quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

Intestinos de Bolsonaro

Em todos os filmes do Zorro, de Douglas Fairbanks e Tyrone Power a Antonio Banderas, a derrubada do governo que oprime e explora o México só precisa que o herói vare com sua espada o chefe de polícia, depois de lhe fazer um Z na testa, e o povo, portando archotes, derrube os portões da hacienda do governador corrupto e de sua família e prenda todo mundo. É empolgante, mas a ideia de que uma hacienda podia servir de metáfora para simbolizar um país sempre me soou implausível.


Pensando bem, não é assim tão implausível. O Brasil de Jair Bolsonaro é como uma grande hacienda. Pode estar dividida em um ou dois palácios, Planalto e Alvorada, e outras tantas mansões à beira do lago dos bacanas, compradas com dinheiro vivo por seus filhos e ex-mulheres. Mas o espírito da coisa é o mesmo. O governo é uma operação familiar, com a máquina pública a serviço de seus interesses particulares —poder, propriedades, prestígio, prazeres, impunidade. E, se você já se revolta com os absurdos que se perpetram à luz do dia, tente imaginar o que acontece nos intestinos do poder e de que não ficamos sabendo.

Mas às vezes ficamos. Nesta quarta-feira, a Folha levantou uma manobra de uso de um órgão federal, acionado por um filho de Bolsonaro, numa estratégia jurídica visando a desmontar as investigações do caso das "rachadinhas", de que ele é acusado há anos. A manobra consistiu em ocupar por quatro meses de 2020-21 uma equipe de servidores da Receita Federal para tentar melar o processo e identificar, por nome e CPF —com que intenções?—, os auditores que conduziam as investigações.

Imagino que o uso de funcionários graduados, pagos com nossos impostos, para sabotar investigações de assuntos que nos dizem respeito seja algo de muito grave. Mas para isso servem os intestinos, não? Para processar merda.

Cedo ou tarde, eles explodirão. E, quando acontecer, mantenha distância da hacienda.

Como termina a crise na Ucrânia

A discussão pública sobre a Ucrânia tem tudo a ver com confronto. Mas sabemos para onde vamos? Na minha vida, vi quatro guerras começarem com grande entusiasmo e apoio público, todas as quais não soubemos como terminar e de três das quais nos retiramos unilateralmente. O teste da política é como ela termina, não como começa.

Com demasiada frequência, a questão ucraniana é apresentada como um confronto: se a Ucrânia se junta ao Oriente ou ao Ocidente. Mas para que a Ucrânia sobreviva e prospere, não deve ser o posto avançado de nenhum dos lados contra o outro – deve funcionar como uma ponte entre eles.

A Rússia deve aceitar que tentar forçar a Ucrânia a um status de satélite e, assim, mover as fronteiras da Rússia novamente, condenaria Moscou a repetir sua história de ciclos autorrealizáveis de pressões recíprocas com a Europa e os Estados Unidos.

O Ocidente deve entender que, para a Rússia, a Ucrânia nunca pode ser apenas um país estrangeiro. A história russa começou no que foi chamado de Kievan-Rus. A religião russa se espalhou a partir daí. A Ucrânia faz parte da Rússia há séculos, e suas histórias estavam entrelaçadas antes disso.

Algumas das batalhas mais importantes pela liberdade russa, começando com a Batalha de Poltava em 1709, foram travadas em solo ucraniano. A Frota do Mar Negro – o meio da Rússia de projetar poder no Mediterrâneo – é baseada em arrendamento de longo prazo em Sebastopol, na Crimeia. Até mesmo dissidentes famosos como Aleksandr Solzhenitsyn e Joseph Brodsky insistiam que a Ucrânia era parte integrante da história russa e, de fato, da Rússia.


A União Europeia deve reconhecer que a sua lentidão burocrática e a subordinação do elemento estratégico à política interna na negociação da relação da Ucrânia com a Europa contribuíram para transformar uma negociação em crise. A política externa é a arte de estabelecer prioridades.

Os ucranianos são o elemento decisivo. Eles vivem em um país com uma história complexa e uma composição poliglota. A parte ocidental foi incorporada à União Soviética em 1939, quando Stalin e Hitler dividiram os despojos. A Crimeia, cuja população é russa de 60%, tornou-se parte da Ucrânia apenas em 1954, quando Nikita Khrushchev, ucraniano de nascimento, a concedeu como parte da celebração do 300º ano de um acordo russo com os cossacos. O Ocidente é em grande parte católico; o Oriente em grande parte ortodoxo russo. O Ocidente fala ucraniano; o Oriente fala principalmente russo. Qualquer tentativa de uma ala da Ucrânia de dominar a outra – como tem sido o padrão – levaria eventualmente à guerra civil ou à ruptura. Tratar a Ucrânia como parte de um confronto Leste-Oeste arruinaria por décadas qualquer perspectiva de trazer a Rússia e o Ocidente – especialmente a Rússia e a Europa – para um sistema internacional cooperativo.

