quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

É a vida...

“A vida não piora nem melhora”, falou o professor.

Um aluno invocado fez o teorema:

- Então se melhorar piora e se piorar melhora?


- É a lei das ironias! Depois da chuva, o sol; e da juventude, a velhice. A redenção exige o pecado e o sim, um sonoro não.

O professor, um sujeito empertigado e consciente do seu papel, tentou um arremate:

- Arthur Schopenhauer dizia que o mundo era tocado pela vontade. Essa pulsão de caráter sensual criou o intelecto que nos salva pela arte.

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No Brasil, chamamos essa força de “vida”. “É a vida”, proclamamos com indiferença, ou como sinal de resignação porque podemos lutar contra tudo - sobretudo na chamada “política” tal como ela é concebida por nós (eis um assunto que vale pesquisar) - mas não podemos lutar contra a vida da qual só escapamos cabalmente com a morte. Morte que é parte da “vida” como o que alguns chamam de nada. 

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A morte é a paz do não ser; a vida é guerra, gozo e frustração. George Orwell trabalha com ironias (“guerra é paz”), tal como as leis de Murphy (“as coisas podem piorar, você é que não tem imaginação”) e os aforismos do Godot, de um Samuel Beckett contraposto aos otimismos da cultura americana que contemplam o sucesso como um “êxito” - uma feliz saída de um mundo ou condição. Mundo maravilhoso (what a wonderful world...) que, para eles, representa o papel do nosso desconfiado conceito de “vida”. Mais pessimista, mais realista e totalmente certo de que, em geral, “quanto maior o cargo, mais cheio de merda quem o ocupa”, conforme dizia tio Silvio, pronunciando um dos mais verazes axiomas da vida nacional.

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Recordo a ironia dos meus tios maternos - Marcelino, Silvio e Mario. Cada qual com sua cota de esperança. A irônica esperança de suportar o peso da vida, que nos arrasta sem comiseração ou piedade. Tio Silvio repetia: “Meu sobrinho, há que se beber muito para aguentar os trancos da vida!”.

Quando meu pai jazia morto, vestido com aquela serenidade invejável e indesejável da morte, um Silvio de olhos tristes me olhou, voltou-se para o morto querido e pronunciou um conceito definitivo: F...!

Explico para os moralistas de plantão cuja marca é a falta de inteligência simbólica que o “beber” do Sivoca não era o mero álcool ou a fuga para uma fé cega, ideologia caolha, seita ou partido desonesto. Não! Era justamente isso que estou fazendo por uma mistura de compulsão, gosto e empenho: a escrita. A narrativa - a tal “moral da história” - com a qual temos (justo porque humanos somos) a obrigação de aceitar a “vida”. A nossa e a dos outros.

No momento dessa intolerável insegurança do que chamamos de “Brasil”, cujos comandantes de merda - à direita e à esquerda - não deixam que ele encontre rumo. Um rumo que só pode acontecer quando ele for realizado já que sem a liberdade de decidir ou tentar, nada é feito. A vida não tem sentido em si mesma. Ela tem que ser vivida para ser alguma coisa.

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A ironia é o riso do palhaço consciente de sua máscara num ato muitas vezes ensaiado que parece espontâneo; enquanto nós, fora do palco, tentamos transformar surpresas e desgraças em rotinas, afirmando: é a vida!

Quando meu tio Mario, o Miroca, dizia que não havia happy end, exceto nos filmes estrelados por Gregory Peck, ele ensinava que o heroísmo humano era o de, apesar de tudo, aguentar-se. Quando jovem, Miroca engoliu cru a doença e a morte dos irmãos numa sequência imerecida por critérios humanos, mas muito justa pelos desígnios divinos.

Não há contabilidade na vida: ela não é confiável dizia, por seu turno Marcelino, o dom-juan da família que, talvez por isso, se dizia comunista. Tudo deveria ser dividido e ele contribuía namorando senhoras casadas com maridos ciumentos da “classe dominante”. É a vida, dizia

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A plena aceitação da ironia - afinal, é a vida... - ajuda a contrabalançar o catastrofismo. Hoje, desvendamos a podridão do sistema quando ouvimos a confissão dos batedores de carteira do povo. Foram-se as utopias, mas não as ironias. Dezenas de poderosos viraram sentenciados. Mocinhos são de fato bandidos. Mas continuam poderosos nas prisões transformadas em hotéis.

