terça-feira, 9 de maio de 2023
Espírito brasileiro
– Ontem me senti tão brasileiro!
– Foi prum samba, se acabou na feijoada e na caipirinha?
– Não, nada disso, furei uma fila.
– Foi prum samba, se acabou na feijoada e na caipirinha?
– Não, nada disso, furei uma fila.
CPI, o campo de batalha na guerra de narrativas
"Primeiro reúna os seus fatos, depois você pode distorcê-los como quiser". O torneio lapidar de Mark Twain é pretexto para uma abordagem à questão grave da desinformação, que hoje atravessa a esfera pública das tecnodemocracias ocidentais, de forma aguda entre nós.
A frase teria como alvo a imprensa, onde o viés excessivo da interpretação pode descambar no falseamento jornalístico. Não é caso raro em todas as épocas.
Atualmente, porém, na informação praticada pelas plataformas digitais, o processo é sistemático, com outros métodos: o principal consiste em amealhar fragmentos de fatos e encadeá-los por meio de mentiras explícitas antes de narrar. Não se trata, portanto, de mera distorção, mas de tática de controle da experiência empírica da sociedade civil, isto é, de tudo o que ocorre na vivência casual, não organizada, inclusive nas escolhas políticas.
É sempre oportuno deixar claro que acontecimento jornalístico é a representação social de um fato, enquanto a notícia é o modo como o fato selecionado se torna acontecimento pela narrativa. Narrar não é sinônimo de mentir.
Assim, é um fato que os indígenas constituem 5% da população global, mas a ilação de que protegem 80% da biodiversidade planetária é uma narrativa objetiva, embora aberta a debate. A objetividade pauta-se por padrões, não meramente lógicos, mas também éticos, em que a seleção factual e a construção da notícia estão comprometidas com a dicção da verdade social.
Em outras palavras, não é suficiente o respeito técnico aos fatos para qualificar a objetividade. O imperativo ético que preside ao jornalismo sério obriga a um compromisso continuado com a verificação, os desdobramentos e os rizomas do fato selecionado, para que não se incorra no silêncio cúmplice quanto às consequências.
A narrativa sobre o governo de um flagelo político e moral não pode limitar-se às excentricidades de um indivíduo, isolando-o de ministros, comandos militares e apoiadores do setor privado. E frente ao dano cognitivo infligido pelo descontrole das redes, a meta de uma informação pública responsável é o esclarecimento do fato social total.
Tão extenso é o alcance da deformação factual que a vida política já foi gravemente contaminada, a ponto de um candidato se consagrar majoritariamente nas urnas pela profundidade de seu mergulho no pântano do falseamento. Ou então, abre-se uma CPI com o fim exclusivo de travar uma guerra de "narrativas".
Entenda-se: um aloprado bate-boca de mentiras, em que se tentará inverter e fragmentar os acontecimentos de um golpismo de grandes proporções para esconder o encadeamento criminoso da totalidade factual.
Ao jornalismo de fatos, Parlamento das Letras, impõe-se recusar holofotes ao circo.
A frase teria como alvo a imprensa, onde o viés excessivo da interpretação pode descambar no falseamento jornalístico. Não é caso raro em todas as épocas.
Atualmente, porém, na informação praticada pelas plataformas digitais, o processo é sistemático, com outros métodos: o principal consiste em amealhar fragmentos de fatos e encadeá-los por meio de mentiras explícitas antes de narrar. Não se trata, portanto, de mera distorção, mas de tática de controle da experiência empírica da sociedade civil, isto é, de tudo o que ocorre na vivência casual, não organizada, inclusive nas escolhas políticas.
É sempre oportuno deixar claro que acontecimento jornalístico é a representação social de um fato, enquanto a notícia é o modo como o fato selecionado se torna acontecimento pela narrativa. Narrar não é sinônimo de mentir.
Assim, é um fato que os indígenas constituem 5% da população global, mas a ilação de que protegem 80% da biodiversidade planetária é uma narrativa objetiva, embora aberta a debate. A objetividade pauta-se por padrões, não meramente lógicos, mas também éticos, em que a seleção factual e a construção da notícia estão comprometidas com a dicção da verdade social.
Em outras palavras, não é suficiente o respeito técnico aos fatos para qualificar a objetividade. O imperativo ético que preside ao jornalismo sério obriga a um compromisso continuado com a verificação, os desdobramentos e os rizomas do fato selecionado, para que não se incorra no silêncio cúmplice quanto às consequências.
