborativa, associativa, participativa, diversificada. Estamos nos espalhando e nos esparramando pelas ruas e avenidas ora por tristezas, ora por alegrias, ora por reivindicações; e muitas, por birra. Vamos ocupar as ruas sambando e cantando a música que queremos que eles toquem

Muito impressionante esse novo comportamento nacional que aprendeu o caminho das ruas e avenidas para demonstrar o esplendor do seu povo e a firmeza de suas opiniões. Isso quer dizer muita coisa e não é só Carnaval. Nem só futebol. É preciso estar mais atento porque só vai crescer, só vai acontecer muitas e muitas vezes, pelos mais variados motivos. Poderão ser grupos grandes, mas algumas dezenas que se unam já estão causando as transformações.

Também não é só aqui – é no mundo. As pessoas se enfeitam, pegam suas fantasias, inventam roupas, costuram uniformes, pintam a cara, produzem plaquinhas onde trazem suas reivindicações, fazem suas bandeiras. Eram só grandes eventos que mobilizavam; agora não, as pessoas estão nas ruas no mesmo momento – pode ser até a posse de um presidente; do outro lado já se movem pedindo logo a sua derrubada, como vimos nos EUA.

Parece bem claro que estamos vivendo tempos de mudança e os mocorongos precisam se dar conta disso rápido sob o risco de ser atropelados pela turba que está tornando a opinião pública algo bem visível, contável e palpável. Estivemos acomodados tempo demais e agora o mundo inteiro procura novas estações, uma Primavera para chamar de sua. É uma rebeldia represada.

Isso requererá preparo. Físico, para quem participa: que não é brincadeira andar quilômetros, concentrar-se em pé durante horas, tirar fotos para mandar para todo o mundo, se livrar dos chatos, bêbados e inconvenientes que sempre surgem, dos empurrões, pisões e cotoveladas. Em alguns casos, some-se o stress de não ser roubado, e nem que batam sua carteira, e que a polícia seja para quem precisa da polícia.

Mais do que isso, vai requerer preparo e treinamento dos governos, dos mandachuvas que deveriam até fazer promessa para ficar bem longe de ser o alvo dos protestos, dos levantes populares. Requererá um novo sistema de segurança para as massas, requererá recursos, novos equipamentos e treinamento do pessoal. Aliás, precisará de bem mais pessoal.

Tá na moda. Ir para as ruas. E protestar. Chamar a atenção. Bater bumbo – que já não é mais hora de panela. Aqui no Brasil o atual governo parece não estar se dando conta de que está numa corda bamba toda rôta, super rôta, que tem muita gente sacudindo para ver se rompe. Não registra na cabeça que certo ou errado caiu mal na boca dos jovens e que estes não perderão nenhuma oportunidade que tiverem para esculhambá-los, além-PT. Aliás, esculhambar todos os governos, esferas, todas as formas de poder que puderem afrontar – uma vez que com eles não têm elos. Sem compromissos. Não sabem nem bem do que se trata. As notícias estão mal contadas.

Na era da informação digital está muito fácil criar grupos e grupos de maria-vai-com-as-outras. E todas irem para as ruas. Ninguém mais quer ideologias para viver.

O crescimento dos blocos nas ruas – inclusive na sisuda São Paulo – é sinal de que a Avenida Paulista e arredores terão um ano agitado com agenda cheia. Que vai ter bombas de efeito moral e de pimenta sendo acionadas contra pedras, pneus queimados, agências bancárias depenadas e ônibus em chamas. Que vai também ter muita classe média de volta para o asfalto se as medidas econômicas demorarem muito a fazer efeito e se não acabar esse desfile de larápios revelados à luz do dia com suas ideias estapafúrdias para o país.

Vamos todos gastar muita sola de sapato.

Marli Gonçalves

Uma morte anunciada que não aconteceu

Neste exato momento, em algum lugar do planeta alguém está digitando mais um texto sobre o inexorável declínio da democracia representativa. Os detalhes variam, mas os argumentos são os mesmos de sempre.

Na verdade, a morte da democracia liberal começou a ser anunciada antes mesmo de ela ser levada à pia batismal. No século 19, socialistas de variados matizes davam por assentado que a “democracia burguesa” se esborracharia quase sem ser notada. Como uma irrelevante “superestrutura”, ela sucumbiria no bojo da Revolução. Seria lembrada como um mero registro nas estatísticas da mortalidade infantil.

Nas primeiras décadas do século 20, o fascismo ascendente retomou – e robusteceu – o antigo vaticínio. A democracia estaria em estado terminal não porque o próprio capitalismo estivesse nas últimas, mas pela razão oposta: na era industrial, o avanço da economia de mercado provocaria uma forte elevação no nível dos conflitos entre o capital e o trabalho. Em tal cenário, a política do futuro exigiria o “Estado forte”, ou seja, ditaduras totalitárias, a exemplo das que despontavam na Itália e na União Soviética (URSS).

