sexta-feira, 28 de maio de 2021

Bolsonaro e Pazuello zombam das Forças Armadas

Jair Bolsonaro já logrou êxito no seu intento de desmoralização das Forças Armadas. Ao colocar o folgazão general Eduardo Pazuello debaixo de sua asa e impedir que ele sofra a punição que sua conduta ao comparecer a um comício político exigiria, o presidente da República liberou geral a anarquia militar. E faz isso porque quer se beneficiar dela.

É puro método a estratégia de corromper as instituições por dentro, que o bolsonarismo, tal qual uma praga de cupins, vai levando a cabo ao longo dos últimos dois anos e meio.

No caso das Forças Armadas, o atual presidente primeiro ganhou os generais com o canto da sereia da necessidade de acabar com a corrupção do PT. Graças a essa fantasia, fez com que os generais, que antes o desprezavam, passassem a vê-lo como seu candidato em 2018, a ponto de cruzarem, já ali, a linha ao ameaçar não aceitar a decisão do STF caso fosse concedido habeas corpus para soltar o ex-presidente Lula.

Vencida a eleição, os generais foram instalados de volta no poder, com direito a um vale-tudo em que os da ativa assumiram cargos políticos, algo que todos os conhecedores da hierarquia militar sempre alertaram que daria confusão.


A ascensão política rendeu frutos: foi feita uma reforma da Previdência sob medida para os fardados, cujos privilégios já eram evidentes, mas estão escancarados agora: um aumento de R$ 5,5 bilhões nos gastos com pessoal militar em 2020.

Como o poder vicia, os generais foram perdendo a mão dos limites, e cada vez mais atrelando a instituição aos anseios de Bolsonaro. Aceitaram graciosamente seu pedido de cabeça do comandante do Exército, Edson Pujol.

O general Braga Netto topou de bom grado substituir Fernando Azevedo e Silva, um de seus pares submetido ao moedor de carnes bolsonarista — mais um, depois de Santos Cruz e Otavio do Rêgo Barros.

E agora o Exército se prepara para uma nova capitulação: deve fechar os olhos para o escárnio da participação de Pazuello num comício de reeleição de Bolsonaro, zombando da CPI da Covid e da população enlutada.

A carta entregue pelo ex-ministro da Saúde para explicar sua presença num caminhão de som, sem máscara, para ouvir um discurso de campanha do presidente apenas dois dias depois de mentir perante a CPI já nasce um clássico do cinismo.

Pazuello diz que não foi a um ato político, mas a um… passeio de moto! Que o fato de não ser um evento político estaria demonstrado porque, vejam só, Bolsonaro não é filiado a nenhum partido. “Não contavam com a minha astúcia”, se jactaria o personagem mexicano Chapolin Colorado.

E a desculpa esfarrapada deverá ser engolida pelo comando das Forças Armadas, que ainda aceitou um “cala-boca” dado por Bolsonaro, que proibiu a emissão de qualquer nota a respeito da conduta de Pazuello.

A voracidade em subverter a disciplina é tamanha que ontem mesmo o presidente reuniu Braga Netto, o comandante do Exército e soldados numa preleção política, com direito a falar de 2022 e polarização eleitoral, ao inaugurar uma obra em São Gabriel da Cachoeira. No discurso, voltou a fazer menção à possibilidade de pedir que as Forças Armadas cumpram uma certa “missão”, “dentro das quatro linhas da Constituição”, para restabelecer uma “normalidade” que ele diz estar sendo conspurcada.

Essa interpretação mentirosa do que a Constituição determina como papel das Forças Armadas tem sido repetida pelo presidente e seus aliados em tom de ameaça toda vez que Bolsonaro se vê acuado, seja pela CPI, seja pela queda da popularidade, seja por pesquisas que mostram que ele não terá vida fácil nas urnas no ano que vem.

Ao aceitarem fazer parte desse roteiro com intenções golpistas, as Forças Armadas se apequenam e permitem a implosão da hierarquia e da disciplina, que deveriam ser seus dois pilares inegociáveis.

'Brasil, Um País Somente'

O Brasil é um fingidor, e por isso mesmo mente. Compulsivamente mente e chega a fingir que não existe um ditador, que, aliás, deveras mente. Mente solenemente. Que não existe pandemia, que cloroquina cura gente, que vacina é uma aguinha, tudo eloquentemente.