Eis uma extraordinária ironia. Quando, com um enorme sofrimento e uma densa hipocrisia, prendemos criminosos-correligionários-parentes e amigos; não porque queríamos, mas porque, no poder, eles abusaram dos seus privilégios e era impossível não fazer alguma coisa, as prisões ficaram mais humanas! Têm que estar à altura dos seus prisioneiros poderosos.

Em democracias, todos estão, infelizmente, debaixo da lei. O crime importa mais do que a pessoa e o cargo de quem o cometeu. Quando um cara que mora num palácio é preso, a cadeia tem que virar palácio.

É a vida...

O Brasil na casinha do cachorro

Em nenhum campo mais que no da política “o meio é a mensagem”. É o sistema que faz as pessoas e não o contrário. Ha sempre um elemento de “o ovo ou a galinha” nesse raciocínio mas o fato é que, como McLuhan demonstrou em sua obra, a alteração do meio, ou seja, da tecnologia institucional em uso, é muito mais determinante para definir ou mudar os resultados (as mudanças sociais e comportamentais necessárias) que o conteudo que transita por esse meio (o discurso do bem ou mesmo a boa intenção que, porventura, tenha nascido sincera).

O caso brasileiro é um exemplo eloquente. Seja quem for que ingresse na política ou no serviço publico do jeito que o “sistema” opera hoje, acaba por se corromper. A qualidade da matéria prima inserida no “processador” pode alterar a velocidade da corrosão mas ela é incoercível. Ninguem mergulha nesse mar de privilégios e impunidade e sai incólume. O bom comportamento num ambiente assim acaba assumindo o ar de uma denuncia. Ou o recem chegado se corrompe ou acaba sendo expelido como uma ameaça para os demais. Já começa, aliás, por se acumpliciar pois para entrar na política é obrigatório “acertar-se” com o dono de algum dos partidos que já vivem de dinheiro do governo e da distribuição de pedaços do estado enquanto no serviço público impera o espírito do “concurseiro” a quem não interessa quando nem onde, tudo que conta é por um pé dentro do privilégio…

Daí para a frente cria-se uma cadeia causal. O de entrada é um sistema de seleção negativa. O de permanência um filtro mais fino ainda. E como o “negócio” passa a ser a criação de dificuldades para proporcionar a venda de facilidades, essa filtragem negativa se estende para a sociedade como um todo. Quem insistir no caminho da lei morrerá afogado na burocracia pois para seguir adiante na velocidade que o mundo requer, é preciso subornar.
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Em estados tanto quanto em empresas, é o sistema de governança muito mais que o esforço despendido por cada indivíduo solitariamente que define o resultado do trabalho. É uma ilusão de noiva achar que algo vai mudar mudando-se apenas as pessoas na operação do mesmo sistema político.


O sistema político faz a riqueza ou a pobreza das nações. É uma falácia o argumento de que o Brasil jamais poderia ter um sistema civilizado. Os suíços e os americanos, entre outros, não nasceram como são hoje. Eles ficaram como são hoje porque por uma conjunção específica de acontecimentos históricos, cada um em seu momento, adotaram um sistema que resulta num filtro de seleção positiva. Não têm o sistema político que têm porque eram mais educados, mais ricos, ou mais virtuosos que os demais no ponto de partida. É o contrário, eles ficaram mais ricos e educados porque instituíram um filtro de seleção positiva. A matéria prima é a mesma aqui e lá, mais inclinada para o vício que para a virtude. Apenas lá, ao contrário daqui, o estado trabalha para desimpedir os caminhos para a virtude e atravancar os que conduzem ao vício. Tanto que o melhor do que hoje “assinam” como produção própria foi feito por estrangeiros fugitivos de sistemas nos quais só o vício consegue passagem.

