domingo, 10 de outubro de 2021

A dilacerante dor dos brasileiros

Nem nos mais pessimistas cenários esse número apareceu. Nem nos piores pesadelos o país imaginou que poderia perder 600 mil vidas na pandemia. Se tentássemos escrever uma distopia, algum enredo de horror político, o presidente seria assim como o que governa o Brasil. Não visitaria hospitais, não consolaria as vítimas, proibiria as medidas de precaução, induziria o uso de um remédio ineficaz e impediria que seus ministros e assessores socorressem a população. E mentiria todos os dias. O que nós vivemos não estava escrito, previsto ou calculado. As marcas ficarão. Como disso o cantor e compositor Criolo, “a pandemia nunca vai acabar para quem perdeu um ente querido.” Ele perdeu a irmã.

Há quem diga que a CPI não dará em nada, que se perdeu, que poderia ter pensado em outra estratégia. Falta nessa análise tanto a visão global quanto a dos detalhes. A CPI foi o desabafo do país, de todos os que discordam dos rumos aviltantes do governo. Nos detalhes, a Comissão revelou um mundo de informação que apenas intuíamos e que agora estão expostas, irrefutáveis. Se isso vai se transformar em alguma punição contra os culpados não depende da Comissão Parlamentar. Se autoridades policiais, políticas e dos órgãos de controle fingirem não ver, serão cúmplices. Se o procurador-geral da República, Augusto Aras, continuar inerte e sinuoso, será cúmplice. Diante de todos os que falham neste momento dilacerante do Brasil estará uma lápide com 600 mil nomes.


Há inúmeros fatos que o país não sabia e que ficou sabendo durante as sessões dos últimos seis meses da Comissão Parlamentar. Havia suspeita, mas agora há certeza de que o governo colocou em prática a tese criminosa da imunidade de rebanho. O presidente sempre insistiu em provocar aglomerações, desacreditar as medidas de proteção e sabotar as vacinas. Antes, tudo podia ser entendido como erros de avaliação e de gestão. Soube-se na CPI que era mais que isso, aquele comportamento delinquente era um projeto. Bolsonaro queria que o número máximo de brasileiros fosse contaminado porque testava em nós a teoria perversa de que se mais gente adoecesse mais rapidamente o país estaria imunizado. Bolsonaro conspirou contra a saúde dos brasileiros em gabinete paralelo, com o apoio de empresários negacionistas, ministros sabujos e invertebrados.

A CPI iluminou o que se passava dentro do Ministério da Saúde. Não era apenas um caso de incompetência. Era roubo. Havia rivalidades entre grupos no comando do Ministério, mas todos tinham o mesmo propósito: obter vantagens financeiras na negociação da vacina. Por isso fechavam as portas à Pfizer, sabotaram a Coronavac e eram atenciosos com os atravessadores e suas propostas mirabolantes. O presidente foi informado das tramoias, admitiu que suspeitava do seu líder na Câmara, mas nada fez e nem tirou o líder. Institutos bolsonaristas, como o Força Brasil, financiado pelo empresário Otávio Fakhoury, difundiam fake news contra vacina enquanto tentavam vender imunizantes para o Ministério da Saúde. Luciano Hang mostrou ser ainda mais abjeto do que se pensava.

O presidente teve o conluio de pelo menos dois planos de saúde, alguns médicos, alguns empresários, do Conselho Federal de Medicina, de generais submissos, dos políticos da base, para mentir e levar brasileiros à morte. Milhares de mortes teriam sido evitadas se o governo fosse outro. A Prevent Senior se transformou em campo de experimentação e extermínio, e a Agência Nacional de Saúde Suplementar, que tem o dever de fiscalizar os planos, soube disso apenas pela CPI. Bolsonaro e seus cúmplices tentaram mudar a bula da cloroquina e foram impedidos pela Anvisa. A vacinação ocorreu no país pela pressão da imprensa, pela luta do pessoal da Saúde, pelo esforço de governos estaduais, principalmente o de São Paulo, e ganhou velocidade por causa da CPI.

