terça-feira, 26 de março de 2019

Papel político do presidente

O presidente da República sempre será o gerente da coalizão. Não basta entregar o projeto ao Congresso e agir como se agora a bola estivesse com os parlamentares. Não é papel dele intervir em decisões do Legislativo, mas tem que continuar defendendo o projeto que enviou. Articulação não é sinônimo de corrupção. Quando sugere isso, o presidente Jair Bolsonaro fortalece um pensamento perigoso que enfraquece a democracia.

Mais importante do que saber da última troca de farpas entre o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, e o presidente Jair Bolsonaro, ou noticiar que já há panos quentes de lado a lado, é entender a questão de fundo. Do que está se falando afinal de contas?


Tuítes à parte, quando Bolsonaro insinua que querem levá-lo à velha política ou ao destino de outros presidentes, ele está jogando mais fumaça na zona de nevoeiro que hoje se espalha perigosamente na política brasileira. Depois de tantas fases da Operação Lava-Jato, e tudo o que nos foi revelado, a opinião pública está traumatizada. E o caminho mais fácil é condenar a política como suja, velha, perniciosa e, por conseguinte, descartável. Quando o presidente confirma esse sentimento com suas frases ambíguas e suas perguntas com indiretas, ele está aumentando a rejeição aos políticos em geral, e não às práticas que o país quer ver encerradas.

Articular e negociar é da natureza da política. O que é preciso saber é com que moeda se negocia. O que gerou os casos de corrupção foi o uso da corrupção como moeda. A nomeação para cargos públicos de pessoas sem qualificação, e feita apenas para favorecer o político ou grupo que o indicou, o sobrepreço cobrado na obra e no contrato, as artimanhas para desviar dinheiro público para o caixa 2 eleitoral. Aliás, o caixa 2 nunca foi um crime solitário. É parte de outras ilegalidades. Não tem uma gravidade menor, como se diz com espantosa frequência.

Em qualquer país democrático, mas principalmente em um presidencialismo como o nosso, é forçoso negociar com o Congresso. E o presidente como o líder da coalizão tem que conversar insistentemente com sua base e com os outros partidos. A fragmentação aumentou muito nas últimas eleições. O partido do presidente tem a segunda maior bancada e apenas 52 deputados. No próprio PSL há seguidas demonstrações de resistência à reforma da Previdência. Bolsonaro não conseguiu unificar nem mesmo os deputados do próprio partido. Esta semana, em que oito ministros irão ao Congresso, é uma oportunidade. Mas o presidente jamais estará excluído desse esforço de convencimento, do trabalho de unir no mesmo objetivo o grupo que defenderá seu programa de governo no parlamento. É um equívoco a ideia, defendida por Bolsonaro, de que depois que o Executivo envia um projeto o trabalho se encerra, e a bola passa a ser do legislativo. A declaração mostra que ele não entendeu a natureza da função que exerce.

É errada também a ideia de que o líder da articulação do Executivo pode ser o presidente da Câmara dos Deputados. É isso que o deputado Rodrigo Maia quis dizer quando avisou que não se pode “terceirizar” a articulação. Maia tem poderes sobre a pauta, e sobre vários pontos da tramitação. Pode ajudar ou atrapalhar. Mas quem coordena as forças do governo, ou de eventuais aliados, na aprovação de uma reforma necessariamente é o próprio governo.

Há uma dificuldade extra neste momento que não estava no roteiro: a queda precoce da popularidade presidencial. Quando a popularidade cai, o presidente perde força de atração das suas bases e de outros grupos políticos. A exceção a essa regra foi o ex-presidente Temer, que conseguiu aprovar o teto de gastos e a reforma trabalhista, mesmo sendo o mais impopular dos presidentes desde a redemocratização. Mas aquele era um momento específico pós-impeachment. Jair Bolsonaro chegou ao pior nível de qualquer presidente neste período normalmente vivido como “lua de mel”.