Realismo mágico em três versões

Com o realismo mágico, García Márquez reportou o mundo a sua volta, em particular o de sua juventude vivida no interior da Colômbia. Sim, era uma espécie de reportagem sobre o extraordinário embutido nas histórias narradas por seus avós e de modo algum criado por ele. Na minha infância, eram comuns os casos situados na fronteira entre o real e o imaginário, entre o visível e o invisível. Eu também — e muita gente de sessenta anos ou mais — poderia ter inventado, se me fosse dado talento, o realismo mágico, bastava registrar, ao lado de mulas sem cabeça e sacis, as peripécias de meus antepassados. O avô materno de minha mãe colocava maçãs na cabeça de suas filhas e, de uma certa distância, atirava na fruta. Verdade? É o que sei. Nas mãos de Gabo, suspeito, as maçãs seriam para lá de rubras e as meninas, apesar de pálidas, esperariam os tiros de olhos abertos.


O escritor colombiano não só registrou as histórias de seus ancestrais, falsas ou verdadeiras, o que ele não poderia atestar, como também espalhou, a seu gosto, ervas e pimenta sobre elas. Não fosse assim, não seria um escritor, mas um contador de causos. Nem contador de causos, já que esses, ao relatar o que viram ou ouviram, dão um jeito no inverossímil da realidade. Não sendo escritor nem contador de causo, García Márquez talvez pudesse ter sido um contabilista com talento para esconder do fisco parte da renda de seus clientes. Sempre projeto sobre o Nobel de 1982 a pecha de mentiroso. Creio que lhe cai bem.

O boom da literatura fantástica ficou para trás. Entretanto esses dias tão cheios de assombros parecem propícios à exploração do mágico. Sendo assim, sugiro três argumentos, que podem ser explorados em diferentes nichos de mercado, àqueles que nalgum canto do universo escrevem sob a bênção do velho Gabo. Corram à cozinha, separem os temperos mais picantes e mãos à obra.

Distopia: no lugar dos coronéis déspotas, velhos e sozinhos, o personagem é o homem orgulhoso da própria ignorância e fiel à violência. Ele tem o olhar vidrado, não como o de um louco, mas como o de uma besta. Recusa o passado, encantado ou não, por ser um tempo morto. Seu foco são o presente, para desfrutar as benesses da fortuna, e o futuro, para garantir a boa vida dos descendentes e perpetuar o próprio nome como um herói da pátria. Ambicioso e gabola, apresenta-se numa versão mais que requentada do velho caudilho. O déspota atualizado percebe a passagem do real para o virtual, no qual age. As fake news, sua mão sobre o novo mundo, trocam o acaso e a riqueza do contraditório por algoritmos que escravizam, inicialmente, aqueles que o escolheram como libertador e, em seguida, os demais.

Humor: o olhar vidrado do poderoso expressa o assombro de quem não entende uma vírgula do que está se passando. Ele é o menino do “A vida é bela” que, ao crescer, continuou a enxergar o real como um jogo. Em vez de viver, joga, e tudo para ele — inclusive ou principalmente o horror — é encantamento e beleza. Envolvido em sucessivas situações vexatórias, como a de negar a ciência, bradar contra a democracia e babar de medo, vê-se transformado num palhaço sem graça e sem circo. Quando chega ao limite da tolerância, ao apontar o dedo contra seus detratores e ameaçá-los de morte, causa mais riso que medo. Não fosse, apesar de patético, perigoso, seu desatino seria comovente.

Terror: o novo Messias teria voltado à terra para acabar com a corrupção original, o passo em falso de Adão e Eva, e com a alimentada pela cobiça. Seu discurso enaltece um passado em nada similar ao fantasmagórico e recorrente de Garcia Marques, mas um que nunca existiu, aquele no qual, sob ditadura, homens e mulheres foram felizes. Encontra seguidores fanáticos, no entanto, quando o discurso messiânico se transforma em idiotice política, surgem os desiludidos, que, em número crescente, fogem para lugares distantes, se ajeitam em pequenos sítios e abandonam o mundo virtual, praça de guerra do líder. O até então ídolo se vê incapaz de manejar a tecnologia a seu favor, perdendo assim o poder de influir com suas mentiras na vida de todos, seus partidários ou não. Abandonado, meio milhão de almas penadas o visitam e o aniquilam. Enquanto isso, os fugitivos se agarram à única ideia do falso Messias com a qual ainda concordam, a de o passado ter sido o melhor momento não exatamente de suas vidas, mas da existência humana. Empenham-se, então, em reerguer montanhas, replantar florestas, desinventar a agricultura, sobreviver da caça, enfim, dedicam-se a arrastar suas vidas cada vez mais para trás. Até que chega a hora de enfrentar os dinossauros.

Pensamento do Dia

 


A CPI e o Tribunal de Nuremberg; quem banaliza o quê?