A Ucrânia é independente há apenas 23 anos; anteriormente estava sob algum tipo de domínio estrangeiro desde o século 14. Não surpreendentemente, seus líderes não aprenderam a arte do compromisso, muito menos a perspectiva histórica. A política da Ucrânia pós-independência demonstra claramente que a raiz do problema está nos esforços dos políticos ucranianos para impor sua vontade a partes recalcitrantes do país, primeiro por uma facção, depois pela outra. Essa é a essência do conflito entre Viktor Yanukovych e sua principal rival política, Yulia Tymoshenko. Eles representam as duas alas da Ucrânia e não estão dispostos a dividir o poder. Uma política sábia dos EUA em relação à Ucrânia buscaria uma maneira de as duas partes do país cooperarem entre si. Devemos buscar a reconciliação, não a dominação de uma facção.

A Rússia e o Ocidente, e muito menos as várias facções na Ucrânia, não agiram de acordo com esse princípio. Cada um piorou a situação. A Rússia não conseguiria impor uma solução militar sem se isolar em um momento em que muitas de suas fronteiras já são precárias. Para o Ocidente, a demonização de Vladimir Putin não é uma política; é um álibi para a ausência de uma.

Putin deve perceber que, quaisquer que sejam suas queixas, uma política de imposições militares produziria outra Guerra Fria. De sua parte, os Estados Unidos precisam evitar tratar a Rússia como uma aberração a ser pacientemente ensinada sobre as regras de conduta estabelecidas por Washington. Putin é um estrategista sério – nas premissas da história russa. Compreender os valores e a psicologia dos EUA não são seus pontos fortes. A compreensão da história e da psicologia russas também não foi um ponto forte dos formuladores de políticas dos EUA.

Líderes de todos os lados devem voltar a examinar os resultados, não competir em postura. Aqui está minha noção de um resultado compatível com os valores e interesses de segurança de todos os lados:

A Ucrânia deve ter o direito de escolher livremente suas associações econômicas e políticas, inclusive com a Europa.

A Ucrânia não deve aderir à OTAN, posição que assumi há sete anos, quando surgiu pela última vez.

A Ucrânia deve ser livre para criar qualquer governo compatível com a vontade expressa de seu povo. Os sábios líderes ucranianos optariam então por uma política de reconciliação entre as várias partes de seu país. Internacionalmente, devem seguir uma postura comparável à da Finlândia. Essa nação não deixa dúvidas sobre sua feroz independência e coopera com o Ocidente na maioria dos campos, mas evita cuidadosamente a hostilidade institucional em relação à Rússia.

É incompatível com as regras da ordem mundial existente a Rússia anexar a Crimeia. Mas deve ser possível colocar o relacionamento da Crimeia com a Ucrânia em uma base menos tensa. Para esse fim, a Rússia reconheceria a soberania da Ucrânia sobre a Crimeia. A Ucrânia deve reforçar a autonomia da Crimeia nas eleições realizadas na presença de observadores internacionais. O processo incluiria a remoção de quaisquer ambiguidades sobre o status da Frota do Mar Negro em Sebastopol.

Estes são princípios, não prescrições. As pessoas familiarizadas com a região saberão que nem todos serão palatáveis para todas as partes. O teste não é a satisfação absoluta, mas a insatisfação equilibrada. Se alguma solução baseada nesses elementos ou em elementos comparáveis não for alcançada, a tendência para o confronto se acelerará. O tempo para isso chegará em breve.
Henry Kissinger, secretário de Estado de 1973 a 1977, em artigo publicado no jornal Washington Post em 06/03/2014

Verbete

História, s.f. Um relato, quase todo falso, de eventos, quase todos sem importância, provocados por governantes, quase todos uns velhacos, e soldados, quase todos uns patetas
Ambrose Bierce

Sobre a extinção da imprensa

Há dois anos, em janeiro de 2020, o presidente da República olhou para um pequeno grupo de jornalistas no portão do Palácio da Alvorada e bradou: “Vocês são uma espécie em extinção”. Seus apoiadores, amontoados bem ao lado, riam e babavam, em agitações libidinais. O chefe de Estado prosseguiu: “Acho que eu vou botar os jornalistas do Brasil, éééé..., vinculado (sic) ao Ibama. Vocês são uma raça em extinção”. Mais risadas ao fundo. A voz do governante exalava um júbilo azedo. Ele falava como se comemorasse uma bonança e, no seu estilo bestial de celebrar, disparava agressões aos profissionais da imprensa que acorriam à entrada do Alvorada para registrar seus descalabros diários.