O que o fez perder peso junto à opinião pública? O fato de que este é um governo que se afoga em copo d'água. O bate-boca do fim de semana com Maia foi apenas o caso mais recente. São muitas as crises fabricadas pelo próprio governo nestes poucos 84 dias. Na maioria das brigas, não havia uma questão importante em jogo. Com irrelevâncias, este governo vai queimando o precioso capital político do início de mandato.

Clichês, 'nova' e 'velha' politica fazem adeptos, mas nada significam

A política apropria-se de símbolos que, às vezes, significam nada. Deserto de ideias, campos vazios. Isso tem se dado com os termos “velha” e “nova política”.

A oferta de apoios no Congresso Nacional em troca de cargos e recursos públicos seria, por exemplo e a princípio, a expressão da “velha política”. Já sua negação, a “nova política”.

A força de clichês, que ocupam o imaginário do senso comum, faz adeptos e repetidores e amplia o fosso do desentendimento, mas na verdade expressam política nenhuma.

Claro, melhor seria se os apoios políticos se fundassem apenas em planos de governo e projetos de poder. Mas, a ocupação de espaços na máquina nem sempre é —ou não é necessariamente— ilegítima. A governabilidade pode, sim, corresponder à formação de coalizões e na participação de aliados nos diversos níveis de poder, conquanto existam projetos sólidos e acordos republicanos.

O mau não está na composição, mas na voracidade fisiológica que, na lógica competitiva do jogo político eleitoral, transforma-se em luta obsessiva por mais e mais cargos e emendas ao orçamento, loteamento de estatais. Apetites nunca saciados e feitos em nome de interesses particulares ou paroquiais.

Para isso haveria remédio: transparência, publicidade e limites claros, sempre de conhecimento geral. Acordos, uma vez fechados precisam ser honrados, sem novas rodadas de negociação ou novo dispêndio para os cofres públicos.

O presidencialismo de coalizão se desenrola em ambientes assim. Em inúmeros países, isso acontece.

Contudo, uma vez adotado, o conceito de “velha política” deveria ser mais rigoroso. Velha também é a confusão entre público e privado, o espaço do Estado como o ambiente da família; a advocacia oculta de interesses privados, a existência de relações perigosas —no mínimo comprometedoras— com grupos que vão de prestadores de obras e serviços até a intimidade com o crime organizado ou mesmo com o crime comum.

Velho é o corporativismo de grupos organizados pela manutenção de privilégios; o recurso ao foro especial, a prática de “laranjas” eleitorais, de “rachadinhas” de gabinete, a suspeita proximidade com as milícias. O envolvimento da família presidencial com questões do Estado é nada republicano. Assim como a ideologização das Relações Internacionaisou a transformação da Educação num latifúndio doutrinário não são elementos novos nem saudáveis. Nada disto é novo e serve apenas para aprofundar drama e prolongar o atraso.

Há enorme imprecisão nos dois termos. Eles que servem apenas para tergiversação, usados em trincheiras de uma guerra semântica vazia geram confusão e ignorância, aumentam o dissenso ao mesmo tempo em que impedem a efetivação da Grande Política. A política republicana, impessoal, que ergue instituições capazes de interpretar desafios do presente e do futuro, diagnosticando problemas reais, construindo diálogos na tentativa de uma unidade possível, na sociedade naturalmente diversa. Ser republicano, no Brasil, seria algo absolutamente novo.

Mas não há política alguma quando os líderes não se conectam com a totalidade da nação mais do que com núcleo de seus eleitores; quando não expressam projetos claros, baseados na construção do futuro mais que a destruição do presente. A política foi inventada para somar, não dividir. Ela não se perde com moinhos de vento, na obsessão com sombras e fantasmas que já morreram ou nunca existiram. Grande Política que não se realiza com almas pequenas nem atores minúsculos.
Carlos Melo:

Brasil fora das redes presidenciais


Fila do Mutirão de Emprego promovido pela Secretaria de 
Desenvolvimento Econômico e Trabalho da Prefeitura de São Paulo e o 
Sindicato dos Comerciários, no Vale do Anhangabaú 

Bolsonaro flerta com o desastre

À sua maneira, os três interpretaram a vitória eleitoral como “força do povo” para a concentração de poder na Presidência, relegando ao segundo plano as instituições representativas, Câmara e Senado. A definição disso é: autoritarismo. E essa concepção não tem futuro, como ensina a história ou se pode ver na Venezuela.