A lista das revelações da Comissão Parlamentar de Inquérito instaurada no Senado é enorme. O país parou para ver o trabalho dos senadores e das senadoras. Atrás de cada pergunta havia estudo, apuração e a dedicação dos assessores. Os méritos da CPI superam em muito os erros cometidos durante as investigações. A CPI nos deu clareza num tempo de brumas, nos entregou verdades na era das mentiras oficiais. Os resultados são matéria-prima para o próprio Congresso, o Ministério Público e a Justiça. Principalmente a CPI honrou os nossos 600 mil mortos.

Por que a inflação é mais dolorosa no Brasil

Inflação no Brasil é sinônimo de fome. Não falta comida, apesar da seca, mas falta dinheiro para comprar alimentos cada vez mais caros. Há um surto inflacionário em todo o mundo, mas por aqui a situação é especialmente dramática. Os preços pagos pelas famílias brasileiras subiram 10,25% nos 12 meses até setembro. No mês anterior a taxa acumulada havia chegado a 9,68%. Isso é mais que o dobro da média, 4,3%, registrada nos 12 meses até agosto nos 38 países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). No Grupo dos 20 (G-20) a média foi de 4,5%. No Brasil, o custo da alimentação aumentou 12,54% no período equivalente a um ano. Na OCDE, a média no período anual encerrado em agosto ficou em 3,6%. Os dados nacionais foram divulgados na sexta-feira. No mesmo dia, os mortos pela covid chegaram a 600 mil, número explicável principalmente por erros e omissões do presidente Jair Bolsonaro e seus comandados.


O noticiário tem mostrado cenas de pessoas catando ossos, pelancas e restos de comida. Gente em situação pouco melhor tem conseguido comprar pés de frango. Pés e asas de aves foram sucessos de venda na grande crise de 19821983, quando o Brasil quebrou, teve de renegociar a dívida externa e se atolou em recessão. No ABC, famílias de operários ainda empregados formavam grupos de três para sustentar duas em piores condições.

Crises ligadas às contas externas são hoje pouco lembradas. O País é há muitos anos superavitário no comércio exterior, graças, principalmente, a uma agropecuária capaz de abastecer o mercado interno e outros países. Mas o Brasil entrou em 2021 com cerca de 19 milhões de pessoas sem condições de levar comida para casa. Em setembro do ano passado a ajuda emergencial começou a evaporar-se. Em janeiro deste ano milhões haviam afundado na pobreza e o desemprego era maior que em 2019.

Os desempregados eram 14,1 milhões no trimestre móvel encerrado em julho. Se alguma melhora tiver ocorrido a partir de agosto, deve ter sido pouco significativa. Mas os preços continuaram a subir velozmente, corroendo os ganhos familiares já muito limitados.

Recordes sinistros foram batidos no mês passado. A inflação mensal, de 1,16%, foi a maior para um mês de setembro desde 1994, quando a taxa alcançou 1,53%, de acordo com a série do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA). Esse indicador é baseado no orçamento das famílias com renda mensal de até 40 salários mínimos.

Os dados são mais feios no caso da inflação das famílias mais modestas, com renda mensal de até 5 mínimos. A inflação desse grupo, medida pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC), chegou a 1,2% em setembro, com taxa acumulada de 10,78% em 12 meses. O dado mensal também foi o maior desde 1994, ano de lançamento do Plano Real. Insegurança, dólar supervalorizado e imprevidência, como no caso da crise hídrica, explicam o desarranjo extraordinário dos preços no Brasil.

Para os mais otimistas – e mais abonados – houve ao menos dois detalhes positivos nos novos dados de inflação. A alta do IPCA, de 1,16%, foi menor que a mediana das projeções do mercado financeiro, de 1,25%. Além disso, o aumento do item alimentação (1,02%) foi inferior ao de agosto, de 1,39%. Mas a percepção fora da Bolsa é um tanto diferente. Na vida prosaica do dia a dia, o consumidor ainda pagaria muito pelos bens e serviços, mesmo se a inflação de setembro fosse zero: os preços já haviam chegado a um patamar muito alto e continuariam valendo.

Além disso, é cada vez mais difícil, para a maior parte das famílias, ajustar seu orçamento às novas condições do varejo. A inflação tem sido puxada por itens muito importantes, como comida, gás de cozinha e energia elétrica. Nos 12 meses até setembro, os combustíveis domésticos, incluído o gás, encareceram 33,04%, enquanto a tarifa de eletricidade subiu 28,82%, de acordo com o IPCA.