Sempre que a evocação do Holocausto ou do tribunal de Nuremberg servir para justificar a truculência e a morte e para minimizar o horror, estejam certos de que estarei aqui e em qualquer parte para repudiar tal manifestação. E quem fala por mim? As muitas dezenas de artigos que já escrevi a respeito em minha página, hoje hospedada no UOL, e reiteradas declarações em programas de rádio.

Erra a Conib (Confederação Israelita do Brasil) ao atribuir ao senador Renan Calheiros (MDB-AL) a banalização do Holocausto judeu quando o relator da CPI associou o comportamento de homicidas da Covid-19 ao de alguns réus no tribunal de Nuremberg.

Basta voltar à fala de Renan para constatar que ele se referia àqueles que, no julgamento histórico, ou alegavam ignorância ou exibiam uma descarada indiferença. Tenho caros amigos na Conib. Reconheço, como eles sabem e como é público, a importância de sua luta e de entidades congêneres mundo afora.
Pouco importa o que eu pense sobre o atual governo de Israel —e não penso coisas muito boas—, resta a evidência de que o antissemitismo ainda é um "botão quente" em política, frequentemente acionado pelas mais variadas expressões do neofascismo —incluindo o de matriz islâmica. Não é de hoje que participo desse debate.

Mas é preciso saber quando a evocação do tribunal de Nuremberg —ou mesmo do Holocausto judeu— serve para rotinizar o genocídio e o morticínio em massa e quando esse chamamento à memória tem o propósito de encarecer agressões de lesa-humanidade que estão sendo rotinizadas. O zelo não pode correr o risco de, involuntariamente, tomar o lugar da impiedade.


Qual foi o propósito do senador? As perspectivas algo otimistas falam em 700 mil mortos de Covid-19 no país até o fim do ano, quem sabe antes. As mais pessimistas, em perto de 1 milhão. Haveria milhares de vítimas ainda que tivéssemos um governo realmente ocupado em fazer a coisa certa, afinado com a ciência, com a melhor técnica e com o conjunto de dados empíricos colhidos por especialistas.

Mas, como resta evidente e como a CPI tem demonstrado à farta, fez-se o contrário. Eu realmente não creio que a evocação do "tribunal de Nuremberg", apelando ao simbolismo extremo, quando se está na rota da morte de 500 mil "pretos de tão pobres e pobres de tão pretos", degrade a memória do horror.

Atualiza-se a constatação de que ações de Estado podem fazer do morticínio um ativo político.

Hannah Arendt vela, todos os dias, o programa "O É da Coisa", com sua imagem ao fundo. É meu trilho principal. O livro "Eichmann em Jerusalém - Um Relato sobre a Banalidade do Mal" está longe de ser uma unanimidade entre judeus e não judeus que escreveram sobre a política de extermínio de um povo. Acima e além das dissensões, creio que reste um consenso: o Holocausto concerne a todos os homens.

Ninguém tem licença especial, pouco importa a origem, para cometer erros sobre a história do Holocausto ou para ignorar os mecanismos que levam a políticas de extermínio. O genocídio foi capítulo do nazismo, não o contrário. E o nazismo compreende um modo de entender o mundo, de entender o outro, de lidar com a divergência.

Em palestra conferida na Hebraica do Rio, em 2017, Bolsonaro atacou as reservas indígenas e quilombolas —a propósito: está em curso hoje, no Brasil, o genocídio do povo yanomami— e afirmou sobre uma comunidade negra, de egressos da escravidão: "Eu fui num quilombo. O afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Não fazem nada. Eu acho que nem para procriador ele serve mais. Mais de R$ 1 bilhão por ano é gasto com eles". Foi aplaudido. O aplauso foi indigno. As reações de repúdio ficaram bem abaixo da gravidade da ofensa.

Aprendi com um amigo que os judeus "são iguais sendo diferentes e são diferentes sendo iguais". Pareceu-me, de início, mero jogo de palavras. Mas depois compreendi o que há de profundo aí. Que nos emprestem não apenas a sua dor, mas também a indignação que alimenta a luta.

Os que, por ação e omissão, mataram e matam os brasileiros têm de pagar por isso. A metáfora extrema serve para lembrar que, para certos crimes, não pode haver perdão.

Brasil no vagão da xepa


Brasil  ficou de fora da 1a e 2a classes de vacinas. Viaja hoje de carona, no vagão de cargas, com as sobras de insumos e vacinas 
Simone Tebet (MDB-MS)

O hipócrita e falso dilema de Bolsonaro entre a vida e a liberdade

Enquanto a CPI da Pandemia no Senado está sendo qualificada como a da mentira, cientistas e especialistas em medicina anunciam uma terceira onda da epidemia, mais grave e perigosa que as anteriores. E isso quando o Brasil está chegando a meio milhão de vidas sacrificadas, 100.000 a mais que em 10 anos de guerra na Síria entre civis e militares.

