domingo, 19 de julho de 2015

Manual de uso de esquerdas e direitas


Levantamos com boa sorte se for “com o pé direito”. Ao contrário, o dia começa mal se levantamos com “o pé esquerdo”. Na Bíblia a bênção é dada e a herança é transmitida com a mão direita. Os justos estarão à direita de Deus, e os condenados, à esquerda. No entanto, nascemos com o coração à esquerda. E o coração é considerado popularmente o motor dos afetos e da vida.

É curioso que, desde a mais remota Antiguidade, tudo o que é melhor se atribui ao lado direito, e o pior, ao esquerdo. No sistema dos hieróglifos egípcios, entrar é ir para a direita, e sair é para a esquerda. Na Grécia antiga, Pitágoras obrigava a entrar nos templos pagãos com o pé direito. Para Píndaro, a direita significava a sabedoria e a astúcia.

Em nosso mundo pós-moderno discute-se o significado dos termos esquerda e direita sobretudo depois do recrudescimento do capitalismo financeiro de rapina, da queda do comunismo e do desastre dos populismos socialista que acabam resvalando no fascismo de Estado.

Ao mesmo tempo, psicólogos, antropólogos, sociólogos e linguistas continuam sem saber decifrar por que, como afirma o poeta simbolista catalão Juan Eduardo Cirlot, desde sempre os humanos identificam o lado direito com o futuro, o legítimo e a vida e o esquerdo com o passado, o reprimido e a própria morte.

A Bíblia, e com ela toda a cultura do judaísmo, também elogia e privilegia a direita. Aos sacerdotes era oferecida a perna direita da vítima sacrificada, segundo o livro do Levítico (7).

Moisés, no Êxodo (15) dirige-se assim a Deus: “Em sua direita, gloriosa está a força.” E no Eclesiastes (10) se lê: “O coração do sábio o guia para a direita, e o do néscio, para a esquerda.”

Em toda a tradição rabínica, a escuridão foi criada pela mão esquerda de Deus, e a luz por sua direita. Na língua hebraica se lê da direita para a esquerda.

No Novo Testamento, o Messias se sentará “à direita de Deus” (Mt16) e, depois do juízo final, os justos se colocarão à direita do Altíssimo e os condenados à sua esquerda.

Os evangelistas recordam que, na cruz, o bom ladrão estava à direita de Cristo e o mau à sua esquerda. E na maior parte da iconografia cristã, a cabeça de Cristo morto se inclina para o lado direito, raramente para o esquerdo.

Quando os apóstolos se queixam ao Mestre que não conseguiam pescar, Jesus lhes diz que é porque estavam jogando a rede para a esquerda. “Jogue-as à direita” (Jn.21), recomenda-lhes, e as redes voltaram carregadas de peixes. A sorte e a eficácia eram prerrogativas da direita.

Mais tarde, Dante Alighieri, na Divina Comédia, coloca o Paraíso à direita e o inferno à esquerda.

A única explicação plausível, segundo antropólogos e historiadores, para essa preferência dos antigos pela direita é que se acreditava que o sol nascia à direita, trazendo a luz e a vida, e se punha à esquerda, causando a escuridão e a morte.

A preferência dos antigos pela direita é que se acreditava que o sol nascia à direita, trazendo a luz e a vida, e se punha à esquerda, causando a escuridão e a morte

Na era moderna, os termos esquerda e direita adquirem na política significados diferentes dos meramente históricos. Tudo começa com a Revolução Francesa. Os nobres se sentavam à direita do monarca e os radicais, à esquerda.

Ainda hoje, nos banquetes e cerimônias oficiais, o comensal mais importante é colocado à direita do anfitrião. Curiosamente, até nos rituais marxistas, levanta-se com punho cerrado a mão direita, não a esquerda.

Depois das revoluções socialistas, a esquerda se vinga de seu atávico papel de inferioridade espacial. Os comunistas e socialistas começam a identificar-se com as causas da justiça e da liberdade, colocam-se ao lado dos mais fracos e marginais e lutam contra o capitalismo para dar o poder à classe trabalhadora.

É a reivindicação da esquerda social em defesa dos trabalhadores contra a injustiça de uma direita egoísta e excludente.

Hoje essa esquerda aparece em crise ou desiludida, e o jogo das políticas é no centro.