As famílias já têm mudado seus padrões, comprando produtos mais baratos e renunciando a bens e serviços. Mas essas mudanças, além de certos limites, podem ser devastadoras para as condições de vida e especialmente cruéis para quem tem filhos para sustentar e educar.

Em agosto, as vendas do varejo caíram 3,1%, interrompendo, mais uma vez, a recuperação iniciada em maio de 2020. Com muitas oscilações, houve quatro resultados negativos nos meses de janeiro a agosto. Inflação, desemprego e ajuda oficial irregular e insuficiente explicam a maior parte dessa história. Desaceleração do consumo combina com a fraqueza da indústria. Em agosto, a produção industrial foi 0,7% menor que em julho e 0,7% inferior à de um ano antes. A média móvel trimestral caiu 0,8%.

No fim do ano, o Brasil terá saído, provavelmente, do buraco onde afundou em 2020, quando a economia encolheu 4,1%. Mas o crescimento em 2022 ficará, segundo se estima, na faixa de 1% a 1,5%. A inflação ainda será um desafio, os juros continuarão altos e o desemprego permanecerá muito acima dos padrões internacionais, no fim do mandato normal do presidente Jair Bolsonaro, se ele ainda estiver no cargo.

Não há beleza na miséria

Não há nenhuma beleza na miséria. A frase é do angolano José Eduardo Agualusa e cai bem para o momento. A fome, que ataca milhões de seres humanos no planeta, principalmente no continente africano, é um espetáculo horripilante. As massas sofridas que habitam as áreas de lama e esgoto, nas margens das grandes e médias cidades do nosso país, mais de 50 milhões de pessoas, formam pelotões avançados de sofrimento e dor. Os 15 milhões de brasileiros desempregados habitam o universo da desesperança. A miséria é um cancro que se espalha pelo corpo da humanidade, devastando seres e a natureza, corroendo os valores que, certo dia, não faz tempo, semeávamos com amor no jardim dos nossos corações: a amizade, a solidariedade, a harmonia, o respeito ao outro, o carinho, o companheirismo, a humildade.


Hoje, as coisas estão ficando feias. Até os monumentos que tanto admirávamos. Os belos cartões postais passam rápidos por nosso olhar, perdendo o encanto e a magia que nos fazia sonhar. Que adianta contemplar o Pão de Açúcar dentro de um cercado de miséria, violência e morte? Que adianta tecer loas à grandeza e à beleza da floresta amazônica, se ali o que vemos são imensos espaços de fogo e destruição? Para onde se contemple, nossa vista é levada, mesmo sem querer, para as tochas da destruição, geralmente acesas pela ambição humana ou pela cegueira que fecha as portas do bom senso.

A miséria habita tudo e ameaça chegar a cada um. Não se conforma com a territorialidade física, pedaços da natureza dividida, mas inicia sua depredação por mentes e corações. São sentimentos de ódio e vingança, que tomam o lugar da bondade, são maquinações urdidas com astúcia para vencer disposições e vontades adversárias, são emboscadas tramadas para subjugar oponentes nesse jogo sujo e maldoso que faz girar a humanidade em uma arena de lutas e mortandade. A humanidade dá adeus aos princípios morais e éticos que, por séculos, edificaram os pilares de seu pensamento.

O respeito às leis da ciência agora ganha mais uma expressão: negacionismo. O prazer de muitos que detêm o poder é negar, é tentar abolir os avanços e as descobertas que os vários campos científicos conseguiram, graças aos esforços de pessoas geniais, gente que cultivava o prazer de fazer o bem da coletividade. Quantas vidas foram salvas com as descobertas das vacinas e dos remédios. Quanto a humanidade ganhou com o passo a passo de seus criadores e inventores. Hoje, negar todo esse aparato do bem transformou-se até em negócio, envolvendo, vejam só, pessoas que até cultivam saber e conhecimento.