A retórica de Bolsonaro sobre a “velha política” é mera contrafação de um discurso de Lula em 1993: “Há no Congresso uma maioria de uns 300 picaretas que defendem apenas seus próprios interesses”.


A frase de Lula inspirou Herbert Vianna na ácida letra de “Luis Inácio” para os Paralamas do Sucesso. Por ironia, a canção foi censurada a pedido do procurador da Câmara, o deputado mineiro Bonifácio Tamm de Andrada. Na época, Bolsonaro integrava o baixo clero do Congresso.

Agora, na Presidência, avança célere para o isolamento a bordo de um projeto de ruptura. Não construiu maioria com sua “nova política”, mas se diz eleito pela “vontade de Deus”. Convicto da “missão que me foi dada”, aposta na Providência.

Bolsonaro já está imobilizado no confronto com o Congresso. Das sete Medidas Provisórias, seis projetos de lei e uma proposta de emenda à Constituição que enviou em 12 semanas, nenhuma teve andamento.

Ele sabe o significado. Como deputado apresentou 172 projetos. Só conseguiu aprovar três — um deles permitia a venda de uma inócua “pílula do câncer” (fosfoetanolamina).

Acomodava-se no fracasso alegando “discriminação” ideológica. Acena agora com a repetição da fórmula, como justificativa para governar acima das instituições.

É um flerte com o desastre. Entrou em rota de colisão com um Congresso aparentemente coeso e disposto ao uso da sua força institucional. Entre outras coisas, corre o risco de ser surpreendido por uma reforma da Previdência Social divergente da proposta que assinou.

Capitão sabe criar crises, não sabe desfazê-las

Há presidentes da República que têm dificuldades de lidar com as crises. Há outros que têm o talento para administrar as crises. Jair Bolsonaro revela-se um tipo sui generis de presidente. Ele é a própria crise. Sob o capitão, a Presidência transformou-se num outro nome para encrenca. O Planalto produz crises com a mesma naturalidade com que a bananeira dá bananas.

Em meio ao estilhaçamento de suas relações com Rodrigo Maia, presidente da Câmara, Bolsonaro reuniu-se com seus principais conselheiros civis e militares. Delegou a Onix Lorenzoni, chefe da Casa Civil, a tarefa de pacificar as relações com o Congresso. Numa única decisão, Bolsonaro cometeu dois equívocos. Errou ao imaginar que um presidente pode terceirizar a resolução de uma crise. Errou também ao supor que Onyx, parte do problema da articulação política, pode virar solução.



Um presidente deve identificar os buracos e desviar o governo deles. Com o auxílio dos filhos, Bolsonaro dedica-se a cavar os buracos nos quais sua administração cai. Iniciada uma crise, o presidente deve preservar os aliados e estancar a sangria. Carlos Bolsonaro, o filho do rei, comprou briga com o aliado Maia. E o capitão comportou-se como se quisesse ver o sangue de Maia escorrendo nas redes sociais mantidas por suas milícias virtuais.

Bolsonaro faria um favor a si mesmo se desperdiçasse cinco minutos do seu tempo para dimensionar o custo dessa penúltima crise em que se meteu. O eventual naufrágio da reforma da Previdência influenciará mortalmente os rumos do seu governo. O presidente repete o bordão segundo o qual não deseja incorrer na "velha política". Faz bem. Mas precisaria demonstrar que sua "nova política" não é o pão dormido que aparenta ser. Por ora, o que deu para perceber é que Bolsonaro sabe criar crises, mas não sabe como desfazê-las.