O que ocorreu é que uma certa esquerda, cuja bandeira era empunhada pelas massas deserdadas e órfãs de identidade, acabou aburguesando-se, contagiando-se com os pecados da direita até perder sua virgindade ética. Ocorreu na Itália, onde floresceu um dos partidos comunistas mais fortes da Europa. E está acontecendo no Brasil, onde até Lula admite que seu partido, que já foi o maior e com maior prestígio da América Latina, está em crise e não entusiasma os jovens.

A esquerda se deixou seduzir pelas seduções da riqueza fácil, e seus dirigentes começaram a viver como os ricos capitalistas.

No Brasil, como em boa parte da América Latina, a esquerda continua, no entanto, mantendo para muitos a fascinação e a memória das reivindicações sociais contra a avareza capitalista.


Mesmo assim, depois da queda do comunismo e do Muro de Berlim, os países procuraram novos rumos de política social-democrata sem dicotomias radicais, fazendo política distanciada da esquerda e da direita.

A defesa dos direitos humanos e dos trabalhadores já não é prerrogativa única das esquerdas. Foi um imperativo para criar sociedades mais igualitárias.

Hoje o mundo vive momentos de areia movediça. Voltam, alimentados pelas crises econômicas mundiais, os extremismos de ambas as cores e as novas classes médias, chegadas do mundo do trabalho, movem-se com parâmetros diferentes das antigas reivindicações radicais da luta do proletariado contra a burguesia.

É um momento de passagem da ciência política e econômica, que exige soluções novas e criativas para fugir de velhos esquemas do passado.

Quando minha filha Maya tinha 5 anos e começava a aprender os conceitos básicos de tempo e espaço, perguntava-me onde ficavam a direita e a esquerda. Lembro que lhe dizia, com clara cumplicidade, que a esquerda estava sempre do lado do “coração” e que era com ele que ela “me amava”.

Muitos anos depois, um pedreiro que fez reformas na casa onde moro tornou-se alcoólatra. Teve que deixar de trabalhar. De vez em quando o encontro, cambaleando em sua velha bicicleta. Ainda se lembra de mim. Para, tira o gorro e me dá a mão, mas não a direita. Faz isso com a esquerda. “É a mão do coração”, explica.

Quando a esquerda se esquece, no entanto, de usar o coração na hora de defender os direitos dos mais desafortunados e prefere o compadrio e a fascinação pelos privilégios e luxos burgueses da direita, há o perigo de que se sinta tentada, como na Antiguidade, a crer que o bom está sempre à direita e a traição, à esquerda.

Dilma não sabe a diferença entre democracia e ditadura

Se alguém tivesse de cumprir a desagradável missão de escolher o discurso mais infeliz de Dilma Rousseff, estaria certamente diante de uma difícil tarefa. A competição da presidente consigo mesma, nesse quesito, é feroz. A fala desta sexta-feira, ao receber presidentes do Mercosul, no Palácio do Itamaraty, chega a ser nauseante. E por vários fatores que se combinam.

Para uma audiência que reunia truculentos notáveis como Nicolás Maduro (Venezuela), Cristina Kirchner (Argentina) e Evo Morales (Bolívia), a presidente brasileira teve a coragem de afirmar: “Somos uma região que sofreu muito com as ditaduras. Somos uma região onde a democracia floresce e amadurece. No ano passado, houve eleições gerais no Uruguai e no Brasil. Este ano, é a vez da Argentina e da Venezuela. A realização periódica e regular desses pleitos dá capacidade de lidar com as diferenças políticas. Temos de persistir nesse caminho, evitando que as disputas incitem a violência. Não há espaço para aventuras antidemocráticas na América do Sul.”

É bem provável que Dilma estivesse querendo dizer que uma eventual ação em favor do seu impeachment ou que a cassação do seu mandato pelo TSE se encaixariam na classificação de “aventuras antidemocráticas”. É claro que ela sabe ser uma mentira escandalosa.

Dilma pode não ser o melhor exemplo a que pode chegar a inteligência política brasileira, mas ela sabe que a simples realização de eleições não garante um regime democrático. Fazer tal afirmação diante de um ditador asqueroso como Nicolás Maduro e de um protoditador como Evo Morales chega a ser uma provocação grotesca ao bom senso. No ano passado, 40 pessoas foram assassinadas nas ruas da Venezuela por milícias a serviço do regime. Há presos políticos no país, e a imprensa está sob severa censura.