A pandemia da covid-19 está apresentando um problema filosófico e teológico antigo, mas frente a uma realidade nova. Trata-se de discutir se a vida vale mais que a liberdade. Sem dúvida, o ideal é poder conjugar as duas realidades: viver em liberdade. A covid-19, entretanto, rompeu essa utopia, e os países tiveram que escolher entre salvar vidas ou sacrificar algumas liberdades.


Até agora, a maioria dos países civilizados preferiu impor o isolamento para salvar vidas. O Brasil está sendo uma exceção com Bolsonaro, como foram os Estados Unidos com Trump. O Brasil poderia ter salvado milhares de vidas se tivesse tido um governo que preferisse preservar a vida a renunciar temporariamente a algumas liberdades.

O Brasil tem hoje um dos chefes de Estado mais radicalmente negacionistas, alguém que desde o primeiro momento contestou as medidas restritivas da liberdade, o que levou o Brasil a se tornar o epicentro mundial da pandemia por semanas. Enquanto no resto dos países os governos preferiram sacrificar algumas liberdades para salvar vidas, Bolsonaro não só se mostrou contrário às medidas desagradáveis impostas pela pandemia como ridicularizou aqueles que optaram por defender a vida, qualificando-os de “covardes” e “frouxos”.

Agora que o Brasil poderia estar às vésperas de uma terceira onda da covid-19 mais grave que as anteriores, volta a ser discutida falsa tese de que a liberdade vale mais que a vida.

É fato que, visto de forma abstrata, o dilema existe e é tão antigo como o mundo. Entretanto, diante do grito de “liberdade ou morte”, as sociedades modernas preferiram a vida, renunciando a certas liberdades.

E continua de pé a tese de que nada vale mais que a vida, nem sequer a liberdade. Existe um consenso mundial de que a vida é o valor supremo. Até um dos argumentos contra a pena de morte é que é preferível a prisão perpétua a perder a vida.

Até perante uma doença grave preferimos aceitar restrições a nossa liberdade para continuarmos vivos. É verdade que alguns, num ato de heroísmo, às vezes sacrificam a própria vida para evitar a morte do próximo. Por isso são considerados heróis, porque não existe nada mais precioso que a vida.

Dias atrás, Bolsonaro propôs a seus fiéis e fanáticos seguidores esse eterno dilema sobre a vida e a morte. Afirmou que seus partidários estão dispostos a sacrificar a própria vida para defender a liberdade, que está dando armas à população para defender essa liberdade, e que “seu Exército” não permitirá que ninguém imponha restrições à liberdade para defender a vida.

E, como o presidente é incapaz, mesmo filosoficamente, de conceber o valor real da vida, já que é um cultor contumaz da morte e da violência, voltou a defender que a liberdade de ir e vir, eventualmente restringida por causa da pandemia, vale mais que a vida.

Seria cômico se não fosse trágico o fato de que alguém como ele, que sempre se declarou a favor das ditaduras castradoras das liberdades, apareça hoje como paladino da liberdade. Justo ele que odeia a democracia e os direitos humanos. Sua única filosofia é manter um poder autoritário, inimigo de qualquer tipo de liberdade, mesmo que à custa de produzir um genocídio.

A CPI que apura eventuais responsabilidades pelo genocídio brasileiro nesta pandemia é a demonstração de que Bolsonaro e seu Governo apostaram descarada e criminalmente em sacrificar vidas humanas em nome de um falso e interessado conceito de liberdade, defendido na verdade por medo de perder o poder. Na filosofia bolsonarista, não existe um diálogo possível entre a vida e a liberdade. O poder absoluto se ergue forte e covarde ao mesmo tempo, à custa de ampliar a triste caravana de mortes e dor que podia ter sido evitada com um Governo que, em lugar de cultuar a morte, fosse um responsável defensor da vida.

A humanidade que se move entre os instintos de vida e de morte sempre procurou formas éticas e políticas de tentar conjugar esses instintos básicos. Desde o início das civilizações, os povos tentaram defender a vida como valor supremo. Do “não matarás” das Tábuas da Lei até as democracias modernas, tenta-se conjugar esse direito inviolável à vida com o direito à liberdade.

Nasceram assim as leis e as constituições que impõem restrições à liberdade absoluta para defender o valor supremo da vida. É um difícil equilíbrio destinado, no entanto, a proteger a vida.