Falta meio grama de coragem

A da previdência, mais que uma reforma, é uma manobra de ressuscitação, pra ver se o coração de uma economia que está morta volta a bater. A colheita do seu efeito financeiro pleno é esperada em 12 anos. Nos primeiros dois deste governo de quatro que já teria comido 6 meses “vendendo” a proposta ao Congresso se se dispusesse a tanto e ela fosse aprovada no prazo previsto, não deixaria de sair nenhum tostão do caixa. Só depois é que, pouco a pouco, a velocidade com que o dinheiro público vaza para o bolso da privilegiatura começaria a diminuir de fato.

A expectativa mais otimista era, portanto, de que se aprovada a reforma trouxesse “a valor presente”, na forma de ânimo para voltar a investir, uma parte do seu resultado futuro. O governo Bolsonaro teria, então, 1 ano e seis meses de redução da velocidade da hemorragia fiscal que pôs a União, os estados e os municípios à beira da incapacidade de manter os serviços básicos, antes de chegar ao fim. É por isso que Paulo Guedes, a voz que fala pelo Brasil Real neste governo, precisa tão desesperadamente de outras ações que ponham “comida” na mesa do ajuste das contas públicas já. Ele repete isso toda hora de medo do dinheiro que já está faltando nos estados e municípios para pagar polícia e hospital e não por falta de traquejo em “estratégia de tramitação no congresso” que é luxo de quem não precisa fazer contas.

Mas com o núcleo delirante que cerca o presidente ralando a confiança em que a expectativa de recuperação da economia se baseia por todos os flancos, nem que dê certo dá certo. A situação é francamente surrealista pois Jair Bolsonaro recebeu o país com a guerra ganha. A oposição estava esmagada e inerte. A unica dificuldade dos primeiros dias era, na verdade, convencer o próprio presidente da profundidade que o resto do país inteiro já sabia que a reforma da previdência teria de ter. Se não fizesse nada ganhava fácil a batalha que definirá se haverá ou não outras batalhas. Mas em vez disso, em 85 dias, sem que haja rigorosamente nenhuma questão específica em torno da qual subsista qualquer controvérsia real, todos estão engalfinhados contra todos e o país está à beira de um ataque de nervos.

Os subversivos que tanto excitam a imaginação desse bolsonarismo pavloviano da internet não têm tido, porém, a menor chance. Os três “zeros” se têm encarregado espontaneamente de 100% dos tiros que o governo dá nos próprios pés. E quando não basta, sempre há o João de Deus da filosofia para adicionar, lá da Virgínia, a sua colherada de cizânia em meio a tentativas de estupro das normas de convivência civilizada. Os alarmes e ultimatos são sempre em torno de nada que eles próprios consigam definir o que seja. O que pode existir, afinal, mais “velha política” que manter a ordenha do estado pelas corporações que o presidente Bolsonaro vive dizendo que adoraria poder ver continuar para sempre? São vaidades em ebulição, nada mais.

O governo eleito em função da crise de hierarquia vai jogando a pá de cal no pouco que restava dela. Do aviltamento do critério de seleção de juizes para a Suprema Corte; das disputas de poder entre os que, entre eles, acendem e apagam a Lei da Ficha Limpa a gosto; da produção de armações ilimitadas no Ministério Público para abortar votações contra seus privilégios; do embaralhamento da ordem cronológica criminalizando, no presente, expedientes eleitorais que eram legais no passado para provar que Lula “só é” porque todos também “seriam”; da “legalização” monocrática de modos criminosos das corporações amigas assaltarem o Tesouro Nacional, saltamos para algo ainda mais desinstitucionalizado e desprovido de qualquer sentido de prioridade. Como o piloto não assume nada, cada passageiros do governo se vai transformando num governo em si mesmo, com suas próprias prioridades definidas pela vaidade e, seguindo o padrão do chefe, denunciando como “traição ao povo” qualquer forma de contraditório.