E coube justamente a Maduro descer ao esgoto moral. Afirmou: “Temos um presidente indígena (Morales), há um movimento bolivariano, que somos nós, de pé. E ninguém vai nos apagar do mapa. Nenhuma pressão política vai nos apagar. Há 40 anos, houve o Plano Condor, e não desaparecemos. Somos um projeto democrático, inclusivo”.

O “Plano Condor” é o nome pelo qual é conhecida a colaboração entre as várias ditaduras militares havidas na América do Sul nas décadas de 60 e 70. Hoje, regimes violentos e populistas também se amparam mutuamente, todos eles endossados pelos governos do PT, partido que sonhou emplacar por aqui algo semelhante. Trata-se de um “Plano Condor de esquerda”. Aliás, quando Dilma insiste em associar o cumprimento da lei à quebra da ordem democrática, ela o faz sob a inspiração desse pensamento delinquente.

E, claro, a pantomima não estaria completa sem a homenagem de Dilma a Cristina Kirchner, que voltou a levar a Argentina à beira do abismo: “Nesses oito anos em que lhe coube presidir a nação Argentina, você imprimiu posição firme e democrática a seu país. Do ponto de vista pessoal e político, quero dizer que você terá no Brasil uma amiga sempre pronta para compartilhar sistematicamente sonhos e esperanças”.

A brasileira, acreditem, tinha lágrimas nos olhos. No poder, Cristina Kirchner estimulou, ela também, a formação de verdadeiras milícias e tentou censurar a imprensa livre. O cadáver do promotor Alberto Nisman se revirou no túmulo. Dilma, no entanto, chorou de emoção. E aí falou a louca de Buenos Aires: “Qualquer estado integrante do Mercosul, ou da Unasul (União de Nações Sul-Americanas), em que o governo seja removido por outro que não seja produto de eleições livres, populares e democraticamente eleito perde o caráter de estado membro.”

Também é de revirar o estômago. Cristina e Dilma, juntas, suspenderam o democrático Paraguai do Mercosul — por ter deposto legal e legitimamente um presidente — e aproveitaram o momento para abrigar a Venezuela do ainda vivo Hugo Chávez. Até então, o Senado paraguaio se negava a aprovar o ingresso do novo membro justamente porque reconhecia o país por aquilo que é: uma ditadura.

Ah, sim: a cerimônia marcou o ingresso da… Bolívia no Mercosul! O bloco já é hoje um atraso de vida para o Brasil. Entre outras razões, porque as decisões têm de ser tomadas por consenso. O bloco impede o Brasil de celebrar acordos bilaterais substantivos porque tem de se vergar às restrições de seus parceiros. Agora, teremos de nos submeter também às exigências bolivianas.

Enquanto isso, livres para voar, Chile, Peru, Colômbia e México celebram a Aliança do Pacífico, de costas, literalmente, para os bocós do Mercosul. O mal que o PT faz ao Brasil vai deixar marcas por muitas décadas. Já estamos começando a viver a herança maldita. E ela está apenas no começo.

Reinaldo Azevedo

O espetáculo da canalhice

Dado o pouco a que se presta a TV em matéria de discussão de ideias, é natural que a atenção, aflita à procura de um foco, se concentre no espetáculo nada elevado mas divertido dos mútuos assanhamentos da política. Fazem bem jornalistas e realizadores em deixar chover as chapadas ao gosto dos pugilistas.
Miguel Esteves Cardoso

Os donos da crise

Salve-se quem puder e como puder. Desde que a Operação Lava-Jato se aproximou de forma incontestável do Planalto e do Congresso Nacional, essa tem sido a regra.

Com a lama já batendo no queixo, aqueles que deveriam ser exemplares na defesa e respeito aos poderes constituídos agem para desestabilizar as instituições. E, com a já conhecida desfaçatez, o fazem em nome da normalidade democrática.

Ninguém escapa: a presidente Dilma Rousseff, o vice Michel Temer, os presidentes do Senado, Renan Calheiros, e da Câmara, Eduardo Cunha - um showman especializado em pirotecnias -, o ex Lula e dirigentes do PT.

Na tentativa desesperada de se safarem, tentam fazer crer que são as instituições, e não eles, o cerne da crise.