Ganhar dinheiro, fazer fortuna, até com a miséria dos outros, virou o leit motiv desta terceira década do século. Você teve um bom dia? A pergunta é mais para saber se o interlocutor fez algum negócio, avançou em seus empreendimentos, entrou dinheiro no cofre. E menos se a paz guiou os passos da pessoa, se os afazeres foram todos cumpridos, sob a certeza de que esses alimentos do espírito nos trazem bons sonhos e um despertar com disposição para a labuta.

A palavra perde força. Nossos pais faziam seus negócios, muitas vezes escudados sob a certeza de que bastava a palavra para assumir um compromisso. Hoje, o negócio só vale se for validado em cartório, com firma reconhecida, carimbos e testemunhas. Tempos insólitos. Tempos estranhos. Tempos de incertezas. De muita conversa que se perde pelo excesso de expressões jogadas ao vento. Tempos em que até a morte se torna um ato banal. Hoje, morreram mil, ontem, 800. Passamos o patamar de 20 milhões de contaminados. Antigamente era assim: fulano morreu. Morreu? Não diga. Era uma tristeza imensa com sentimento de dor e perda.

A humanidade cumpre seu roteiro. Escritórios e fábricas trabalham arduamente; milhões entopem trens e ônibus para chegar ao trabalho; lugares de comer e beber, restaurantes e bares ficam abarrotados, principalmente nesse ciclo de domínio da pandemia do coronavírus 19. Mas não há como negar que muitas coisas mudaram. E a miséria entra em novos habitats. Antes, referíamo-nos ao campo físico para tratar do feio, do bonito, do belo e do horrível. Hoje, a feiura assumiu novos contornos.

Sob o verso de Manuel Bandeira: “que importa a paisagem, a glória, a baía, a linha do horizonte? O que vejo é o beco.”

Dois Brasis

 


E depois do fim do mundo binário?

O mundo do bolsonarismo foi se estreitando, se estreitando, até se tornar totalmente binário: as pessoas são do bem ou do mal, merecem ódio ou compaixão, é tudo ou nada, contra ou a favor, sem hesitação. Não há área cinzenta; é tudo preto no branco.

Mesmo que no dia seguinte haja um desmentido, será tão assertivo e radical quanto o que no dia anterior foi dito, e isso convence, pois é da postura extremada, e não das ideias, que se alimentam os habitantes desse mundo.


Caso típico ocorreu com o Ministro Alexandre de Moraes. Em um dia, Moraes foi esculachado em praça pública; no outro, virou o douto professor que recebe uma cartinha escolar do aluno.

Essas condutas, ainda que opostas, sempre radicais, podem funcionar por um tempo na política: arregimentam fanáticos, fazem barulho, assustam adversários, criam uma atmosfera de caos. Em algum momento, no entanto, o líder tropeça nos seus próprios cadarços, o projeto faz água, e o mundo se despedaça.

E quando se despedaçar, teremos de nos haver com o que fizemos conosco nesse período, pois nossas reações ao bolsonarismo binário, muitas vezes, têm sido também binárias.

O que faremos com as pessoas que, pelas nossas reações, nos tornamos?

E não estou aqui falando das brigas em família no Natal. Isso até que é bom – a desculpa perfeita para fugir dessas confraternizações fastidiosas.

Meu temor é institucional. Penso especificamente no direito, que é democrático justamente quando sua interpretação foge ao binário, quando sua reflexão é permeável às várias formas de se enxergar um mesmo objeto.

Em reação ao caos, temos prendido todos os que ousam falar mal daquilo que resolvemos ser a democracia, dando carta branca a qualquer projeto de lei que se proponha a banir do debate de forma rápida e fácil o que intuímos ser falso, e ridicularizando quem discorda do que concluímos ser científico.

Aristóteles era um crítico da democracia, Freud foi expulso da associação médica a que pertencia por defender teorias científicas destoantes, e a filosofia mostra que nenhum discurso é em si verdadeiro ou falso– a palavra é incapaz de atacar ou se defender sozinha.

Não sou a favor de nenhum dos que mandaram prender, menos ainda dos discursos que estão sendo banidos. Acho tudo lamentável, mas temo que o modus operandis sobreviva aos tempos de guerra, e nos aflija em tempos de paz.