E é essa primazia de sacrificar vidas em nome de uma falsa liberdade, símbolo do negacionismo do presidente brasileiro, que deve ser freada a tempo, afastando-o de um poder suicida, o que poderia devolver o país à normalidade de saber sacrificar algumas liberdades individuais para evitar uma hemorragia de vidas humanas. O Brasil aposta na vida, por isso está em sua grande maioria desobedecendo ao presidente em sua postura contra a vacina. Segundo as últimas pesquisas nacionais, apenas 5% dizem que não pretendem se vacinar.

Esse é o ridículo exército de seguidores dos quais o genocida se gaba ―ele que está cada dia mais sozinho e começa a ser abandonado até por uma parte de seus fiéis admiradores, como os evangélicos. O capitão que costuma aparecer arrogante montando um cavalo, desafiando a morte, se revela diariamente como uma pura e patética ficção que começa a se dissipar como uma bolha de sabão.

O capitão da reserva, afinal, não se importa nem com a vida nem com a liberdade. Seu único sonho e sua única obsessão são manter seu poder, mesmo que à custa de aparecer como um novo e triste tirano da história.

Domingo de louvor ao vírus

Para o jornal inglês The Guardian, a manifestação de motos comandada por Bolsonaro foi obscena. Para quem observa o cenário nacional, ele foi também um marco que vai definir expectativas para os próximos meses.

Com Bolsonaro, no palanque da manifestação, estava um general da ativa, Eduardo Pazuello. A reação do Exército a essa violação de suas regras ainda é uma incógnita. O Ministério da Defesa ia se pronunciar, mas foi proibido de fazê-lo por Bolsonaro. Tanto Bolsonaro como Pazuello são perfeitamente conscientes da provocação que lançaram.

Bolsonaro costuma se referir ao Exército como “o meu Exército”. Todos sabemos que o Exército é uma instituição que pertence ao País. Bolsonaro quer demonstrar que ele manda e pode até romper com o regulamento militar.

Se o Exército responder como se espera que responda, Bolsonaro terá de aceitar a punição de Pazuello e reconhecer mais uma vez que não consegue impor sua vontade pessoal. Se o Exército não responder, Bolsonaro sentirá que deu mais um passo no controle do poder. O que seus aliados nas ruas pedem, um avanço sobre instituições democráticas, seria mais viável nesse cenário.

Não só nos próximos meses, como na própria eleição de 2022, Bolsonaro vai se sentir à vontade para contestar o resultado das urnas e impor sua vitória, com movimentos parecidos com o ataque ao Capitólio, nos EUA. Não é um cenário fácil. Uma ruptura com a democracia nesse momento radicalizaria o isolamento internacional do Brasil.


As tentativas de Bolsonaro de ampliar seu apoio resultaram numa viagem ao Equador para a posse de Guillermo Lasso. Mas ela foi apenas uma revelação da dramaticidade desse isolamento, não só pela relativa importância do Equador, mas também pelo fato de que Lasso pode ser um conservador do mesmo estilo de Piñera, no Chile, isto é, mantendo certa distância da extrema direita. Se o Exército brasileiro aceitar essa aventura, vai entrar em choque com a própria população e o Estado será forçado a cometer barbaridades para se impor.

A ida de Pazuello e um grupo de militares para o Ministério já foi de uma grande irresponsabilidade histórica. Pazuello não é médico, desconhece o SUS, ignora o que se sabe sobre o vírus e nem sequer conhece o medicamento que foi levado a prescrever, a cloroquina. O resultado é conhecido de todos e não pode ser apagado pelas mentiras contadas na CPI.

O que leva militares a ocupar postos para os quais não estão preparados? A mística de que basta ser militar para resolver os problemas?

Na verdade, ao levar quase 3 mil militares para o governo, Bolsonaro exerce sobre eles a mesma atração que fascina os partidos fisiológicos. Os fisiológicos ocupam os cargos com claros interesses materiais. Mas os militares também estão sendo beneficiados, ampliando com altos salários os seus soldos. Recentemente o governo baixou portaria acabando com o teto salarial para um restrito grupo, entre eles os generais do Planalto.

Essa convergência entre militares e Bolsonaro se dá num momento de pandemia. A posição do governo é negacionista. Pazuello assumiu o ministério com esse espírito, a disposição de dificultar a compra das vacinas, porque, na visão negacionista, um remédio milagroso pesa mais do que investir em imunização. Em torno do meio do ano, o Brasil já terá perdido meio milhão de pessoas para a pandemia, segundo previsões da Universidade de Washington.

Não só a opinião pública nacional, mas o mundo inteiro sabe que existe uma condução negacionista e ela tem peso no número de mortes. Associar-se a essa política nefasta num contexto de ruptura democrática é um salto no escuro com consequências muito mais perenes do que o próprio regime ditatorial de 1964.