A narrativa sobre o governo de um flagelo político e moral não pode limitar-se às excentricidades de um indivíduo, isolando-o de ministros, comandos militares e apoiadores do setor privado. E frente ao dano cognitivo infligido pelo descontrole das redes, a meta de uma informação pública responsável é o esclarecimento do fato social total.
Tão extenso é o alcance da deformação factual que a vida política já foi gravemente contaminada, a ponto de um candidato se consagrar majoritariamente nas urnas pela profundidade de seu mergulho no pântano do falseamento. Ou então, abre-se uma CPI com o fim exclusivo de travar uma guerra de "narrativas".
Entenda-se: um aloprado bate-boca de mentiras, em que se tentará inverter e fragmentar os acontecimentos de um golpismo de grandes proporções para esconder o encadeamento criminoso da totalidade factual.
Ao jornalismo de fatos, Parlamento das Letras, impõe-se recusar holofotes ao circo.
Por que o Brasil não deu certo
Houve um tempo em que se discutia o futuro do Brasil. O escritor Stefan Zweig, muito famoso na ocasião, saiu da Áustria e veio se refugiar nestas terras tropicais, tentando fugir do nazismo. Após escrever um livro em homenagem à terra que o recebeu (“Brasil, país do futuro”), deu fim à sua própria vida. Os Estados Unidos haviam crescido de forma vertiginosa no século XIX, enquanto nós havíamos marcado passo, graças a um sistema agrário arcaico, que explorou mão de obra escrava até nos tornarmos o último país ocidental a conservar esse tipo de força de trabalho, humilhante para explorados e exploradores (além de pouco eficaz). Mesmo assim havia os que acreditavam no futuro do país e Zweig não foi o primeiro nem o último.
Minha geração também acreditou. Em alguns momentos parecia faltar pouco para deslancharmos de vez. Mas, alguma coisa sempre acontecia. Ou era um governo particularmente ruim, ou a conjuntura internacional que nos desfavorecia, ou falta de infraestrutura, ou pouca gente fazendo faculdade, ou muita gente fazendo faculdade, ou dengue, ou tantas outras coisas… E a gente acreditando no futuro do Brasil. A triste conclusão, depois de tudo, é que o país não vai. Vai é ser sempre o que já é: uma terra de gente simpática, agradável, sociável, mas um país de segunda, com enorme desigualdade social, uma elite econômica tendendo para a arrogância, o povo defendendo-se com certa dissimulação, corrupção endêmica e estrutural, governantes de todos os poderes usufruindo as benesses de seus cargos e o país, como um todo, distanciando-se, cada vez mais, das economias principais, seja dos tigres asiáticos, dos ursos europeus, dos cangurus australianos e até das lhamas andinas.
Sim, temos um motivo estrutural para isso: o Brasil tornou-se em 1822, formalmente, um estado nacional, mas não era nada disso. A maior parte dos países se organiza de baixo para cima, criando, paulatinamente uma consciência de identidade nacional e só depois busca se constituir politicamente, desvincular-se de ligações que eventualmente tinha (dependência política, heterogeneidade cultural e/ou religiosa, libertação nacional, etc.). O estado nacional vem depois, não antes. Basta pensar como se constituíram estados nacionais tão diversos como Estados Unidos, França, Rússia, Israel ou Angola para que esses processos históricos fiquem claros. No Brasil ocorreu algo bem diferente: tivemos um filho do rei de Portugal liderando um suposto movimento em um país onde representantes de povos indígenas e africanos, que constituíam a maioria da população, não foram sequer consultados e, no caso dos cativos (formalmente escravizados ou não), sequer libertados.
Por outro lado, temos que reconhecer que a razão estrutural, esse “pecado original” de nossa formação, não pode explicar tudo. Afinal, tivemos mais de duzentos anos depois da independência formal para superar esse problema e não o fizemos. Entra governo, sai governo e continuamos atrás. Pesquisas recentes, publicadas por economistas respeitáveis, chamam a atenção para o fato de continuarmos atrasados. Há décadas corríamos atrás da China. Depois, dos demais “tigres asiáticos”. Também ficamos vendo a poeira levantada pelos grandes felinos. O diagnóstico é o de sempre: nossa mão de obra é pouco eficaz, tanto técnica quanto cientificamente. Não preparamos adequadamente as pessoas e o resultado é a baixa rentabilidade. Isso não tem a ver com inteligência ou habilidade de nossa mão de obra. Tem a ver com formação, escolaridade.