Se tem uma coisa mais perigosa do que o mal com que o bolsonarismo vem castigando as instituições, certamente é o mal que, em reação ao caos, passamos a guardar em nós.

Um crime que pode passar despercebido

“Ganhar uma guerra é tão desastroso quanto perdê-la”
Agatha Christie

Entre os muitos crimes do presidente miliciano, desde o genocídio causado por seu negacionismo e inépcia na pandemia, passando pelos crimes eleitorais em razão do uso de máquinas industriais de massificação de fake news, até a convocação e participação em atos antidemocráticos, e as relações escusas com milícias e supostas práticas criminosas, entre tantos outros que aqui poderíamos enumerar, um crime pode passar despercebido.

O detetive Hercule Poirot, criação da magistral escritora Agatha Christie, disse, certa vez, que em muitos momentos o mais importante não é o que se vê, mas aquilo que se esconde por trás daquilo que se vê. O que vemos é um imbecil, inepto a governar, um provocador e golpista. Sentimos na carne os resultados de seus descaminhos, na inflação descontrolada, no desemprego, na fome, na destruição de serviços essenciais, no desastre ambiental, na vergonha e isolamento internacional e na emergência de hordas de imbecis que se sentem autorizados a abrir as masmorras das trevas irracionais que seus profundos ressentimentos abrigavam.

Entretanto, o que esse quadro visível e evidente esconde? Já avaliamos, em outras oportunidades, as conexões desta forma aparentemente irracional com os interesses de classe que a determinam, as divisões entre as frações das classes dominantes, entre os que já chegaram à convicção de que o miliciano é um problema para o bom andamento da pauta do grande capital e aqueles que temem que seu afastamento possa colocar em risco o bom andamento dessa mesma pauta. Não tenho dúvidas que os interesses de classe são aqui essenciais para a verdadeira compreensão da catástrofe que nos assola. Entretanto, quero agora chamar a atenção para outro aspecto da atual crise, que corre o risco de passar despercebido, mas que pode ter consequências significativas.


A aposta reacionária que se serviu da extrema direita para impor a pauta do grande capital criou uma profunda instabilidade, que acabou desnudando as contradições da forma política burguesa instituída. A República ameaça se dissolver, tornando evidente um conflito entre os famosos três poderes: o Executivo sob comando de um insano golpista; o Legislativo muito ocupado em dar sequência à pauta imposta, que abdica de seu papel de ser um freio quando o poder Executivo sai dos trilhos da racionalidade governativa; e, finalmente, o Judiciário que, logo após legitimar um golpe explícito que afastou uma presidente eleita – com todo o arsenal que lhe confere o monopólio de interpretação da norma constitucional instituída –, prevarica descaradamente contra uma infindável sucessão de crimes praticados pelo mandatário miliciano que ocupa a cadeira presidencial.

Devemos agregar a este naufrágio de princípios consagrados pela teoria política clássica o vergonhoso ziguezague do chamado quarto poder: os grandes monopólios da mídia corporativa. A rede Globo, apenas para dar um exemplo, foi diretamente partícipe e protagonista na conspiração golpista que desestabilizou os governos anteriores, produziu a histeria antipetista e promoveu as manobras espúrias da frente judiciária da Lava-Jato à condição de espada da moralidade contra os descaminhos da corrupção endêmica, elevando o boçal juizeco de Curitiba à condição de herói nacional. Agora, como porta voz da fração das classes dominantes que querem afastar o miliciano incômodo, segue na prática de algo grotesco que em nada se aproxima daquilo que um dia foi o jornalismo.

A primeira pista de nosso mistério está aqui. O bolsonarismo e sua manifestação grotesca torna evidente as contradições de uma forma política que, em uma situação normal, fica disfarçada sob o manto ideológico que a legitima. A operação ideológica que se apresenta para salvar a substância da forma política que corre o risco de mostrar sua verdadeira natureza em sua nudez vergonhosa, fundamenta-se no esforço de apresentar o bolsonarismo como um ataque à forma democrática, buscando criar no polo que a ele se contrapõe uma unanimidade em defesa da ordem institucional que desmorona, apresentando-a como detentora de uma virtude inquestionável.