A questão da segurança jurídica é crítica. Dada a propensão preferencial da espécie pelo vício, quanto mais longe se colocar a baliza das decisões do arbítrio e do pensamento abstrato, pai do arbítrio, melhor tende a ser o resultado. Existe uma fortíssima coincidência entre a riqueza das nações e o seu sistema jurídico. É sob o sistema de “common law”, que foi comum a toda a Europa, Portugal inclusive, até os primeiros passos das monarquias absolutistas no final do século 13, que vive a maioria das nações mais ricas e livres do mundo. Nesse sistema é o precedente que define a sentença e não o juiz. É o juri, não o meritissimo, quem define se o caso presente é mesmo idêntico ao anterior. Se a conclusão for que sim, a sentença será automaticamente a mesma que foi dada para aquele. O juiz está lá mais para conferir os ritos do processo que para qualquer outra coisa, mesmo porque o sentido da justiça terrena é reduzir as oportunidades de corrupção e não redesenhar a humanidade. O problema é que a corrupção se torna irresistivel justamente quando é a liberdade do indivíduo ou até a sua vida que está em jogo, como no caso das decisões judiciais. Os fatos são o que são e podem ser concretamente aferidos na sua sequência e na sua relação causal enquanto a vontade humana, livre para voar por definição, é sempre uma expressão do arbítrio, a própria negação da impessoalidade que torna previsivel, ou seja segura, a justiça que o investimento em desenvolvimento requer.

Assim também os sistemas políticos. A lei só será “amigável para o usuário” se for feita por ele ou, no mínimo, para ele. A democracia foi inventada para isso. Neste mundo de multidões, porem, ela só pode ser “representativa”. E para ser mesmo “representativa” é preciso que o representante esteja permanentemente sujeito à cobrança do representado e esta, para ser efetiva, tem de ser feita “à mão armada”. Ou seja, a sobrevivência do mandato do cobrado (assim como a do emprego público) tem de estar permanentemente em jogo.

Qualquer brasileiro, por menos educado que seja, sabe que se contratar um empregado amanhã garantindo a ele que daí por diante será indemissível, faça o que fizer, e ele próprio definirá seu salário independentemente do serviço que entregar, em seis meses ele estará na casinha do cachorro e o tal empregado deitado em sua cama.

O Brasil está na casinha do cachorro. Para sair terá de ter a mão armada para ganhar controle efetivo sobre o desenvolvimento futuro das carreiras políticas e do funcionalismo. E só tem esse controle quem tem o poder de demitir. Só o recall, o referendo e as leis de inciativa popular dão esse poder ao povo de forma irrecorrível. E só com eleições distritais puras essa arma passa a atirar apenas e tão somente se for acionada de modo responsável, transparente e com garantia de atingir só o alvo visado.

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Fotos feitas em momentos precisos

STF usurpador

“Essas questões todas deveriam realmente ser resolvidas pelo Parlamento, mas acontece uma questão muito singular: o Parlamento não quer pagar o preço social de decidir sobre aborto, sobre união ‘afetiva’ e outras questões ‘que’ nos falta capacidade institucional. Então, como eles não querem pagar o preço social e como nós não somos eleitos, nós temos um grau de independência maior porque nós não devemos satisfação, depois de decidir, a absolutamente mais ninguém. (...) O judiciário decide porque há omissão do Parlamento”. (Ministro Luiz Fux, transcrição literal do áudio com sua fala)

A manifestação acima, que pode ser ouvida aos 18min e 48seg deste aúdio e lida em matéria do Estadão aqui, define muito bem o que passa pela cabeça dos nossos “supremos”. No exercício de suas atribuições, os onze membros do STF creem tudo poder. Julgam não estar submetidos sequer à Constituição. Substituem-se aos congressistas para legislar e para deslegislar. A opinião de cada um e da maioria é a própria lei. O que seis decidem é irrecorrível. Pouco se lhes dá o que as pessoas pensam deles, como bem observou o ministro Fux na espantosa declaração acima.

Para ainda maior azar da sociedade, a sucessão de dois governos mencheviques do PSDB por dois governos bolcheviques do PT formatou esse STF “progressista”, em completa dissonância com as posições conservadoras e liberais majoritárias na sociedade. Não se trata de dever ou não satisfações públicas; mas de usurpar ou não atribuições de outro poder.

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Alega o ministro Fux, em sua argumentação, que o STF, por omissão do Parlamento, é chamado a deliberar em relação a certas matérias que chegam à Corte. E então faz o que faz. Mas o que é isto, ministro? Quer dizer que se o Congresso Nacional não “corrige” a Constituição ao gosto do STF, o STF corrige a Constituição a contragosto do Congresso? Que absurdo! Qualquer pessoa com alguma experiência legislativa sabe que raramente são pautados para votação nos parlamentos projetos de relevo em relação aos quais o autor ou autores não têm certeza de aprovação. Não é razoável fazê-lo antes de haver maioria favorável porque projeto derrotado vai morar no arquivo. Isso faz parte do bê-á-bá na vida parlamentar. E ministros do STF o desconhecem?

