Na verdade, a morte da democracia liberal começou a ser anunciada antes mesmo de ela ser levada à pia batismal. No século 19, socialistas de variados matizes davam por assentado que a “democracia burguesa” se esborracharia quase sem ser notada. Como uma irrelevante “superestrutura”, ela sucumbiria no bojo da Revolução. Seria lembrada como um mero registro nas estatísticas da mortalidade infantil.
Nas primeiras décadas do século 20, o fascismo ascendente retomou – e robusteceu – o antigo vaticínio. A democracia estaria em estado terminal não porque o próprio capitalismo estivesse nas últimas, mas pela razão oposta: na era industrial, o avanço da economia de mercado provocaria uma forte elevação no nível dos conflitos entre o capital e o trabalho. Em tal cenário, a política do futuro exigiria o “Estado forte”, ou seja, ditaduras totalitárias, a exemplo das que despontavam na Itália e na União Soviética (URSS).
Nos anos 1930, no Brasil e de modo geral na América Latina, a democracia liberal não iria muito além da “tenra florzinha” a que se referiu Otávio Mangabeira. Os principais ensaístas e historiadores seguiam a mesma toada. Em seu clássico Raízes do Brasil, de 1936, Sérgio Buarque de Holanda advertiu que o parto de um Estado digno do nome seria sofrido. O rebento seria anêmico, pois nasceria sob o signo do passado colonial e cresceria pressionado pelas brutalidades próprias do capitalismo, que entre nós apenas começavam a se configurar.
Fato é, no entanto, que o retrospecto histórico não respalda a antiga ladainha. Antes da 2.ª Guerra, o número de democracias respeitáveis andava por 10 ou 12, se tanto – hoje estamos falando de 50 ou 60. Mesmo nas melhores, com exceção dos Estados Unidos e da Inglaterra, a parcela da população total habilitada a votar mal atingia 10%, ante cerca de 70% na época atual. As mulheres não votavam. Excetuando novamente os casos norte-americano e inglês, o Legislativo era impotente ante o Executivo. Autoridades legitimamente eleitas eram derrubadas sem a menor cerimônia.
Em que pese o pano de fundo acima esboçado, o que mais se ouve é que a democracia representativa está nos estertores. Tanto no Primeiro como no Terceiro Mundos, o que a cada 15 minutos se afirma é que o mundo caminha para formas autoritárias ou totalitárias de organização política. Ou para uma nebulosa “democracia direta”, como pretendem alguns sonhadores. E é certo, certíssimo, que motivos para pessimismo pipocam por todo lado. Nos Estados Unidos, a ascensão de Donald Trump produziu um fenômeno até há pouco impensável: a premonição de uma crise institucional capaz de romper o próprio regime democrático. Rússia, China, Cuba e Coreia do Norte conservam sua espessa sombra totalitária; mas quando exatamente, ao longo da História, esses países tiveram regimes democráticos? Sem esquecer a possível erosão da democracia pela corrupção e pela praga populista, das quais a Venezuela é um exemplo egrégio. No Brasil, a imensa trama descoberta na Petrobrás. Mas que aspecto devemos destacar: o fato de um cartel de empreiteiras ter desmoralizado quase todo o sistema partidário ou o surgimento, no sistema de Justiça, de lideranças enérgicas e de instrumentos de investigação eficazes?
O equívoco subjacente é perceptível. Quer-se imaginar que a democracia só será real quando a sociedade não tiver mais problemas para resolver, quando, na realidade, ela é a engrenagem mediante a qual a sociedade enfrenta os seus problemas e trata de equacioná-los pacificamente.
Inegavelmente, há uma malaise. Uma falta de convicção, ou uma debilitação generalizada da crença no valor da democracia. Não podemos subestimar o potencial deletério desse fato, mas atribuir-lhe a mesma força das engrenagens institucionais e econômicas da democracia liberal é, evidentemente, um equívoco. E aqui me refiro não apenas às engrenagens, por assim dizer, maduras, consolidadas, mas também daquelas que às vezes conseguimos surpreender in statu nascendi.
Vejam-se a propósito dois artigos publicados pela revista Foreign Affairs no exemplar de janeiro/fevereiro deste ano. Sempre arguto, o cientista político Joseph Nye, Jr., suscita a indagação tradicional: Will the Liberal Order Survive?. Mas Jieun Baek, uma jovem pesquisadora, faz o percurso inverso. Especializada no mais grotesco totalitarismo ainda existente, o da Coreia do Norte, ela descreve fraturas no casco do regime de Pyongyang.
Resumidamente, a história é a seguinte. Em 1994-1998, uma fome devastadora deixou um saldo de centenas de milhares de mortos. Incapaz de alimentar seu povo, o regime foi obrigado a tolerar os jangmadang, pequenos mercados informais nos quais as famílias compravam ou trocavam mercadorias. Esses mercados, escreve Jieun Baek, vieram para ficar: cresceram, diversificaram-se e se sofisticaram. Atualmente, é por meio deles, parcial ou totalmente, que a maioria (talvez 75%) da população se abastece. E uma grande parte dessa maioria – os jovens, principalmente – recorre a esse expediente para adquirir não apenas peças de vestuário ou alimentos. O que mais lhes interessa são eletrônicos contrabandeados, dos quais eles se valem para acessar produtos culturais do Ocidente. Não por acaso, nesse segmento da sociedade a ideologia martelada dia e noite pelo regime tende a se dissolver rapidamente.
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