Ora, uma boa escola precisa de bons professores. Não adianta ter programas e mais programas de livros para os alunos. Um bom professor consegue dar aulas com livros de alunos de qualidade sofrível, mas para um professor mal formado não adianta os alunos terem os melhores livros. São os professores que precisam ter os melhores livros, os mais atualizados. São eles os formadores de cientistas, técnicos e operários. Se não tivermos bons professores, decentemente remunerados e sabiamente exigidos, não poderemos ter gente qualificada e eficaz em suas atividades. Há 30 anos, no governo Itamar Franco, uma comissão de professores, intelectuais e representantes da sociedade foi formada para discutir o assunto no Ministério de Educação e a conclusão foi que professores do ensino público deveriam receber livros de qualidade para sua formação. Essa comissão, dirigida pela grande educadora recentemente falecida, Magda Soares, fez um belo trabalho. Contudo, como aqui não há política de Estado e sim política de Governo, a coisa não se manteve.
Hoje precisamos de muito mais que livros para professores (embora esses continuem imprescindíveis). Contudo, pelo que se vê e lê, o Brasil parece ter outras prioridades. Mas como não falta combustível para levar o pessoal de volta aos currais eleitorais nos fins de semana, está tudo bem por aqui.
Minha geração também acreditou. Em alguns momentos parecia faltar pouco para deslancharmos de vez. Mas, alguma coisa sempre acontecia. Ou era um governo particularmente ruim, ou a conjuntura internacional que nos desfavorecia, ou falta de infraestrutura, ou pouca gente fazendo faculdade, ou muita gente fazendo faculdade, ou dengue, ou tantas outras coisas… E a gente acreditando no futuro do Brasil. A triste conclusão, depois de tudo, é que o país não vai. Vai é ser sempre o que já é: uma terra de gente simpática, agradável, sociável, mas um país de segunda, com enorme desigualdade social, uma elite econômica tendendo para a arrogância, o povo defendendo-se com certa dissimulação, corrupção endêmica e estrutural, governantes de todos os poderes usufruindo as benesses de seus cargos e o país, como um todo, distanciando-se, cada vez mais, das economias principais, seja dos tigres asiáticos, dos ursos europeus, dos cangurus australianos e até das lhamas andinas.
Sim, temos um motivo estrutural para isso: o Brasil tornou-se em 1822, formalmente, um estado nacional, mas não era nada disso. A maior parte dos países se organiza de baixo para cima, criando, paulatinamente uma consciência de identidade nacional e só depois busca se constituir politicamente, desvincular-se de ligações que eventualmente tinha (dependência política, heterogeneidade cultural e/ou religiosa, libertação nacional, etc.). O estado nacional vem depois, não antes. Basta pensar como se constituíram estados nacionais tão diversos como Estados Unidos, França, Rússia, Israel ou Angola para que esses processos históricos fiquem claros. No Brasil ocorreu algo bem diferente: tivemos um filho do rei de Portugal liderando um suposto movimento em um país onde representantes de povos indígenas e africanos, que constituíam a maioria da população, não foram sequer consultados e, no caso dos cativos (formalmente escravizados ou não), sequer libertados.
Por outro lado, temos que reconhecer que a razão estrutural, esse “pecado original” de nossa formação, não pode explicar tudo. Afinal, tivemos mais de duzentos anos depois da independência formal para superar esse problema e não o fizemos. Entra governo, sai governo e continuamos atrás. Pesquisas recentes, publicadas por economistas respeitáveis, chamam a atenção para o fato de continuarmos atrasados. Há décadas corríamos atrás da China. Depois, dos demais “tigres asiáticos”. Também ficamos vendo a poeira levantada pelos grandes felinos. O diagnóstico é o de sempre: nossa mão de obra é pouco eficaz, tanto técnica quanto cientificamente. Não preparamos adequadamente as pessoas e o resultado é a baixa rentabilidade. Isso não tem a ver com inteligência ou habilidade de nossa mão de obra. Tem a ver com formação, escolaridade.