Não posso imaginar quantas gerações seriam necessárias para reatar os laços e curar as feridas. Já temos hoje 450 mil mortos, tratados com desprezo, sem nenhuma empatia ou solidariedade oficial.

Finalmente, é necessário perguntar: o que leva alguns militares a acharem que isso vá dar certo, que essa experiência tenha alguma viabilidade histórica?

O melhor caminho para os militares já foi trilhado pelos generais Santos Cruz e Rêgo Barros: retirada com dignidade e a tentativa permanente de dissociar o Exército, instrumento de Estado, de um governo/ideologia envenenado por concepções anticientíficas,

Não é possível encarar o Brasil apenas a partir das vantagens materiais que o governo proporciona. Há muitos políticos que fazem isso. Mas entrar na política para repetir velhos erros dos próprios políticos, mentir descaradamente, afrontar a própria instituição, não é isso que se esperava de quadros das Forças Armadas.

Alguns generais cooptados pelo governo Bolsonaro interpretaram a política como uma orgia na qual se podem mover sem nenhuma responsabilidade. São os neocínicos, uma categoria que merece análise especial, pois chegou envolvida numa retórica de novidade e decaiu sem chegar a florescer.

O domingo de louvor ao vírus é um marco e, ao mesmo tempo, um enigma: cairemos na escuridão permanente ou estamos chegando ao fim do túnel?

Paisagem brasileira

 


Brasil, território da escassez

O governo que sabotou a compra de vacinas em variedade e quantidade desmoralizou o Programa Nacional de Imunização e também envenenou os brasileiros com o vírus da discórdia. No país outrora capaz de vacinar mais de dois milhões de pessoas por dia, a ação deliberada de adiar a contratação de imunizantes pavimentou a escalada das mortes e, de quebra, multiplicou desvios éticos e morais pela prioridade na fila. Individual ou coletivamente, “quando o jeito é se virar, cada um trata de si, irmão desconhece irmão”. Nos versos do poeta do samba, Paulinho da Viola, o resumo do Brasil de Bolsonaro, território da escassez.

A CPI da Covid mal completou um mês, e a responsabilidade do governo federal, por atos, omissões, inépcia ou incompetência, na política de vacinação está clara. Ontem, o depoimento de Dimas Covas, diretor do Instituto Butantan, foi outro que jogou luz sobre a ação deliberada do presidente da República para desqualificar, desacreditar e adiar a assinatura do contrato de compra da CoronaVac, parceria com o laboratório chinês Sinovac. O sim à primeira oferta, feita em julho, garantiria ao país 60 milhões de doses ainda no último trimestre de 2020. Mas o contrato de 46 milhões de doses só foi formalizado em janeiro deste ano, sob intensa pressão política e quando a variante P.1, mais transmissível, já circulava em Manaus e, na sequência, país afora.

Antes disso, os brasileiros já ouvíramos do presidente da Pfizer na América Latina, Carlos Murillo, que a farmacêutica entregaria 1,5 milhão de doses ainda em 2020. A proposta apresentada em fim de agosto previa também o envio de mais três milhões de doses no primeiro trimestre deste ano. Foram cinco ofertas recusadas ou ignoradas até fevereiro de 2021, quando houve a contratação de cem milhões de doses. O primeiro lote da vacina Pfizer, com um milhão de doses, só desembarcou no Brasil em fins de abril. E até junho, segundo informação do Ministério da Saúde, está prevista a entrega de mais 14 milhões de doses.


No depoimento à CPI, o ex-ministro Eduardo Pazuello informou que partiu da Casa Civil, chefiada à época pelo general Braga Netto, hoje titular do Ministério da Defesa, a decisão de aderir à Iniciativa Covax Facility pela cota mínima de 42 milhões de doses, suficientes para imunizar 10% da população brasileira. A Organização Mundial da Saúde permitia reserva equivalente à metade dos habitantes — 210 milhões de doses, portanto.

A vacinação no Brasil caminha lentamente, porque o governo quis assim. O presidente e seus cúmplices apostaram em tratamento precoce ineficaz, na farsa da imunidade de rebanho por contaminação, no boicote ao isolamento social, em detrimento da vacinação. Vice-presidente da CPI, o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) diz que a linha de investigação sobre vacinas foi esclarecida no primeiro mês da comissão. “Houve omissão criminosa que levou os brasileiros à morte”, resume. O país chega ao fim de maio com apenas 10% da população completamente imunizada, com duas doses de vacina aplicadas. Em março e abril, a população atravessou o bimestre mais letal da pandemia iniciada um ano antes. Quase 460 mil brasileiros já perderam a vida para a Covid-19. É certo que milhares estariam vivos, se houvesse vacinação em escala desde a virada do ano.