Os pleitos a que se refere Luiz Fux já foram longamente deliberados pelo Congresso em seu cotidiano. E este vem decidindo não mudar a Constituição, mantendo os correspondentes preceitos na forma em que foram definidos pelos constituintes originários em 1988. Tal fato é de uma obviedade ululante, como diria Nelson Rodrigues. Perante essas pautas levadas a seu exame, o STF deveria rejeitá-las por inconformidade com a letra clara da respectiva norma constitucional. Interpretá-la de modo diverso ou reverso candidata os julgadores a uma paraolimpíada de língua portuguesa. Ou ao ainda mais triste papel de usurpadores do Poder Legislativo.

Percival Puggina

Onde está a honestidade?

Há um País que se perdeu pelo caminho, naturalizou as coisas erradas e temos o dever de enfrentar isso. E de fazer um novo País, ensinar as novas gerações de que vale a pena ser honesto, sem vingadores mascarados, sem achar que ricos criminosos têm imunidade
Luís Roberto Barroso, ministro do STF

Gilmar e Toffoli empurram STF para o caldeirão

Se a epidemia de corrupção que se abateu sobre o Brasil revela alguma coisa é que a política brasileira ultrapassou todas as fronteiras da imoralidade. Numa situação assim, em que uma nação dá com os burros n’água, o melhor a fazer é se apegar aos burros mais secos. O Poder Legislativo está afogado em lama. O Poder Executivo, com o lodo acima do nariz, se agarra a qualquer jacaré imaginando que é tronco.


Contra esse pano de fundo, não restou ao brasileiro senão depositar todas as suas esperanças no Poder Judiciário. Mas magistrados como Gilmar Mendes e Dias Toffoli parecem decididos a empurrar o Supremo Tribunal Federal para dentro caldeirão do descrédito. Líderes da ala do Supremo que abre celas e arquiva denúncias, os dois dedicaram-se na última sessão do ano a esculachar a investigação quer encrencou Michel Temer e sua turma.

Coube ao ministro Luis Roberto Barroso injetar o óbvio na cena. “Eu ouvi o áudio: ‘Tem que manter isso aí, viu?’. Eu vi a mala de dinheiro”, disse Barroso. Há políticos piores e melhores. A arte de julgar consiste em discernir uns dos outros. A Lava Jato mostrou que os gatunos ficaram ainda mais pardos. Mas num instante em que a política se consolida como mais um ramo do crime organizado, o país não merece o convívio com juízes que dão de ombos para o óbvio.

Genealogia do fanatismo

Em si mesma, toda ideia é neutra ou deveria sê-lo; mas o homem a anima, projecta nela as suas chamas e as suas demências; impura, transformada em crença, insere-se no tempo, toma a forma de acontecimento: a passagem da lógica à epilepsia está consumada... Assim nascem as ideologias, as doutrinas e as farsas sangrentas.

Idólatras por instinto, convertemos em incondicionados os objectos de nossos sonhos e de nossos interesses. A história não passa de um desfile de falsos Absolutos, uma sucessão de templos elevados a pretextos, um aviltamento do espírito ante o Improvável. Mesmo quando se afasta da religião o homem permanece submetido a ela; esgotando-se em forjar simulacros de deuses, adopta-os depois febrilmente: a necessidade de ficção, de mitologia, triunfa sobre a evidência e o ridículo. A capacidade de adorar é responsável por todos os seus crimes: o que ama indevidamente um deus obriga os outros a amá-lo, na espera de exterminá-los se se recusam. Não há intolerância, 
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intransigência ideológica ou proselitismo que não revelem o fundo bestial do entusiasmo. Que perca o homem a sua faculdade de indiferença: torna-se um assassino virtual; que transforme a sua ideia em deus: as consequências são incalculáveis. Só se mata em nome de um deus ou de seus sucedâneos: os excessos suscitados pela deusa Razão, pela ideia de nação, de classe ou de raça são parentes dos da Inquisição ou da Reforma. As épocas de fervor distinguem-se pelas façanhas sanguinárias. Santa Teresa só podia ser contemporânea dos autos-de-fé e Lutero do massacre dos camponeses. Nas crises místicas, os gemidos das vítimas são paralelos aos gemidos do êxtase... patíbulos, calabouços e masmorras só prosperam à sombra de uma fé -- dessa necessidade de crer que infestou o espírito para sempre. O diabo empalidece comparado a quem dispõe de uma verdade, de sua verdade. Somos injustos com os Neros ou com os Tibérios: eles não inventaram o conceito de herético: foram apenas sonhadores degenerados que se divertiam com os massacres. Os verdadeiros criminosos são os que estabelecem uma ortodoxia no plano religioso ou político, os que distinguem entre o fiel e o cismático.