Cada parente próximo, cada “guru”, cada ministro e cada poder da republica faz a sua lei e a submete “à sua rede”. E quem pode mais chora menos. Juizes mandam prender ex-presidentes se e quando acordam com essa boa ideia. O incitamento ao linchamento do contraditório salta, então, das convocações explícitas das redes sociais para as incitações veladas das redes de televisão empenhadas nos “justiçamentos” lá delas. Os tribunais atacados por afirmar o que está escrito na lei se arrogam o poder de investigar e punir os seus criticos. E o governo que se elegeu afirmando o direito à legitima defesa conclama o lichamento do representante eleito do povo que, acuado nesses termos, ousa pedir o debate democrático de uma legislação de abuso de autoridade.

Para as questões de momento há um remédio fulminante. Basta o comandante comandar. Meio grama de coragem…

Mas para fazer tudo isso ir voltando ao devido lugar o Brasil tem de incluir democracia representativa na na sua ideia de democracia representativa. Sem essa providência elementar, água mole em pedra dura … SEMPRE refluirá como tem refluído. A Lei de Responsabilidade Fiscal já era. O “teto” do funcionalismo tá mais furado que “tauba de tiro ao álvaro”. A prisão após a 2å Instância está por um triz. E quem duvida de que mesmo passando a previdência, os tribunais, lá adiante, não transformem isto em mais uma das suas minas de ouro com ressarcimentos retroativos de “direitos adquiridos” violados com juros e correções estratosféricas como aconteceu com todas as outras reformas que pegaram de raspão na privilegiatura?

Se quisermos ter uma democracia, um dia, teremos antes de definir com precisão quem representa quem na nossa – o que só é possível com voto distrital puro – e atrelar todas as lealdades ao povo dando a cada representado o direito de demitir o representante traíra. Tentar mudar o Brasil sem isso será sempre, como tem sido, um esforço tão recompensador quanto tentar produzir ciência moderna a partir da crença de que o Sol é que gira em torno da Terra e não a Terra em torno do Sol.

Gente fora do mapa


Bolsonaro à luz da ciência comportamental

A ciência comportamental cobre várias disciplinas que estudam as ações humanas, como a sociologia e a psicologia. E também o comportamento do ser humano no contexto de outras disciplinas, como economia e biologia. Como economista, vi que nas duas últimas décadas a economia comportamental ganhou grande espaço na análise econômica. Com ajuda da psicologia, analisa as decisões econômicas e, especificamente, as financeiras.


Entre as evidências desse avanço, destaco um manual de economia comportamental publicado este ano pela North-Holland, Handbook of Behavioral Economics – Foundations and Applications. Tem dois volumes, 1.241 páginas e foi escrito por 24 autores, vários deles de universidades famosas, como Yale, Harvard, Cornell, MIT e a London School of Economics. No prefácio é dito que Daniel Kahneman, Richard Thaler, George Akerlof, Tom Schelling, Robert Shiller e Jean Tirole, todos premiados com o Nobel de Economia desde 2000, o foram “em parte, ou no todo, por suas contribuições seminais à economia comportamental”.

Na sua essência, a economia comportamental contesta o axioma da racionalidade do ser humano, que por muito tempo pautou a análise econômica de suas decisões. Argumenta que essa racionalidade é limitada e muitas vezes leva a decisões equivocadas.

Na economia comportamental destaco Daniel Kahneman, um psicólogo. Suas análises têm aplicação ampla, como às ações do presidente Bolsonaro. Os artigos científicos que deram prestígio a Kahneman são de difícil leitura para o público em geral, mas ele também publicou um livro mais acessível, já traduzido para o português, Rápido e Devagar: duas formas de pensar (São Paulo: Objetiva, 2012). Nele argumenta que o processo decisório do ser humano recorre a dois sistemas. O sistema 1, automático e rápido, essencialmente intuitivo, influenciado por instintos, emoções e vieses comportamentais, muitas vezes não se mostra racional. O sistema 2 pensa de forma mais elaborada e controlada, toma mais tempo e nele a racionalidade é mais presente. Nas decisões, a mensagem é se informar bem sobre o objeto delas, submetê-las ao sistema 2, e que o recurso a este se torne um hábito.