Nos anos 1930, no Brasil e de modo geral na América Latina, a democracia liberal não iria muito além da “tenra florzinha” a que se referiu Otávio Mangabeira. Os principais ensaístas e historiadores seguiam a mesma toada. Em seu clássico Raízes do Brasil, de 1936, Sérgio Buarque de Holanda advertiu que o parto de um Estado digno do nome seria sofrido. O rebento seria anêmico, pois nasceria sob o signo do passado colonial e cresceria pressionado pelas brutalidades próprias do capitalismo, que entre nós apenas começavam a se configurar.

Fato é, no entanto, que o retrospecto histórico não respalda a antiga ladainha. Antes da 2.ª Guerra, o número de democracias respeitáveis andava por 10 ou 12, se tanto – hoje estamos falando de 50 ou 60. Mesmo nas melhores, com exceção dos Estados Unidos e da Inglaterra, a parcela da população total habilitada a votar mal atingia 10%, ante cerca de 70% na época atual. As mulheres não votavam. Excetuando novamente os casos norte-americano e inglês, o Legislativo era impotente ante o Executivo. Autoridades legitimamente eleitas eram derrubadas sem a menor cerimônia.

Resultado de imagem para democracia ameaçada
Em que pese o pano de fundo acima esboçado, o que mais se ouve é que a democracia representativa está nos estertores. Tanto no Primeiro como no Terceiro Mundos, o que a cada 15 minutos se afirma é que o mundo caminha para formas autoritárias ou totalitárias de organização política. Ou para uma nebulosa “democracia direta”, como pretendem alguns sonhadores. E é certo, certíssimo, que motivos para pessimismo pipocam por todo lado. Nos Estados Unidos, a ascensão de Donald Trump produziu um fenômeno até há pouco impensável: a premonição de uma crise institucional capaz de romper o próprio regime democrático. Rússia, China, Cuba e Coreia do Norte conservam sua espessa sombra totalitária; mas quando exatamente, ao longo da História, esses países tiveram regimes democráticos? Sem esquecer a possível erosão da democracia pela corrupção e pela praga populista, das quais a Venezuela é um exemplo egrégio. No Brasil, a imensa trama descoberta na Petrobrás. Mas que aspecto devemos destacar: o fato de um cartel de empreiteiras ter desmoralizado quase todo o sistema partidário ou o surgimento, no sistema de Justiça, de lideranças enérgicas e de instrumentos de investigação eficazes?

O equívoco subjacente é perceptível. Quer-se imaginar que a democracia só será real quando a sociedade não tiver mais problemas para resolver, quando, na realidade, ela é a engrenagem mediante a qual a sociedade enfrenta os seus problemas e trata de equacioná-los pacificamente.

Inegavelmente, há uma malaise. Uma falta de convicção, ou uma debilitação generalizada da crença no valor da democracia. Não podemos subestimar o potencial deletério desse fato, mas atribuir-lhe a mesma força das engrenagens institucionais e econômicas da democracia liberal é, evidentemente, um equívoco. E aqui me refiro não apenas às engrenagens, por assim dizer, maduras, consolidadas, mas também daquelas que às vezes conseguimos surpreender in statu nascendi.

Vejam-se a propósito dois artigos publicados pela revista Foreign Affairs no exemplar de janeiro/fevereiro deste ano. Sempre arguto, o cientista político Joseph Nye, Jr., suscita a indagação tradicional: Will the Liberal Order Survive?. Mas Jieun Baek, uma jovem pesquisadora, faz o percurso inverso. Especializada no mais grotesco totalitarismo ainda existente, o da Coreia do Norte, ela descreve fraturas no casco do regime de Pyongyang.

Resumidamente, a história é a seguinte. Em 1994-1998, uma fome devastadora deixou um saldo de centenas de milhares de mortos. Incapaz de alimentar seu povo, o regime foi obrigado a tolerar os jangmadang, pequenos mercados informais nos quais as famílias compravam ou trocavam mercadorias. Esses mercados, escreve Jieun Baek, vieram para ficar: cresceram, diversificaram-se e se sofisticaram. Atualmente, é por meio deles, parcial ou totalmente, que a maioria (talvez 75%) da população se abastece. E uma grande parte dessa maioria – os jovens, principalmente – recorre a esse expediente para adquirir não apenas peças de vestuário ou alimentos. O que mais lhes interessa são eletrônicos contrabandeados, dos quais eles se valem para acessar produtos culturais do Ocidente. Não por acaso, nesse segmento da sociedade a ideologia martelada dia e noite pelo regime tende a se dissolver rapidamente.