Naqueles tempos, estava em alta o famoso “cercadinho”, uma espécie de curral improvisado ao lado da portaria do palácio. Religiosamente, a autoridade máxima do País ofendia aos gritos homens e mulheres dedicados a apurar notícias para informar a sociedade. Eram recorrentes os xingamentos sexuais, chulos e repugnantes. Ele exultava, em êxtase com o papel que inventara para si mesmo, qual seja, o de profeta da aniquilação de uma “espécie”.


Passados dois anos, o “cercadinho” não tem mais a projeção que teve, mas o tom presidencial segue idêntico. Em 2020, ele afirmava que “quem lê jornal está desinformado”; agora, mantém a pregação. Aos seus olhos baços, não há diferenças substantivas entre os diários sérios, com CNPJ, endereço e telefone, e os centros semiclandestinos de inspiração fascista que produzem e distribuem fake news temperadas com mensagens racistas, misóginas e odientas. Aos primeiros, trata como inimigos, e, aos segundos, já se referiu como “a mídia a meu favor”. Na substância, porém, segundo seu discernimento primário, só o que mudaria entre uns e outros é a “opinião” ou a “narrativa”. No mais, seriam equivalentes uns dos outros.

Nada poderia ser mais obtuso. O presidente não compreende o que seja método de apuração da realidade, assim como não alcança o estatuto lógico da fiscalização pública do poder. Não sabe distinguir entre o juízo de valor e o juízo de fato – não sabe e não tem como saber, pois o modelo de poder que ele representa abomina essa distinção. Vai daí que, em seus sonhos, imprensa boa é imprensa extinta.

De nossa parte, sabemos que os sonhos desse personagem correspondem aos nossos pesadelos mais apavorantes. Pior ainda: muitos desses pesadelos vêm se tornando reais. A imprensa vive tempos sufocantes. Títulos de grande reputação fecham as portas no Brasil e em muitos outros países. O jornalismo local está em declínio. Em dezembro passado, o Atlas da Notícia, do Projor, registrou o encerramento das atividades de 17 veículos brasileiros de médio ou grande alcance em quatro anos.

Surge, então, a pergunta: quer dizer que o presidente está certo e que a atividade jornalística entrou em extinção? A resposta é negativa. Não, claro que não. O inquilino do Palácio da Alvorada não tem razão em nada do que fala – aliás, a palavra “razão” não encontra aderência à sua figura. O que ocorre é que existe, efetivamente, uma crise generalizada nas redações, que a cada dia ficam menores, mais pobres e mais fracas, e isso faz parecer que o tal sujeito tem razão, mas ele não tem.

Não está em curso nenhuma “extinção”. Ao contrário, há registros animadores vindos de novas formas de jornalismo digital (como o Poder360 ou o Nexo Jornal) e de organizações jornalísticas sem fins de lucro (Agência Pública, entre outras). Só o que acontece, aí sim, é que o cenário geral é desalentador – a tal ponto que, quando alardeia o ocaso desta profissão, o presidente encontra respaldo em fragmentos da realidade, e se regozija. Fora isso, não sabe o que diz.

Tanto não sabe que não se sabe efeito – e não causa – da quadra medonha que atravessamos. Definitivamente, o esmorecimento das redações não brota das palavras que ele pronuncia ou da vontade liberticida que ele encarna, mas o contrário: ele é que é o produto do enfraquecimento da imprensa.

O jornalismo não está em crise porque os líderes autoritários, que o xingam de “lixo” (à moda dos nazistas nos anos 1920 e 1930), conseguiram finalmente derrubá-lo. O jornalismo está em crise porque foi alcançado pela combinação de três fatores tão profundos quanto adversos: a transformação estrutural de seus padrões tecnológicos (que não soube acompanhar), a obsolescência de seus modelos de negócio e o fosso que se abriu entre a imprensa e os processos decisórios da democracia (imprensa e democracia se distanciaram).

As correntes fascistas do presente cresceram no vazio informativo e institucional deixado por essa crise, e aí criaram a indústria da desinformação. Essas correntes, que dominam ferramentas tecnológicas avançadíssimas para tentar construir relações políticas atrasadíssimas, têm clareza de que devem trabalhar pela extinção da democracia. Só atacam a imprensa para ensaiar o golpe maior. Ainda estão longe de alcançar o seu intento, é verdade, mas não darão sossego por muito tempo.

Pensamento do Dia

 


A vida em caixas de papelão

Um dos meus professores me disse que sua vida profissional cabia em caixas de papelão. “Em 42 caixas, para ser preciso!”, afirmou, irônico.

Não entendi bem o “Mestre” pois, aos 20 anos, como eu ia entender um cara com suas 80 e tantas primaveras?

“Como 42 caixas?”, repliquei agastado com o que tomava como uma auto desvalorização. “O senhor tem uma bela carreira e seus livros são importantes. Sua trajetória é impecável.”