Vários porta vozes da ordem se apressam a proferir juízos segundo os quais a atual crise tem demonstrado a força das instituições. As eleições são limpas, o Judiciário está vigilante e atua quando a ordem se vê potencialmente ameaçada, o Legislativo investiga o criminoso no espetáculo da CPI e tira de sua cartola discursos em defesa da vida e da lisura, até mesmo quando os digníssimos senadores se estapeiam. A CPI não é propriamente o mágico que tira a justiça da cartola, mas a moça bonita com roupas sumárias que atrai a atenção do público enquanto os mágicos comandam a privatização das companhias elétricas, dos Correios, atacam os direitos dos trabalhadores, mudam a política tributária em favor do grande capital e tramam a reforma administrativa contra os funcionários públicos e os serviços essenciais em nome da saúde do capital financeiro.

No espelho da ideologia se vê de um lado o miliciano que ameaça a democracia e de outro a defesa da democracia. O miliciano não respeitou as regras do jogo e conspirou com a intenção de colocar em marcha um golpe enquanto viabilizava todas as medidas de interesse dos grandes monopólios capitalistas. As instituições democráticas querem mantê-lo sob controle para que não atrapalhe a viabilização dos mesmos interesses.

De todos os crimes do miliciano na presidência, o que as classes dominantes não podem aceitar é que ele opere a ação política por fora das instituições. Não como as classes dominantes sempre fizeram, nos bastidores da República, atuando dentro e fora das instituições e da legalidade que dizem defender, mas de fazê-lo contra o tapume institucional que esconde este bastidor dos olhos do bom público. Mantendo nossa metáfora, seria como se o mágico levantasse o manto negro que esconde o fundo falso por onde a assistente escapa da caixa de onde deveria sumir.

O golpismo do presidente contra o STF e as instituições em geral, como no caso da crítica às urnas eletrônicas, por exemplo, é indesculpável aos olhos dos guardiões da ordem. Não porque é antidemocrático – nossa classe dominante nunca foi democrática –, mas porque revela a farsa da democracia. A intenção maior das classes dominantes é cobrir de legitimidade o massacre contra a classe trabalhadora e para isso precisa das instituições e de sua suposta respeitabilidade.

Aqui nos aproximamos do crime que pode passar despercebido. A ampla unidade em defesa da democracia ameaçada pelo bufão, retirando os aspectos mais evidentes e visíveis, é reduzida à reação contra um mandatário que se dispôs a lançar mão de recursos políticos para além do cenário institucional, como por exemplo, convocar massas para equilibrar a correlação de forças e sustentar seus interesses, esbravejando que, talvez, não respeite as decisões judiciais.

Independente do fato de tal atitude ser ou não uma bravata, não creio que o risco de ruptura esteja descartado como creem os mais otimistas. O que nos interessa aqui e o que se apresenta como contraponto ao golpismo evidente do miliciano é que parece estar se formando um consenso segundo o qual nos comprometemos todos a restringir nossa ação política nos limites da ordem institucional e jurídica estabelecida. A força política que predominou no último período, graças ao transformismo verificado, nos termos gramscianos, já se rendeu há tempos a este princípio. Vejamos um pouco mais atentamente o que isso significa.

Diante do estupro legislativo do texto constitucional, que retira direitos históricos conquistados, do desmantelamento do Estado e dos serviços públicos pela provável reforma administrativa, da reforma da previdência, da reforma trabalhista, da destruição ambiental, do assassinato das universidades e do SUS, teríamos o direito de ir às ruas e protestar. Depois disso, nossas organizações constituiriam advogados e recorreriam ao sistema judiciário que nos diria que as alterações foram realizadas seguindo os ritos e processos legais e, portanto, têm força de lei e devem ser respeitadas. Então, resignadamente nos recuaríamos e seguiríamos nossas vidas pacatas e ordeiras, submetidos ao massacre cotidiano enquanto faríamos planos e rezaríamos aos deuses para que, um dia, possamos eleger a maioria dos deputados e senadores e um presidente da República que pudesse nomear juízes capazes e honestos para o STF para que, absolutamente dentro da ordem política e jurídica vigente, socializássemos os meios de produção e iniciássemos a construção do socialismo.