Ora, uma boa escola precisa de bons professores. Não adianta ter programas e mais programas de livros para os alunos. Um bom professor consegue dar aulas com livros de alunos de qualidade sofrível, mas para um professor mal formado não adianta os alunos terem os melhores livros. São os professores que precisam ter os melhores livros, os mais atualizados. São eles os formadores de cientistas, técnicos e operários. Se não tivermos bons professores, decentemente remunerados e sabiamente exigidos, não poderemos ter gente qualificada e eficaz em suas atividades. Há 30 anos, no governo Itamar Franco, uma comissão de professores, intelectuais e representantes da sociedade foi formada para discutir o assunto no Ministério de Educação e a conclusão foi que professores do ensino público deveriam receber livros de qualidade para sua formação. Essa comissão, dirigida pela grande educadora recentemente falecida, Magda Soares, fez um belo trabalho. Contudo, como aqui não há política de Estado e sim política de Governo, a coisa não se manteve.
Hoje precisamos de muito mais que livros para professores (embora esses continuem imprescindíveis). Contudo, pelo que se vê e lê, o Brasil parece ter outras prioridades. Mas como não falta combustível para levar o pessoal de volta aos currais eleitorais nos fins de semana, está tudo bem por aqui.
A extrema direita que cai das nuvens
A ideia inicial era escrever um texto que falasse da negação da realidade como atitude humana.
Já mencionei aqui um importante artigo de Freud sobre o tema, e o exemplo que cita. É o do rei que manda decapitar o mensageiro que trouxe uma carta anunciando que sua cidade seria sitiada por invasores inimigos. Bolsonaro negou o maior acontecimento da História recente. A tragédia se abateria sobre o povo, arrastando-o no caminho a ponto de se tornar um vulgar falsificador de documentos sanitários.
Nem sempre voltar as costas à História significa atropelamento de morte. Em vidas singulares, costuma ser inteligente. Lembro-me do filme de Ettore Scola que no Brasil se chamou “Um dia muito especial”. No dia 6 de maio de 1938, Hitler visitou Mussolini em Roma. Quase todos os romanos foram para as manifestações bater os tambores da guerra que se aproximava. Duas pessoas entram num prédio em busca de um pássaro que fugira. Ela (Sophia Loren), mulher de um fascista que estava nas manifestações; ele (Marcello Mastroianni), um radialista demitido porque era gay. O encontro dos dois, a delicada amizade que surgiu naquela conversa, os enriqueceu para a vida inteira.
Poderia seguir investigando os momentos em que saltamos do bonde da História. Mas pretendo me fixar na extrema direita, representada por Bolsonaro, que chegou ao poder por saber usar muito bem os recursos do mundo digital. É uma direita próxima do crime, em que oficiais do Exército se comportam como milicianos, e, apesar do discurso moralista, suas bases mais profundas são estruturas políticas barra-pesada da Baixada Fluminense.
Interessante ver como essa mesma extrema direita, terraplanista e antivacina, cai literalmente das nuvens. O itinerário para mim é cristalino: Bolsonaro decreta cem de anos de sigilo sobre sua carteira de vacinação. Qualquer adversário que lhe sucedesse (ele não pensava em derrota) desconfiaria de algo tão bizarro. A partir daí, bastaria pesquisar no sistema do Ministério da Saúde. As provas estavam lá. Surgiu uma entrada de vacinação falsa em nome dele em São Paulo. Uma tentativa fracassada de adulterar o sistema em Goiás acabou levando a PF a pesquisar o núcleo de Duque de Caxias.
Começaram aí a cair das nuvens. As entradas falsas, dizia o sistema, foram detectadas e, encontradas também todas as tentativas de apagá-las, foi localizado o computador que acessou as carteiras de vacinação — enfim, o sistema contava toda a história, da planície ao Palácio do Planalto. Naturalmente as trocas de mensagem por celular também facilitariam, mas toda a história é uma trapalhada nas nuvens.
O tenente-coronel Mauro Cid era ajudante de ordens de Bolsonaro. Para um governo de extrema direita que usou o mundo digital para chegar ao poder, é, na verdade, um desses atores políticos a quem chamamos de aloprado. Pensar que ele comandaria um batalhão especial em Goiânia e que Anderson Torres era o secretário de Segurança em Brasília é ter quase certeza de ataques à democracia.
Mesmo diante das vísceras da extrema direita, há quem ainda a considere uma saída política moderna e defensável. O episódio, no entanto, embaralha o futuro dessa corrente e de seu líder. Bolsonaro não tem a dignidade de um herói grego que falhou ao decifrar a esfinge. Ele pura e simplesmente negou uma realidade gigantesca. Não se pode trabalhar no caso apenas com o conceito de dificuldade cognitiva. Certamente, há fatores emocionais que me escapam.