Cada um despeja culpas em outros e todos culpam o Ministério Público, a Procuradoria Geral da República e a Polícia Federal por fazerem exatamente o que tem de ser feito: investigar e denunciar.

A categoria dos que se acham intocáveis parece nada ter apreendido com o Mensalão. Reincide nos delitos e na conduta pós-crime.

Espanta-se com as ações das diferentes instâncias da Justiça. Considera ingratidão a recusa do ministro do Supremo, Teori Zavascki, em abrandar prisões. Esperneia nas aprovações de delações premiadas, quebras de sigilo e de mandados de busca e apreensão em casas de políticos, como o que desbaratou a frota não declarada de carros de luxo do ex-presidente deposto e senador da base aliada, Fernando Collor de Mello (PTB-AL).

A saída, com menor ou maior estardalhaço - caso típico do presidente da Câmara, acusado de ter recebido uma bolada de US$ 5 milhões -, é fazer confusão, ameaçar, subir o tom, criar clima de ruptura institucional.

A tese de instituições e democracia em risco, levada ao extremo por Renan e Cunha na semana passada, já vinha povoando discursos de Dilma e de seu vice, de Lula e do PT. Acuados, todos reclamam de vazamentos seletivos de depoimentos à Justiça, denunciam interesses escusos genéricos e golpismo.

Os petistas, com uma imaginação fertilíssima, materializam maquiavélicas fileiras da direita, orquestradas para barrar o projeto do PT – sabe-se lá qual – e a volta de Lula, o grande, à Presidência da República.


O país já está mergulhado em crises política e econômica gravíssimas, com crescimento negativo, desemprego e inflação em alta, uma presidente da República frágil, impopular, sem crédito algum depois de se reeleger sob um manto de mentiras. Tudo o que não precisa é de uma crise institucional forjada ora por Lula e o PT, ora pelo Planalto, ora por Renan ou Cunha.

Todos, sem exceção, miram na destruição da credibilidade da Justiça para salvar suas peles.

Mas, por maior que seja a tentação do presidente do STF, Ricardo Lewandowski, que, em inexplicável segredo, se reuniu com Dilma em Portugal -, as instituições de Estado provaram e continuam a demonstrar que não caem em armadilhas. A expectativa é de que nem ao menos tropecem.

Do contrário, aí sim, a crise institucional se tornaria real. Uma temeridade.

Um a putrefação lenta demais

A percepção externa da crise brasileira está bem retratada na revista peruana "Caretas", cujo número mais recente diz que a Lava Jato "é a mais importante investigação anticorrupção na história brasileira e latino-americana".

É dizer muito quando se conhece como a história latino-americana é prenhe de escândalos formidáveis de corrupção.

O ponto alto do escândalo em curso foi a abertura de investigação a respeito de Luiz Inácio Lula da Silva, notícia que não escapou a nenhum jornal mais ou menos relevante do planeta.

"The New York Times" deu, aliás, um título significativo: "Brasil acrescenta ao inventário dos escândalos de corrupção a investigação de um ex-presidente".

Já estamos, pois, pelo menos aos olhos de um dos grandes jornais do planeta, com um dossiê tão formidável de corrupção que se transformou em inventário –algo que usualmente se faz post-mortem.

É natural, em assim sendo, que o público brasileiro sinta um cheiro nauseabundo de putrefação do ambiente político.

Claro que sempre é preciso ressalvar que todo mundo é inocente até prova em contrário –e a delação premiada não é suficiente como prova.

Mas o inventário a que se refere "The New York Times" está durando tempo demais, sem que haja culpados em definitivo, condenados pela Justiça ou inocentes definitivamente declarados, depois das investigações competentes.

É urgente acelerar as coisas, sem, claro, abandonar todas as cautelas que garantam uma investigação limpa e legítima e a preservação integral do direito de defesa.

Está na hora de o Judiciário, até agora o único dos três Poderes cuja cúpula não foi colocada sob suspeição, criar uma força-tarefa, em coordenação com o Ministério Público e a Polícia Federal, para encerrar o "inventário", mandando para a cadeia quem merecer e passando atestado de bons antecedentes para quem for inocente.

Um país, qualquer que seja, não pode conviver eternamente com a suspeita de que seus principais líderes e alguns de seus principais empresários são corruptos.