No momento em que nos recusamos a admitir o carácter intercambiável das ideias, o sangue corre... Sob as resoluções ergue-se um punhal; os olhos inflamados pressagiam o crime. Jamais o espírito hesitante, afligido pelo hamletismo, foi pernicioso: o princípio do mal reside na tensão da vontade, na inaptidão para o quietismo, na megalomania prometeica de uma raça que se arrebenta de tanto ideal, que explode sob as suas convicções e, que, por haver-se comprazido em depreciar a dúvida e a preguiça — vícios mais nobres do que todas as suas virtudes —, embrenhou-se numa via de perdição, na história, nesta mescla indecente de banalidade e apocalipse... Nela as certezas abundam: suprima-as e suprimirá sobretudo as sua consequências: reconstituirá o paraíso. O que é a Queda senão a busca de uma verdade e a certeza de havê-la encontrado, a paixão por um dogma, o estabelecimento de um dogma? Disso resulta o fanatismo — tara capital que dá ao homem o gosto pela eficácia, pela profecia e pelo terror —, lepra lírica que contamina as almas, as submete, as tritura ou as exalta... Só escapam a ela os cépticos (ou os preguiçosos e os estetas), porque não propõem nada, porque — verdadeiros benfeitores da humanidade — destroem os preconceitos e analisam o delírio. Sinto-me mais seguro junto de um Pirro do que de um São Paulo, pela razão de que uma sabedoria de boutades é mais doce do que uma santidade desenfreada. Num espírito ardente encontramos o animal de rapina disfarçado; não poderíamos defender-nos demasiado das garras de um profeta... Quando elevar a voz, seja em nome do céu, da cidade ou de outros pretextos, afaste-se dele: sátiro de nossa solidão, não perdoa que vivamos aquém de suas verdades e de seus arrebatamentos; quer fazer-nos compartilhar de sua histeria, de seu bem, impô-lo a nós e desfigurar-nos. Um ser possuído por uma crença e que não procurasse comunicá-la aos outros seria um fenômeno estranho à terra, onde a obsessão da salvação torna a vida irrespirável. Olhe à sua volta: por toda parte larvas que pregam; cada instituição traduz uma missão; as prefeituras têm seu absoluto como os templos; a administração, com seus regulamentos — metafísica para uso de macacos... Todos se esforçam por remediar a vida de todos; aspiram a isso até os mendigos, inclusive os incuráveis: as calçadas do mundo e os hospitais transbordam de reformadores. A ânsia de tornar-se fonte de acontecimentos atua sobre cada um como uma desordem mental ou uma maldição intencional. A sociedade é um inferno de salvadores! O que Diógenes buscava com sua lanterna era um indiferente.

Basta-me ouvir alguém falar sinceramente de ideal, de futuro, de filosofia, ouvi-lo dizer "nós" com um tom de segurança, invocar os "outros" e sentir-se seu intérprete, para que o considere meu inimigo. Vejo nele um tirano fracassado, quase um carrasco, tão odioso quanto os tiranos e os carrascos de alta classe. É que toda fé exerce uma forma de terror, ainda mais temível quando os "puros" são seus agentes. Suspeita-se dos espertos, dos velhacos, dos farsantes; no entanto, não poderíamos atribuir-lhes nenhuma das grandes convulsões da história; não acreditando em nada, não vasculham nossos corações, nem nossos pensamentos mais íntimos; abandonam-nos à nossa indolência, ao nosso desespero ou à nossa inutilidade; a humanidade deve-lhes os poucos momentos de prosperidade que conheceu: são eles que salvam os povos que os fanáticos torturam e que os "idealistas" arruínam. Sem doutrinas só possuem caprichos e interesses, vícios complacentes, mil vezes mais suportáveis que os estragos provocados pelo despotismo dos princípios; porque todos os males da vida provêm de uma "concepção da vida". Um homem político completo deveria aprofundar-se nos sofistas antigos e tomar aulas de canto; e de corrupção...