As decisões de Bolsonaro ficam mais por conta do sistema 1. São impulsivas e às vezes causam perplexidade, como ao divulgar um vídeo obsceno recentemente. Passando a um exemplo de sua gestão, após enviar ao Congresso seu projeto de reforma da Previdência Social, objeto de dificílimas negociações, num encontro com jornalistas abordou a idade mínima de 62 anos proposta para a aposentadoria de mulheres e o valor de R$ 400 por mês previsto para antecipar aos 60 anos o Benefício de Prestação Continuada, devido a idosos carentes. Então admitiu que a idade mínima feminina poderia ficar mais próxima de 60 anos e o referido valor poderia ser ampliado.

Ou seja, já cedeu antes de a negociação avançar, a ponto de um líder oposicionista, Paulinho da Força, ironicamente agradecer essa concessão em mensagem a parlamentares, nestes termos: “Nós que lutamos por uma reforma mais amena podemos dizer que temos um aliado de peso: o amigo Jair Messias Bolsonaro”. Houvesse o presidente recorrido ao sistema 2, uma resposta racional seria que a proposta do governo é a que foi encaminhada ao Congresso e lá será discutida.

Na economia, reconhecendo não entender do assunto, racionalmente decidiu pelo sistema 2 ao delegá-lo ao ministro Paulo Guedes, mas mesmo assim costuma dar seus pitacos pelo sistema 1, como nessa reunião com os jornalistas.

Bolsonaro também se descuida na busca de informações, agravando seu despreparo em vários assuntos. Não se espera que um presidente entenda de tudo, e racionalmente deve sempre se aconselhar com especialistas de sua confiança. Mas ele valoriza muito o aconselhamento de pessoas como Olavo de Carvalho, um filósofo que também parece operar pelo sistema 1, e seus três filhos, mais inexperientes do que ele. Estes deveriam mesmo é cuidar dos próprios mandatos, pois é para isso que foram eleitos.

Bolsonaro tem também vieses comportamentais que não se coadunam com seu cargo. Demonstra não gostar dos políticos brasileiros e do jogo político indispensável para aprovar matérias no Congresso, jogo esse que requer um compartilhamento de poder que Bolsonaro recusa até mesmo a seu próprio partido. Pensando noutra disciplina, a política comportamental, também aí ele está operando pelo sistema 1.

O que fazer? Usando termo antigo aplicado a automóveis, que não vinham tão bem ajustados como os modernos, pode-se dizer que o presidente ainda está amaciando como tal. Aliás, então era comum colocar nos carros novos uma placa com o termo amaciando, para advertir pedestres e motoristas quanto a riscos ligados à baixa velocidade com que os veículos eram amaciados, a paradas súbitas e a outros contratempos. Assim, ainda nesta fase Bolsonaro deveria habituar-se ao sistema 2, para refletir sobre decisões, ir devagar, buscar bons assessores, evitar discursos improvisados mediante textos escritos revisados por assessores e desviar-se em situações de maior risco.

Como penso no Brasil, continuo a desejar sucesso ao presidente, mas vale apontar o risco de que isso não aconteça – e sobrevir um desastre. Seus desacertos são um dos ingredientes da deterioração das expectativas de crescimento do produto interno bruto (PIB) em 2019, que, segundo o Boletim Focus, do Banco Central (de expectativas do mercado financeiro), começaram o ano com uma taxa de 2,5%, mas de umas quatro semanas para cá essa previsão caiu para 2%. Contudo esse mesmo mercado ampliou de 2,6% para 2,8% sua previsão de aumento do PIB em 2020. Ou seja, parece acreditar que o sucesso do presidente foi adiado, o que já é uma deterioração das expectativas quanto ao seu desempenho.