Como diz o subtítulo do artigo de sexta-feira, 17, de Pedro Luiz Passos, presidente do Instituto de Estudos do Desenvolvimento Industrial, "sem solução do imbróglio político em que o país se meteu, a economia não voltará a crescer".

Uma parte importante do imbróglio é dada pela discussão cada vez mais escancarada sobre uma eventual defenestração da presidente Dilma Rousseff.

É importante deixar claro, nesse capítulo, que impeachment não é golpe, pela simples e óbvia razão de que está previsto na Constituição e –como diria o Conselheiro Acácio– o que é constitucional não é golpismo.

Feita essa ressalva, é indecente tratar do afastamento da presidente pelas costas, em conversas de bastidores entre altas autoridades.

Impeachment é algo que se tem de encarar de frente. Se alguém acha que há razões que justifiquem a abertura do processo (eu acho que não há), que as apresente de peito aberto no foro adequado.

Seria a única maneira decente de encerrar pelo menos parte desse sórdido "inventário".

Sucupirópolis, do vagão rosa ao fuá grá

Primeiro Haddad sancionou a lei que proíbe a venda e produção de foie gras em São Paulo. Depois, no Rio, aprovaram o projeto do vereador Cesar Maia que transforma o sotaque carioca em bem imaterial da cidade. Ainda cabe o veto de Eduardo Paes, é verdade, assim como a iguaria das iguarias já está liberada na Pauliceia, entretanto os dois casos dizem muito sobre nossa vocação para a caipirice.

Claro que o episódio paulista foi mais emblemático. São Paulo é cinza, dura e raçuda, cidade impermeável aos estereótipos de uma nação tropical e portanto nada afeita a perder tempo com tolices. Digo, tivesse a praia ao invés do Ibirapuera, duvido que o paulista cairia na pataquada de bater palmas para o pôr do sol. Quando muito buzinaria em protesto, certamente atrasado para algo mais importante.

Fica a pergunta, como podem tentar impor um nível tão grotesco de provincianismo ao cidadão paulista, precisamente ao cidadão paulista, sortudo habitante de uma terra onde pelo menos fagulhas de cosmopolitismo ainda conseguem ser percebidas? De resto, apoiar a demonização de um alimento, sob o pretexto deste ser fruto de tortura aos animais? Fico exausto só de pensar no trabalho que deve dar levar-se tão a sério.

Já sobre a outrora Cidade Maravilhosa, o que dizer? Como carioca, lamento vê-la cada vez mais cafona, cara e perigosa. Eu, que sempre critiquei a masturbatória ladainha narcisista, como se beleza natural fosse mérito e não um tremendo golpe de sorte, hoje em dia me vejo obrigado a capitular, até por que não restou outro argumento.

Rio, São Paulo, Brasil. A verdade é que somos imbatíveis no quesito auto-elogio. Nossa vaidade é tanta que transborda e acaba se misturando a outras nojeiras como hipocrisia, demagogia e, claro, ao populismo. Ficamos sexualmente excitados quando damos de cara com a oportunidade de chafurdar no lugar comum, em regurgitar qualquer baboseira com a mínima pinta que seja de politicamente correta. E pouco interessa se de fato comungamos do ponto em questão.

Pois essa maneira de pensar subdividiu-se e deu luz a um falso “autoritarismo do bem”, este endossado em programas de tv, jornais e botequins. No fundo um subterfúgio, assim conseguimos fechar nossos olhos para questões espinhosas e ainda reforçamos a ilusão de sermos moralmente superiores.

Esses episódios mais recentes, tanto o do foie gras quanto o do sotaque carioca, são fanfarras, se comparados ao vagão exclusivo para mulheres, o veto de bebidas alcoólicas em estádios, a tresloucada proibição de armas brancas após um assassinato, sem esquecer das infinitas gratuidades e filas preferenciais.

Estou exagerando? Tudo bem, aceito a crítica. Tanto que convido você para um papo franco em qualquer bar ou restaurante do Espírito Santo, assim deixamos um pouco Rio e São Paulo de lado.

Em tempo: Pensei em algo simples, uma conversa regada a guaraná e batatas fritas, mas me lembrei que por lá, de olho na saúde da população, foi sancionada uma lei proibindo o saleiro.