O fanático é incorruptível: mata-se por uma ideia, pode igualmente morrer por ela; nos dois casos, tirano ou mártir, é um monstro. Não existem seres mais perigosos do que os que sofreram por uma crença: os grandes perseguidores se recrutam entre os mártires cuja cabeça não foi cortada. Longe de diminuir o apetite de poder, o sofrimento o exaspera; por isso o espírito sente-se mais à vontade na companhia de um fanfarrão do que na de um mártir: e nada o repugna tanto como este espetáculo onde se morre per urna ideia... Farto do sublime e de carnificinas, sonha com um tédio provinciano em escala universal, com uma História cuja estagnação seria tal que a dúvida representaria um acontecimento e a esperança uma calamidade...

Emil Cioran, "Breviário de decomposição"

Paisagem brasieira

Igreja de São Pedro em Olinda-Pernambuco (1986), Ivan Marquetti


Decisão de Lewandowski ajuda a explicar a tradicional tragédia fiscal brasileira

A decisão do ministro Ricardo Lewandowski, que suspendeu, nesta segunda, os efeitos de Medida Provisória 805/2017 que adia reajuste de servidores e eleva a contribuição previdenciária é expressão acabada da tragédia fiscal brasileira.

Note-se à partida: os setores que teriam o reajuste postergado de janeiro de 2018 para janeiro de 2019 ganham entre R$ 15 mil e R$ 20 mil por mês. O aumento da alíquota, de 11% para 14%, seria aplicado sobre os vencimentos acima de R$ 5,3 mil. Para vocês compararem: sabem de quanto era a renda média do trabalhador brasileiro — isto é, descontada a inflação — em setembro deste ano? R$ 2.115. Entenderam?

O governo contava economizar R$ 4,4 bilhões com o adiamento e arrecadar mais R$ 2,2 bilhões com o aumento da alíquota. Assim, o esperto é de R$ 6,6 bilhões. Trata-se de uma decisão liminar, que ainda será submetida ao plenário. Ocorre que o recesso do judiciário começa amanhã, e o STF só volta à ativa no dia 6 de janeiro. De todo modo, não há data para julgar a questão.

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Adivinhem quem é que está na vanguarda da defesa dos privilégios dos servidores… Acertou quem respondeu: “Um partido de esquerda”. Foi na mosca quem cravou: “PSOL”. Isso mesmo, os camaradas socialistas acham que o caixa do país pode ir à breca, desde que se preservem os interesses dos companheiros servidores. É o fim da picada!

A decisão já não deixa de ser espantosa. Caso se leiam os argumentos, as coisas pioram muito. A íntegra da liminar| está aqui. Lewandowski atua como, sei lá, um poeta da correção monetária dos salários do funcionalismo ao argumentar que a não concessão da correção implicaria uma diminuição dos salários, o que feriria o princípio da irredutibilidade dos vencimento, prevista, com efeito, no Inciso XV do Artigo 37 da Constituição.

Ora, é evidente que o veto à redução dos vencimentos se refere ao valor nominal do ganho. Ou, para escândalo dos escândalos, a Constituição brasileira estaria assegurando aos servidores públicos, e só a eles, a correção automática dos salários.

O PSOL recorreu justamente com a uma ADI — Ação Direta de Inconstitucionalidade — com pedido de liminar. Em casos assim, a Procuradoria Geral da República tem de se manifestar. Raquel Dodge não teve dúvida: também ela entende que não corrigir o salário do funcionalismo corresponde a uma redução de salários. Logo, a prevalecer esse entendimento, o STF pode estar acrescentando um item novo à Constituição: a correção automática dos salários — só dos servidores, é claro!

Atenção! A Justiça federal de Brasília de primeira instância já vinha se manifestando contra a MP. Um juiz concedeu liminar a delegados da Polícia Federal. Outro determinou que o governo cumprisse o que estava anteriormente acordado.

É uma pena que os senhores juízes, também do Supremo, não possam instituir a correção monetária automática das receitas, não é mesmo?