O presidente, ou uma sequência deles, uma vez que não seria possível atingir esses objetivos em um único mandato, aceitaria agir estritamente dentro dos limites da ordem e constituiria a governabilidade através de acordos parlamentares e não na organização e mobilização de sua base social. Seria impensável, neste caminho, fortalecer formas de poder popular através das quais os interesses da maioria da população e da classe trabalhadora pudessem se constituir em força de persuasão para pressionar o Congresso ou instâncias jurídicas para que não fechem os olhos às necessidades reais da maioria em benefício dos interesses de uma minoria e do enorme poder econômico que dispõe.

O que devemos esclarecer é que esse não é um caminho proposto, é, de fato, a realidade do caminho percorrido pela principal força de esquerda e, além dela, pela quase totalidade das forças progressistas nos últimos quarenta anos. O resultado, o cenário atual em que estamos, é muito diferente das projeções idílicas idealizadas e há um motivo muito simples para isso. O fundamento do pacto poderia ser assim descrito: nós abrimos mão de qualquer perspectiva revolucionária e as classes dominantes abrem mão de interromper o processo político por meio de recursos extra institucionais, como golpes, uso da força ou manobras jurídicas fundadas em casuísmos. Ocorre que as classes dominantes cobram isto da esquerda, mas elas nunca se submeteram aos termos do pacto que nos foi imposto, nunca atuaram nos limites da ordem instituída e nunca abandonaram os instrumentos de poder que lhes permitem melar o jogo institucional quando lhes interessa.

Vamos a alguns exemplos. Temos que escolher nossos representantes por meio de processos eleitorais, mas as classes dominantes nunca abriram mão do enorme poder econômico que frauda a vontade popular e transforma as eleições em campo de batalha de esquemas publicitários milionários, especializados em esconder os verdadeiros interesses e programas efetivos das forças políticas envolvidas na disputa. A isso chamam de “eleições limpas”. Uma vez eleitos, os representantes começam a operar os esquemas e lobbies através dos quais os digníssimos representantes passam a representar aqueles que os financiam e não aqueles que os elegeram. As decisões econômicas e orçamentárias, disfarçadas e legitimadas como se fossem questões absolutamente técnicas, são de fato a gestão das condições que permitem o bom funcionamento da acumulação de capitais em detrimento das questões mais elementares da vida humana. O monopólio das instituições jurídicas, que proclama e interpreta o direito por trás de uma respeitabilidade e domínio da ciência jurídica, é na verdade a prática sistemática de uma justiça de classe na qual as classes possuidoras contratam guias caríssimos que as fazem atravessar o labirinto jurídico e sair impunes, enquanto os pobres são pegos pelas malhas da justiça e apodrecem nas prisões.

Um policial, que cumpre o dever que lhe foi imposto na divisão social do trabalho, patrulha ruas e inibe crimes, ou seja, age dentro da legalidade instituída, mas também pode levar o suspeito para um matagal e eliminá-lo, pode entrar em simbiose com atividades criminosas e passar a protegê-las, transitando para um posto na divisão social do trabalho da economia política do tráfico, por exemplo. Tomado em seu conjunto as duas práticas, o aparato repressivo age dentro e fora da legalidade e isto não é uma prerrogativa dos corpos policiais, mas de toda a ação política das classes dominantes que sempre atuaram dentro e fora da legalidade e que querem nos impor como barreira intransponível. Empresários bem-sucedidos não usam de seu empreendedorismo para vencer a dura luta da concorrência por seus méritos e virtudes, mas, via de regra, pegam o atalho da corrupção e molham a mão de quem pode favorecê-los ou deveria puni-los. O ministro da economia destrói a economia do país sob justificativas técnicas amplamente aceitas, enquanto guarda seu rico dinheirinho em offshores.

As instituições democráticas e a ordem jurídica estabelecida não são o contexto dialógico perfeito – como esperava Habermas –, ao qual todos estamos inseridos e devemos respeitar, são as regras que existem para poder restringir nossa ação nos limites da ordem. Regras estas que as classes dominantes não precisam respeitar ou levar a sério.