Queixas de um utente

Pago os meus impostos, separo
o lixo, já não vejo televisão
há cinco meses, todos os dias
rezo pelo menos duas horas
com um livro nos joelhos,
nunca falho uma visita à família,
utilizo sempre os transportes
públicos, raramente me esqueço
de deixar água fresca no prato
do gato, tento ser correto
com os meus vizinhos e não cuspo
na sombra dos outros.

Já não me lembro se o médico
me disse ser esta receita a indicada
para salvar o mundo ou apenas
ser feliz. Seja como for,
não estou a ver resultado nenhum. 

José Miguel Silva

Unusquisque

No primeiro semestre deste ano perderam-se 350 mil empregos, e muitos outros estão assustadoramente dependurados por um fio. Pagamos pecados, mas, além de os pagarmos, nota-se pouca competência para minorar os efeitos dolorosos. Parece que no país se instalou uma renúncia à inteligência, uma espécie de fatalismo que engessa a capacidade de reação.

É preciso recorrer à psicologia para entender o estado surrealista que se instalou.

Para George Groddeck, os sinais exteriores denotam a essência que predomina no interior do ser humano. Joaquim Levy não enxerga bem de longe, faltam-lhe muitos graus, e usa lentes espessas. Os traços exteriores, segundo Groddeck, refletem e explicam o que há no interior. Quem deixa crescer a barba tem no íntimo o desejo de se esconder atrás dela, não quer se mostrar, despista a insegurança; quem não enxerga bem de perto é porque perto não quer ver algo que o incomoda; com o envelhecimento isso se acentua para não se ver a decadência insurgente; quem não enxerga bem de longe costuma ter uma visão mais confusa de futuro. Esse é o caso de Levy.

Quem se interessa, e tem disposição ao esforço mental para uma autoanálise, leia esse autor, contemporâneo de Sigmund Freud, cuja importância não é menor que a do precursor da psicologia moderna.

O abade Constant reconheceu que a mulher bondosa, gentil, caridosa consegue manter traços mais suaves e graça feminina apesar dos anos. Para manter-se atraente e charmosa, a prática de virtudes ajuda mais que maquiagem e botox. Também o homem se conserva atraente exercitando bons pensamentos e ações.

Não se trata apenas de uma lenda ou de suposição, fica claro com os adeptos da ioga que conservam aspecto extraordinariamente juvenil com idade de mais de 100 anos. Você nunca viu? Procure. São raros, existem e fogem da regra da vida comum. Sabem se esconder.

O mito da imortalidade é o segredo de não envelhecer, de se manter intacto e jovem de alma, consequentemente de corpo. “Mens sana in corpore sano”, o indivíduo deve lembrar que se imunizará à oxidação evitando maus pensamentos e as práticas de vida corrosivas.

Não precisará de fármacos contra o envelhecimento.

“Somos o que pensamos”, lembra o sábio. Disso a importância da higiene nos pensamentos, sem “gorduras e tóxicos mentais”.

Existe uma incrível inteligência na natureza, à disposição de qualquer um, que faz com que um carnívoro evite se alimentar de outro carnívoro, pois nem ele suportaria a dose.

Dante Alighieri deu uma dica: “Feitos não fomos para viver como energúmenos brutais, mas para nos exercitarmos nas virtudes e no conhecimento”. Justamente por isso no Inferno dantesco encontramos os pecadores hediondos, e nos piores lugares desse fim de outro mundo, sofrendo as penas mais duras, aqueles que em “época de crise moral se mantiveram neutros”. Podiam intervir, e não o fizeram.

Abster-se do “dever” representa falha grave, assim como assistir imóvel a uma criança exposta ao risco de ser tragada pelo vício.

Os efeitos da ação e da omissão precisam ser devidamente considerados, como adverte o provérbio romano “unusquisque est faber suae fortunae”. Quer dizer que a nossa sorte nós mesmos a construímos. Culpar os outros... pouco adianta.

Neste momento de grave crise que se abate sobre a nação cabe a qualquer um, que possua um mínimo de lucidez, enxergar não apenas em volta, mas especialmente dentro de si, parar de reclamar de braços cruzados, sair da neutralidade. E quem tem mais, mais deve oferecer nesse esforço.

A nudez crua da verdade

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A sociedade brasileira sairá mais sólida desse purgatório em que desconstrói os seus mitos e enfrenta o cara a cara consigo mesma

Desalento e desesperança estão no ar. Ambos são tóxicos e maus conselheiros. Conduzem à paralisia ou ao cinismo do salve-se quem puder.