No entanto, na derrota diante da pandemia, sua capacidade cognitiva foi atingida ao decretar cem anos de sigilo sobre a própria carteira de vacinação. Daqui a cem anos, ninguém se interessará pela carteira de vacinação de Bolsonaro. Mas ele certamente será lembrado com a mesma ênfase com que, depois de séculos, Freud se lembrou do rei que rasgou a carta e decapitou o mensageiro.
Já mencionei aqui um importante artigo de Freud sobre o tema, e o exemplo que cita. É o do rei que manda decapitar o mensageiro que trouxe uma carta anunciando que sua cidade seria sitiada por invasores inimigos. Bolsonaro negou o maior acontecimento da História recente. A tragédia se abateria sobre o povo, arrastando-o no caminho a ponto de se tornar um vulgar falsificador de documentos sanitários.
Nem sempre voltar as costas à História significa atropelamento de morte. Em vidas singulares, costuma ser inteligente. Lembro-me do filme de Ettore Scola que no Brasil se chamou “Um dia muito especial”. No dia 6 de maio de 1938, Hitler visitou Mussolini em Roma. Quase todos os romanos foram para as manifestações bater os tambores da guerra que se aproximava. Duas pessoas entram num prédio em busca de um pássaro que fugira. Ela (Sophia Loren), mulher de um fascista que estava nas manifestações; ele (Marcello Mastroianni), um radialista demitido porque era gay. O encontro dos dois, a delicada amizade que surgiu naquela conversa, os enriqueceu para a vida inteira.
Poderia seguir investigando os momentos em que saltamos do bonde da História. Mas pretendo me fixar na extrema direita, representada por Bolsonaro, que chegou ao poder por saber usar muito bem os recursos do mundo digital. É uma direita próxima do crime, em que oficiais do Exército se comportam como milicianos, e, apesar do discurso moralista, suas bases mais profundas são estruturas políticas barra-pesada da Baixada Fluminense.
Interessante ver como essa mesma extrema direita, terraplanista e antivacina, cai literalmente das nuvens. O itinerário para mim é cristalino: Bolsonaro decreta cem de anos de sigilo sobre sua carteira de vacinação. Qualquer adversário que lhe sucedesse (ele não pensava em derrota) desconfiaria de algo tão bizarro. A partir daí, bastaria pesquisar no sistema do Ministério da Saúde. As provas estavam lá. Surgiu uma entrada de vacinação falsa em nome dele em São Paulo. Uma tentativa fracassada de adulterar o sistema em Goiás acabou levando a PF a pesquisar o núcleo de Duque de Caxias.
Começaram aí a cair das nuvens. As entradas falsas, dizia o sistema, foram detectadas e, encontradas também todas as tentativas de apagá-las, foi localizado o computador que acessou as carteiras de vacinação — enfim, o sistema contava toda a história, da planície ao Palácio do Planalto. Naturalmente as trocas de mensagem por celular também facilitariam, mas toda a história é uma trapalhada nas nuvens.
O tenente-coronel Mauro Cid era ajudante de ordens de Bolsonaro. Para um governo de extrema direita que usou o mundo digital para chegar ao poder, é, na verdade, um desses atores políticos a quem chamamos de aloprado. Pensar que ele comandaria um batalhão especial em Goiânia e que Anderson Torres era o secretário de Segurança em Brasília é ter quase certeza de ataques à democracia.
Mesmo diante das vísceras da extrema direita, há quem ainda a considere uma saída política moderna e defensável. O episódio, no entanto, embaralha o futuro dessa corrente e de seu líder. Bolsonaro não tem a dignidade de um herói grego que falhou ao decifrar a esfinge. Ele pura e simplesmente negou uma realidade gigantesca. Não se pode trabalhar no caso apenas com o conceito de dificuldade cognitiva. Certamente, há fatores emocionais que me escapam.
No entanto, na derrota diante da pandemia, sua capacidade cognitiva foi atingida ao decretar cem anos de sigilo sobre a própria carteira de vacinação. Daqui a cem anos, ninguém se interessará pela carteira de vacinação de Bolsonaro. Mas ele certamente será lembrado com a mesma ênfase com que, depois de séculos, Freud se lembrou do rei que rasgou a carta e decapitou o mensageiro.
Assinar:
Postagens (Atom)