Descontentes unidos!

O descontentamento é o primeiro passo na evolução de um homem ou de uma nação
Oscar Wilde

Nós não vamos no atirar do penhasco

De tanto ver, ouvir e ler notícias ruins, o brasileiro está se tornando um povo triste. E o País ficando de baixo astral. Difícil é o dia que não temos alguma novidade para lamentar, sobretudo e principalmente, na área política. Acontece sempre de uma autoridade dar uma declaração desastrosa, um político postar insanidades nas redes sociais, um doutor trocar farpas com o outro. Assistimos ao circo dos horrores, enquanto o rei fica nu. Projetos de lei apresentam reformas que querem tirar o pão de nossas bocas e colocar armas em nossas mãos. Sem falar nos alucinados que nos traumatizam com casos de violência e nós não sabemos o que será do amanhã.

É um caldo trágico.

O agora país da perplexidade e da desilusão enfrenta situações de perda ou de frustrações; o resultado são essas angústia, melancolia, e o coração apertado. Estamos a caminho de uma depressão coletiva, pois não há como fugir do estado de tristeza cotidiano. Estamos viciados em fatos ruins: mal o dia começa e já corremos para o WhatsApp ou para os sites de notícias, onde degustamos o pão amargo de cada dia. O desejo de termos algo ruim para lamentar está virando uma obsessão.


Pode parecer bizarro, mas é como se estivéssemos alimentando um ciclo vicioso e doloroso, buscando a notícia ruim. Buscando uma dor, ainda que inconscientemente, para expressar o nosso descontentamento com a vida brasileira. É um sentimento maluco, estamos todos assim, flutuamos entre a expectativa de que uma coisa ruim pode acontecer e a infelicidade de constatar que tudo está realmente uma chatice. Mas, vamos devagar.

Estamos solidários na depressão do outro e nos sentimos até culpado quando há uma certa felicidade no ar. Mas, eu não curto essa parada de que estamos prestes a nos jogar do penhasco. Comigo, não, violão! Devemos ser, sim, solidários na alegria e enxergarmos quanta coisa boa estamos deixando de construir. Tristeza pode ser um sentimento saudável e natural, mas ela é legal quando força uma reflexão; quando faz a gente a pensar sobre os fatos ruins e começamos a buscar soluções. Só vale a pena se começarmos a refletir de que forma podemos reverter esse sentimento inútil que paira entre nós, brasileiros. Estamos parecendo, sei lá, peixinhos fora d’água.

Se nós erramos (generalizando aqui porque o momento não é mais ficar catando os feijões, mas de dar a volta por cima), como ia dizendo, se erramos, não temos compromisso com erro. Muito menos com a dor. Não suporto dor.

Renascer exige esforço. É mais fácil xingar do que lutar, porém é preciso tirar a bunda da cadeira. Sentar e lamentar é menos cansativo do que se levantar e ir à luta. Está parecendo papo de psicanalizado, mas temos que fazer algo para mudar. Felicidade – pessoal ou coletiva – é algo que se constrói. Aliás, os entendidos dizem que ela só é plena quando brigamos por ela, quando trabalhamos nesse sentido. Indo por esse caminho, em vez de ficar alimentando a desilusão do outro, acho que o certo é a gente incentivar as outras pessoas a serem mais justas e corajosas nesse momento de desesperança. Para começar, o primeiro passo é abrir a boca e dizer, a quem de direito, em alto e bom som, que merecemos algo melhor. E que não aceitamos o que não merecemos. É um bom começo.