Afirmei que isso expõe a nossa tragédia fiscal. Eis aí: parece que o Estado brasileiro existe para satisfazer às necessidades e anseios dos servidores. Ora, na inciativa privada, em momentos de crise, as empresas demitem, reduzem salários, fazem acordos, suspendem reajustes… Vale dizer: tentam se virar. A alternativa é quebrar e ter de fechar as portas.

Ah, mas o Estado não fecha, certo? Ele vai fabricando déficits. Assim, que importa um rombo fiscal de R$ 159 bilhões? Que importa que a empresa “Brasil”, do ponto de vista fiscal, esteja quebrada? A atualização monetária do salário dos servidores tem de ser mantida, ainda que isso custe, como pode custar, corte de investimentos, por exemplo.

Sim, o PSOL, Raquel Dodge e Lewandowski poderiam ao menos ter o conforto moral de que assim procedem em defesa dos humildes… Ocorre que os humildes não entram nessa conta. Os humildes são aqueles 24,8 milhões que viviam, em 2016, com até um quarto do salário mínimo per capita. Ou aqueles outros 36,6 milhões que ganhavam entre um quarto e meio salário mínimo. Para esses 61,4 milhões de brasileiros, não há ADI do PSOL, não há liminar de Lewandowski, não há posicionamento de Raquel Dodge.

Justiça S/A, um cadáver insepulto

O Brasil assiste com profunda tristeza essa disputa desmensurada entre duas justiças – a que prende e a que solta. E no meio desse entrevero de egos jurídicos, muita gente está deixando de ser punida pelos assaltos aos cofres públicos do Rio de Janeiro porque um ministro do STF, Gilmar Mendes, decidiu que só ele, apenas ele, sabe interpretar e cumprir a lei à risca. Sua última decisão foi mandar para casa Adriana Ancelmo, mulher do ex-governador Sérgio Cabral. Essa senhora foi condenada em setembro deste ano a 18 anos e 3 meses de prisão por crime de lavagem de dinheiro e por ser beneficiária do esquema de corrupção do marido.

Vale a pena você ler aqui a justificativa de Gilmar Mendes para mandar Adriana Ancelmo para casa, onde cumprirá prisão domiciliar:

"No presente caso, a condição financeira privilegiada da paciente Adriana Ancelmo não pode ser usada em seu desfavor. Observo que o crime supostamente praticado pela paciente, muito embora (sic) grave, não envolve violência ou grave ameaça à pessoa. A paciente esteve por meses em prisão domiciliar, sem violar as regras estabelecidas pelo juízo. A sentença reconheceu a desnecessidade de um regime mais rigoroso", escreveu o ministro.

Confesso que estou profundamente emocionado com o ato humanista do senhor ministro, quando ele diz em outro momento que “a prisão de mulheres grávidas ou com filhos sob os cuidados delas é "absolutamente preocupante".

Por isso, segundo ele, alternativas à prisão devem ser observadas a ponto de não haver "punição excessiva" à mulher ou à criança.

Pois é, o senhor Gilmar Mendes manda a mulher de Cabral para casa para que ela possa transmitir aos filhos menores os ensinamentos maternos e os princípios básicos que regem a formação de uma família. O que me espanta é que essa lei de exceção do STF surge para beneficiar os corruptos endinheirados e os assaltantes do dinheiro público. Não me recordo, em momento algum, de argumento tão brilhante de um ministro do STF para beneficiar as milhares de mulheres que vivem nos presídios brasileiros separadas dos seus filhos e, em alguns casos, até amamentando recém-nascidos dentro das próprias celas.

Depois dessa decisão, o STF agora pede aos estados que mandem a relação de mulheres que estão presas e que têm filhos menores de doze anos para serem também beneficiadas na chamada “Lei Adriana Ancelmo”. Que país é esse, gente! Como vamos entender – confesso que estou baratinado – que se crie uma jurisprudência a partir do benefício de uma criminosa, cujo marido deixou um rastro de miséria em um dos estados mais importantes da federação? Que STF é esse que não sabe interpretar leis, que não sabe julgar com imparcialidade e quando tem que decidir, decide em favor do bandido?

Nessa picuinha entre Gilmar Mendes e os procuradores que apuram os crimes da banda podre da política do Rio de Janeiro a sociedade assiste, assustada, que não vale mais o que consta nos autos. A Polícia Federal investiga, o ministério público denuncia com base no que foi apurado e o juiz condena ou absolve. Esse, na verdade, seria o trâmite da apuração de um crime se não fosse a interpretação polêmica de alguns ministros do tribunal. Acontece que o STF – e às vezes apenas um ministro –, com uma canetada, manda o corrupto para casa desconsiderando provas e evidências do crime.