“Não consigo pensar em nada que não passe pela ideia de necropolítica. Se tivéssemos mais vacinas, não enfrentaríamos novas cepas, não perderíamos tanta gente”, desabafa Alexandre Silva, doutor em Saúde Pública e membro do grupo de trabalho Racismo e Saúde da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco). Ele aponta quatro erros graves no enfrentamento à pandemia via imunização: desconhecimento do tamanho da população nos diferentes municípios, atraso sistemático na distribuição de doses, falta de alinhamento entre União, estados e municípios. Por último, a fragilidade dos pactos para determinar os grupos prioritários, que acabaram adicionados ao Plano Nacional de Imunização por pressão política, judicialização ou voluntarismo de governadores e prefeitos.

A escassez de vacinas e o vaivém de critérios — ora profissionais de saúde da linha de frente e idosos, ora todos os trabalhadores da saúde, da educação, da segurança pública, ora quilombolas, ora gestantes — jogaram na várzea um debate técnico. “Tínhamos de priorizar quem mais precisa. Isso passa por idade, algumas ocupações, mas também por CEP. A vulnerabilidade de quem mora em periferias e favelas, de quem se espreme no transporte público é conhecida”, argumenta Silva.

Não foi assim. A fila tornou-se incompreensível. Assim, jovens estudantes de uma anabolizada área de saúde são vacinados antes de brasileiros adultos em plena atividade. Por isso, pipocam denúncias de médicos distribuindo atestados de comorbidade para pessoas saudáveis se vacinarem, enquanto seis em dez idosos que tomaram a primeira dose não apareceram para a segunda. Não há campanha para estimular a vacinação, e, ainda ontem na CPI, parlamentares governistas seguiam lançando desconfiança contra a CoronaVac e repetindo informações falsas sobre administração de cloroquina contra a Covid-19.

No Programa Nacional de Imunização que conhecíamos, brasileiros não precisavam competir nem violar princípios éticos por vacina. Os fura-filas do lobby e da fraude também estão na conta do desgoverno.

Um governo de charlatões

A imprensa dividiu os integrantes do governo Bolsonaro em duas alas: técnica e ideológica. Na prática, temos apenas um grupo de incompetentes e outro de charlatões. E este segundo é de longe o pior.

Os incompetentes deixam claros seus erros, suas limitações. Em geral, são figuras histriônicas, que ganham espaço não pelos seus feitos, mas pelo espetáculo que produzem. Weintraub, na educação, era dessa ala. Eduardo Pazuello é também um incompetente. Com três estrelas, mas um incompetente que nunca se esforçou para mostrar o contrário.

O problema maior é a ala dos charlatões e este governo está cheio deles. Segundo o dicionário, é um indivíduo que vende remédios milagrosos; que explora a boa-fé do povo, profissional inescrupuloso, enganador. O charlatão conhece o seu métier, tem vocabulário rico e apropriado e usa seu conhecimento para enganar.

Há vários exemplos, mas nada se compara à secretária do Ministério da Saúde, a médica Mayra Pinheiro. Seu depoimento na CPI da Covid mostra por que tantos brasileiros engoliram a falácia do tratamento precoce. A Capitã Cloroquina mente com propriedade, passa a impressão de que domina tecnicamente os assuntos pelos quais têm responsabilidade, cita estudos, manipula informações de entidades internacionais.

Cada mentira, dita com a voz tranquila e acolhedora, acertava o coração de um tiozão do Zap espalhado pelo país. Imagine isso multiplicado milhões de vezes nos grupos bolsonaristas. Mayra Pinheiro usou a CPI como palanque e saiu de lá ovacionada pelos negacionistas.

O charlatanismo, até que se prove o contrário, vale a pena e foi institucionalizado. Na quarta-feira, a CPI aprovou requerimento para que sejam ouvidos “especialistas” a favor e contra o uso de remédios como a cloroquina. Daqui a pouco o Senado coloca em discussão se a Terra é mesmo redonda porque tem quem ache que não é.goliram a falácia do tratamento precoce. A Capitã Cloroquina mente com propriedade, passa a impressão de que domina tecnicamente os assuntos pelos quais têm responsabilidade, cita estudos, manipula informações de entidades internacionais.

Cada mentira, dita com a voz tranquila e acolhedora, acertava o coração de um tiozão do Zap espalhado pelo país. Imagine isso multiplicado milhões de vezes nos grupos bolsonaristas. Mayra Pinheiro usou a CPI como palanque e saiu de lá ovacionada pelos negacionistas.