Cícero Belmar

Procura-se um presidente

O presidente da República, Jair Bolsonaro, não parece satisfeito em criar problemas em série no país que governa e passou a causar constrangimentos também em países vizinhos. Em recente visita ao Chile, Bolsonaro minimizou a ditadura do general Augusto Pinochet, ao dizer que “tem muita gente que gosta, outros que não gostam”, deixando ao presidente chileno, Sebastián Piñera, a tarefa de lidar com a péssima repercussão interna dessa e de outras declarações desastradas da comitiva brasileira. Dias antes, ao lado do presidente do Paraguai, Mario Abdo Benítez, Bolsonaro elogiou o “nosso general Alfredo Stroessner”, ditador que não foi nosso – foi deles, entre 1954 e 1989. Segundo o presidente brasileiro, Stroessner foi um “homem de visão, um estadista”.


Todos sabem, há muito tempo, quais são as opiniões do sr. Jair Bolsonaro a respeito das ditaduras militares latino-americanas. Quando deputado federal, Bolsonaro sempre foi notório defensor desses regimes, inclusive do recurso destes à tortura. Na condição de presidente da República, no entanto, Bolsonaro deveria saber que suas palavras adquirem enorme peso institucional, pois ele representa o Brasil no exterior, razão pela qual deveria guardar para si suas opiniões sobre ditadores e ditaduras em nações vizinhas, tema que naturalmente causa desconforto nesses países – ainda mais quando trazido à tona por autoridades brasileiras.

Esses episódios de incontinência verbal do sr. Jair Bolsonaro reiteram a impressão, cada dia mais próxima da certeza, de que o ex-deputado federal ainda não assumiu de fato a Presidência da República. Se tivesse assumido, Bolsonaro falaria como chefe de Estado – que engloba o conjunto dos brasileiros e da administração pública – e não como mero representante de seus eleitores. A cada dia que passa, Bolsonaro, sob as vestes extravagantes da “nova política” – como os chinelos e a camisa falsificada de time de futebol que o presidente usou numa reunião ministerial –, continua a agir como deputado do baixo clero.

Assim, sem entender qual é natureza da função para a qual foi escolhido pela maioria dos eleitores no ano passado, o sr. Bolsonaro drena as energias do País ao concentrar-se em temas de pouca relevância, mas com potencial de causar tumulto. O Estado noticiou, por exemplo, que o presidente está estimulando os militares a comemorar o aniversário do golpe militar de 31 de março de 1964. Tal iniciativa certamente trará grande satisfação para o eleitorado mais radical de Bolsonaro, mas pode criar desnecessário e inoportuno embaraço no momento em que o País precisa de união para aprovar duras reformas.

Ocupado com questiúnculas que fazem a alegria de sua militância, o sr. Jair Bolsonaro parece ter abdicado de governar para todos. Os problemas avolumam-se de forma preocupante – já se fala até de uma nova paralisação de caminhoneiros – e o presidente mostra-se alheio a eles, movendo-se ao sabor das redes sociais como se disso derivasse sua força e não sua fraqueza, como de fato acontece.

Segundo sua concepção de “nova política”, Bolsonaro não demonstra nenhum interesse em construir uma base parlamentar sólida o bastante para aprovar nem mesmo projetos simples, que dirá reformas complexas, como a da Previdência. Parece acreditar que, simbolizando a redenção do Brasil depois do flagelo lulopetista, todas as suas vontades serão convertidas em lei pelo Congresso, sem necessidade de negociação. Incorre, assim, numa arrogância sem limites, como quando foi cobrado pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia, a buscar votos para aprovar a reforma da Previdência, e respondeu que “a bola está com ele (Rodrigo Maia), eu já fiz minha parte, entreguei (o projeto da reforma)”. Das duas, uma: ou Bolsonaro acredita ser um mero despachante de projetos de lei, e não um líder político, ou, o que é mais provável, ele crê que deputados e senadores devem aprovar seus projetos porque, se não o fizerem, estarão atuando contra o Brasil, que está “acima de tudo”, e contra Deus, que está “acima de todos”. E ele, afinal, está onde?

Seja como for, a deliberada desorganização política do governo, causada por um presidente cada vez mais desinteressado de suas tarefas políticas e institucionais, tem o potencial de agravar a crise, levando-a a patamares muito perigosos – e talvez seja isso mesmo o que muita gente quer.