É dessa forma, até grotesca, que o STF vem agindo. Aliás, até pouco tempo, justiça seja feita, o Rodrigo Janot e seu grupo de Brasília também vinham agindo da mesma forma. Bastava um cara acenar com uma delação, mesmo que não fosse tão explosiva, para receber o benefício da impunidade e da prisão domiciliar. Os únicos que não chegaram a desfrutar disso por muito tempo foram os irmãos Batista que estão presos, pois falaram pelos cotovelos.

E assim, soltando um aqui outro acolá, interpretando as leis por interesses pessoais e criando outras para favorecer os apaniguados, a justiça vai soltando os bandidos e realocando-os novamente em suas funções políticas e empresariais, como se tudo que aconteceu com o país fizesse parte de um calendário pré-estabelecidos por esses corruptos com a complacência dos geniais “homens de preto”.

Viva o circo chamado Brasil!

Coisas do arco-da-velha

O arco-da-velha tem uma origem pagã e outra cristã, mas ambas designam o mesmo fenômeno: o arco-íris.

No primeiro caso, os personagens principais são a deusa egípcia Ísis, que viajava linda e luminosa pelos céus com seu diáfano vestido de sete cores, e seu marido Osíris.

O tecido era tão belo que Cleópatra vestia-se como Ísis em suas aparições públicas, roupa que entretanto dispensou para apresentar-se ao imperador romano Júlio César, trocando-a por um tapete no qual veio enrolada nua para o primeiro encontro.

O culto de Ísis estendeu-se a todo o mundo greco-romano antigo. Quando Osíris morreu, a viúva chorou tanto que suas lágrimas deram causa às cheias do rio Nilo. Mas, comovida, a deusa recorreu a secretas magias que somente ela conhecia e ressuscitou dentre os mortos o irmão com o qual se casara, iniciando vida nova e dando ensejo à bela metáfora dos ciclos agropecuários que dependem simultaneamente da terra e do céu para a fertilidade de homens e de animais, e para as plantações e colheitas.

No segundo caso, a expressão arco-da-velha foi encurtada de Arco da Velha Aliança, e os personagens principais são Deus e Noé ao celebrarem um contrato logo após o dilúvio universal. Na verdade, Noé assina por adesão, subscrevendo a cláusula baixada por Deus em Gênesis 9,13: “Ponho o meu arco nas nuvens para que ele seja o sinal da aliança”. O trato era nunca mais destruir a Humanidade pela água. Naquela enchente catastrófica, até Matusalém, que chegara aos 969 anos, morreu afogado.

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Coisas do arco-da-velha são, pois, coisas muito antigas. Mas foram acrescidas de um mal-entendido com os verbos serrar e cerrar, e com os substantivos arca e arco, resultando em mudança que alterou o contexto da expressão no Português.

Segundo nos informa De Castro Lopes em Origem de anexins, prolóquios, locuções populares, siglas, etc., existiu antigamente em Portugal um folguedo conhecido por Cerração da Velha. Consistia em escolher uma anciã a quem a comunidade fosse hostil no vilarejo e trancá-la simbolicamente numa pipa, dorna ou tonel, fazendo uma algazarra em frente à casa em que ela morava. O recipiente fazia as vezes de arca.

Todavia o verbo cerrar (fechar) foi ouvido como serrar (cortar com serra) e por isso a rapaziada serrava o recipiente ao som de uivos, marteladas, repiques, pandeiros, gaitas e tambores. Nem faltava, por certo, uma voz masculina em falsete simulando os gritos de dor da velha cortada ao meio.

Outra variação na pronúncia, de arca para arco, mudou a arca da velha para arco da velha. E a expressão, misturando origens pagãs e cristãs, acrescidas de sadismo próprio a certos usos e costumes, de que é outro exemplo a malhação de Judas na noite da Sexta-Feira Santa, consolidou-se em Portugal, no Brasil e em outros domínios lusitanos, fazendo jus ao que Camões preconizara: “Na quarta parte nova os campos ara/ E se mais mundo houvera, lá chegara”.

E a expressão pegou para sempre no Brasil para designar coisas muito antigas.

Deonísio da Silva