O charlatanismo, até que se prove o contrário, vale a pena e foi institucionalizado. Nesta quarta-feira (26), a CPI aprovou requerimento para que sejam ouvidos “especialistas” a favor e contra o uso de remédios como a cloroquina. Daqui a pouco o Senado coloca em discussão se a Terra é mesmo redonda porque tem quem ache que não é.

Democracia de militares

Vocês [militares] é que decidem, em qualquer país do mundo, como aquele povo vai viver. Ninguém está aqui para fazer discurso político, mas somos seres políticos. Se Deus deu essa missão para nós, vamos aproveitá-la no bom sentido
Jair Bolsonaro

Presidencialismo de submissão

O Ministério da Economia editou uma portaria para dar ares de legalidade às manobras destinadas a permitir que congressistas aliados do governo de Jair Bolsonaro possam determinar o destino de vultosos recursos orçamentários, definição que caberia ao Executivo.

Como o Estado revelou, o governo permitiu que, no Orçamento do ano passado, parlamentares de sua base interferissem diretamente na gestão de R$ 3 bilhões, alocados ao Ministério do Desenvolvimento Regional. Esse dinheiro se origina das chamadas emendas do relator-geral do Orçamento, conhecidas pela sigla RP9.

Por lei, a RP9 se presta somente a remanejar recursos no Orçamento, com o objetivo de fazer correções na elaboração final, em geral para reparar algum erro técnico. Em nenhum momento essa emenda especifica em quais projetos o dinheiro deve ser empenhado, pois se trata de atribuição do Ministério para o qual a verba foi distribuída.

O Congresso tentou impor a destinação das emendas de relator, mas o presidente Bolsonaro vetou o dispositivo, alegando, com razão, que o texto “investe contra o princípio da impessoalidade que orienta a administração pública ao fomentar cunho personalístico nas indicações e priorizações das programações decorrentes de emendas, ampliando as dificuldades operacionais para a garantia da execução da despesa pública”. Obviamente, não foi Bolsonaro quem escreveu essa justificativa, e sim algum funcionário com noção mínima do manejo da coisa pública, que o presidente nunca teve.

O veto continua em vigor, mas a natureza bolsonarista também: para driblar sua própria determinação e assim agraciar aliados no Congresso com verbas, o presidente permitiu que se elaborasse um mecanismo pelo qual os governistas pudessem direcionar o dinheiro da RP9 para obras eleitoreiras.

Depois que o esquema veio à luz, gerando justificada e geral estupefação, o governo tentou desmentir o que os documentos atestavam. Sem sucesso, agora baixa uma portaria para regularizar a prática – ou para “legalizar a bandalha”, como bem qualificou o economista Gil Castelo Branco, da Associação Contas Abertas.

O malabarismo normativo do governo não anula a essência do escândalo: o governo entregou dedos e anéis ao Congresso, em particular ao Centrão, hoje senhor do destino de Bolsonaro.

O presidente abriu mão de vez de qualquer papel na administração, assumindo tão somente a função de animador de reacionários e vivandeiras. Como disse o ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello na CPI da Pandemia, o que Bolsonaro vocifera é apenas “coisa de internet”, que não se traduz em ordens ou diretrizes dentro do governo. Quem manda é o Centrão.

Isso ficou claro também no modo como o governo foi apenas coadjuvante, sentado no fundo da sala, nos debates que resultaram no projeto de privatização do sistema Eletrobrás. Permitiu que os parlamentares contrabandeassem “jabutis” que, na prática, determinam como o governo deve gastar parte dos recursos oriundos do negócio. E não é por acaso que uma gorda fatia desse dinheiro ficará sob administração da Codevasf – a estatal do São Francisco que, sob administração do Centrão e com as bênçãos de Bolsonaro, incluiu cidades a centenas de quilômetros do rio e recebeu também boa parte do dinheiro das manobras orçamentárias.

Caracteriza-se assim uma nova etapa na degradação do chamado presidencialismo de coalizão, que marca a política brasileira desde a redemocratização. Depois de ter sido rebaixado a presidencialismo de cooptação com o lulopetismo, agora se transformou em presidencialismo de submissão – em que o presidente se torna vassalo do Congresso.

O modelo bolsonarista nada tem a ver, por exemplo, com a Presidência de Michel Temer, que trabalhou com o Congresso para, de fato, promover reformas requeridas pela nação. Então, a relação era de compartilhamento de poder, reduzindo muito o custo da governabilidade.

Já no caso de Bolsonaro, o presidente decidiu ser mero despachante do Centrão, na expectativa de que o Congresso não o amole enquanto ele brinca de mandão.