Depois de anos respeitando zelosamente estes princípios, uma força política pôde ser afastada da presidência por uma escandalosa manobra política, jurídica e midiática sem nenhum fundamento, bastou que três imbecis, conhecidos como Reale, Bicudo e Janaina, apresentassem um arrazoado com as palavras mágicas corretas, que o presidente do Supremo – indicado pelo força política deposta – chancelasse o rito legal para consolidar a ilegalidade e uma corja de deputados abraçasse uma bandeira, mandasse beijinhos para seus familiares e sua cidade natal e assassinasse a ordem constitucional abrindo caminho para o fascismo.

O crime que pode passar despercebido é que o miliciano que ocupa a presidência com seus crimes pode auxiliar a ordem a levantar o tapume ideológico que esconde o corpo abjeto da democracia burguesa, vestindo novamente sua nudez com finas roupas que voltem a lhe conferir a dignidade perdida, ao mesmo tempo que procura reconduzir as forças de esquerda novamente ao pântano da conciliação de classes, apagando a ignóbil traição recente e desarmando os trabalhadores para que pudessem enfrentar a inevitável traição futura.

Por incompetência, Bolsonaro conseguiu levar o país ao limite e só lhe resta renunciar

Até quando este Governo abusará da paciência do povo brasileiro? Até onde pretende ir, por meio de tanta incompetência e primarismo ímpar levar o País ao caos? Até que ponto contribuirá para a intranquilidade e insegurança que já tomaram conta da Nação? Até quando pretende, por meio da inflação e do aumento do custo de vida, levar ao desespero a população que paga impostos absurdos, e nada recebe em troca?

É inaceitável permanecer nesta desordem que se alastrou pelos setores administrativo, econômico e financeiro de todo um país com enormes potencialidades e está parado por conta de tanta ignorância e tanta inépcia.

Chega de subterfúgios. Chega de deslavadas mentiras criadas por um presidente despreparado e com o intuito único de confundir os brasileiros e levar adiante seu plano de se reeleger a qualquer custo.


Basta de negacionismo e demagogia barata, para que, realmente, os brasileiros consigam viver em paz.

No país do Agronegócio o povo passa fome! A maioria das medidas tomadas pelo Governo são balelas, sem outro propósito senão aproveitar da boa-fé dos brasileiros, que estão fartos de tanta ineficiência e intranquilidade.

É inaceitável que este caos provocado por uma Administração inepta, que implantou a desordem generalizada, paralise toda a Nação.

A intranquilidade econômica com um governo ineficiente chegou agora ao limite com a volta do fantasma da inflação que está corroendo os salários dos brasileiros, intranquilizando igualmente todas as classes sociais.

A opinião pública repudia veementemente esta política de origem duvidosa e perversa contrária às Instituições, cuja preservação cabe, por imperativo constitucional, ao próprio presidente da República.

A nação anseia pelo respeito à Constituição. Precisamos de ajustes discutidos e votados, sem o toma-lá-dá-cá, pelo Congresso Nacional. Desejamos a preservação das conquistas democráticas. O povo quer eleições limpas e com apuração confiável.

Se o presidente Jair Bolsonaro não pode cumprir o papel que lhe é destinado constitucionalmente, não lhe cabe outra saída senão entregar o Governo ao seu legítimo sucessor.

É consenso que a presidente termine o seu mandato como prevê a Constituição. Tudo isso é salutar para a Democracia. Mas, para isso, a presidente da República terá de desistir desta sua política nociva e desse negacionismo infantil que está prejudicando o Brasil e os brasileiros.

Os brasileiros não desejam golpes nem contragolpes. Querem preservar e cada vez mais aperfeiçoar o processo democrático, duramente construído e manter a estabilidade econômica obtida pelo Plano Real, que está sendo jogada no lixo da História.

Mas, igualmente, não admitem que seja o Poder Executivo, por interesses espúrios, que promova o caos social e tente confundir o povo levando os brasileiros ao desespero e literalmente matando de fome sua população!

Os Poderes Legislativo e Judiciário, as Forças Armadas, e todos os segmentos democráticos devem estar vigilantes para combater todos os que pretendem ameaçar a Democracia.

O País já sofreu além dos limites com este desgoverno. Agora, chega de tanta bobagem e de tanta mentira!