Sem minimizar o peso que a corrupção da política e os desastres da economia têm no cotidiano de cada um é bom lembrar que por maiores que sejam os desgostos que provocam o Brasil não se esgota na Praça do Três Poderes. A vida é feita de luzes e sombras e se só enxergarmos as sombras estaremos pecando por omissão. Há uma leitura possível dos fatos que é produtora de sentido e renovadora de esperança.

Saint Exupéry conhecia o poder constituinte da esperança. “Quem quiser construir um barco, não comece por juntar as madeiras, cortar as tábuas e distribuir o trabalho, e sim por despertar nos homens o desejo do mar aberto e infinito”.

É esse desejo de um novo horizonte, a dimensão da esperança, que já não conseguimos experimentar. Colados à temporalidade vertiginosa da notícia, a vista vai ficando míope. Sabemos tudo e imediatamente sobre a cotação das bolsas e os escândalos do dia. Telas divididas em quatro informam sobre quatro continentes, mil amigos na internet filmam o que acontece em cada esquina. A enxurrada de informações transborda da capacidade de processamento e nos deixa órfãos de sentido.

Essa subversão contínua do imediato por outro imediato, essa aceleração patológica não dá chance ao pensamento de amadurecer. Vão ficando à margem questões essenciais. Em que tipo de sociedade queremos viver? É possível escapar à violência de todos contra todos? Que novos atores estão influindo no destino do país? Questões que pedem maturação quando os velhos arcabouços ideológicos estão caindo de podres.


O cenário político é degradante, com dois ex-presidentes da República e os presidentes da Câmara e do Senado sob investigação da Justiça. Em compensação temos um Poder Judiciário que funciona. A coragem de juízes e procuradores que conduzem a operação Lava-Jato redime o país das bandalheiras que a operação vai revelando. O país que eles desvelaram não teria existido se o Judiciário tivesse sempre atuado como está atuando agora. Daqui para frente será bem mais difícil debochar da lei e transformar o Congresso em esconderijo.

Os brasileiros em sua esmagadora maioria ganham suas vidas com trabalho honesto e mal visualizam as cifras delirantes envolvidas na roubalheira de que ouvem falar. A indignação dessa população cresce a cada dia, alheia às querelas intramuros de partidos decadentes. É dela e, sobretudo, da juventude, que não se reconhece no Brasil que estertora, corrupto e carcomido, que virá a invenção de contextos originais de participação e a renovação de lideranças para governar o pais.

A execração pública de políticos que sempre foram de moralidade duvidosa, até aqui blindados em suas imunidades, o desmascaramento dos falsos heróis populares que, enfim, começa a romper a blindagem até mesmo dos que se julgavam invulneráveis, é uma purga necessária. Razão de otimismo.

Se dos porões do obscurantismo ressurgem atitudes e ideias que imaginávamos superadas e que se traduzem em tentativas de, via Congresso Nacional, balizar a sociedade brasileira com dogmas religiosos, esse açodamento tem a natureza aterrorizada de um exorcismo. O pavor de ver triunfar a ética libertária na maneira de viver e fazer escolhas morais.

Esse reacionarismo — e aqui essa palavra tão ultrapassada se justifica — é o reconhecimento por falsos moralistas de que a sociedade mudou. Improvisam-se, então, às pressas, projetos de lei estapafúrdios para tentar deter o curso do mundo contemporâneo. O destino desses projetos de lei que, na contramão da experiência vivida pela maioria da população, visam a cortejar o eleitorado mais conservador é virar letra morta. Mais uma razão de otimismo.


Se tanta violência eclode entre nós, sobretudo na internet onde as facadas virtuais são impunes, é porque este continente selvagem tem muito do mundo inconsciente. Sem lei, sem tabu, sem superego, o comportamento dessa população incorpórea assusta. Não somos as doces criaturas que pensávamos ser. A evidência de nossa violência envergonha e está sendo reconhecida e condenada. Instrumentos de vigilância e de regulação já tentam civilizar o continente selvagem.

A sociedade brasileira sairá mais sólida desse purgatório em que desconstrói os seus mitos e enfrenta o cara a cara consigo mesma.

Não há razão para desalento. O Brasil está vivendo um dos momentos mais fascinantes de sua história. O fim da impostura, a hora da nudez crua da verdade.