“Você não entendeu. Falo de uma vida encaixotada que vai para um depósito para ser, dizem, pesquisada, mas que será esquecida como ocorre com todas as vidas. Roída por traças, como diria um duro Machado de Assis que, por sinal, não foi esquecido...”

Lembrei-me de uma frase do livro Quando Nietzsche Chorou, de Irvin D. Yalom. Nele, li que Nietzsche teria dito: “Morrer é duro. Sempre senti que a recompensa final dos mortos é não morrer nunca mais”.

Naquela época, eu só havia vivido mortes apropriadas e, digamos, leves como a de vovô Raul. O demasiado humano é, sem dúvida, a finitude. O transitório nos faz ser o que somos, pois sem ele seríamos todos tediosa e perigosamente iguais.

Acho que entendo o “Mestre”.

Meus avós, pais, tios e professores não morrem mais e estão recompensados. Todos foram encaixotados. O morto comum é, com o perdão do trocadilho, encaixotado apenas uma vez. O “Mestre” supostamente ilustre é colocado em múltiplas caixas. Um pedaço importante de sua vida vira um arquivo. Tudo é enquadrado, menos suas lágrimas, angústias e desespero, bem como a esperança dos escritos encaixotados.

A vida se abre diante de nós por etapa. A morte igualmente chega aos rodeios. Primeiro, avós e tios, depois pais e, finalmente, irmãos. O mais duro, diria eu ao filósofo, não é somente morrer, é honrar o morto quando a morte leva um filho. O sangue do seu sangue.

Escrevo essa melancólica crônica pensando nos mortos de uma Petrópolis na qual um dilúvio trouxe a morte em torrentes. É o vale de lágrimas sendo novamente provado nestes tempos em que se faz presente em todos os lugares e corações.

Quando meus irmãos e eu chegamos à casa onde meu avô jazia morto na então enorme “cama de casal”, minha avó Emerentina não deixou que nos aproximássemos do corpo porque estávamos – meus quatro irmãos, um primo e eu – engravatados e prontos para ir a um baile.

“Vocês não têm nada que fazer aqui”, disse vovó disfarçando o choro dos seus trinta anos de casamento. “Vocês vão para o baile. Dancem, namorem, divirtam-se e amanhã vocês vão chorar a morte do seu avô.”

Brasil é exemplo de piora global da democracia

A democracia brasileira continua sua rota de desgaste, segundo o Índice de Transformação Bertelsmann (BTI), estudo publicado a cada dois anos pela Fundação Bertelsmann, sediada na Alemanha, e que avalia a consolidação da democracia e da economia de mercado em países em desenvolvimento.

De acordo com a nova edição da análise, o BTI 2022, divulgado ontem, o Brasil está entre os países considerados até há poucos anos como uma democracia estável e que passou a ser classificado como "democracia defeituosa".

"Nos últimos dez anos, quase uma em cada cinco democracias apresentaram um declínio contínuo da qualidade de democracia. Isso também afetou alguns países que ainda eram tidos no BTI 2012 como democracias estabelecidas e em consolidação: Brasil, Bulgária, Índia, Sérvia e Hungria, e desde meados da década passada também a Polônia."

"Esses seis países sofreram todos uma queda acima de um ponto no valor total de transformação política na escala BTI e agora são classificadas como democracias defeituosas°, afirma o estudo. "Seus governos pertencem ao espectro que vai do conservador ao nacionalista e são caracterizados por graus variados de populismo de direita."


A análise aponta a polarização política no Brasil e os ataques de seu chefe de Estado às instituições como algumas das causas dessa piora dos indicadores democráticos. "O populismo de direita agressivo do presidente Jair Bolsonaro no Brasil dá continuidade à polarização política dos últimos anos e tenta reverter progressos emancipatórios e sócio-políticos para agradar a sua clientela de evangélicos, conservadores sociais e lobistas empresariais."

Como fator atenuante, contudo, afirma o texto, o governante tem suas "aspirações abertamente antidemocráticas" limitadas por "um Judiciário independente e uma sociedade civil forte".

No ranking elaborado pela Fundação Bertelsmann, o Brasil ficou na 23ª posição da lista de 137 países analisados. A nota consolidada do Brasil no índice – que vai de 0 a 10 – retrocedeu de 7,2 para 6,83 entre 2020 e 2022, a pior nota já concedida ao país desde o início da série, em 2006.

Neste mês, um estudo britânico publicado anualmente sobre a situação da democracia no mundo chegou a resultados similares, apontando Bolsonaro como um exemplo de líder populista que provoca a erosão da democracia brasileira.

Pela primeira vez desde 2004, o BTI registrou mais Estados autocráticos do que democráticos. Dos 137 países avaliados, apenas 67 ainda são democracias; o número de autocracias aumentou para 70.

“Este é o pior resultado de transformação política que já medimos nos 15 anos de nosso trabalho”, diz Hauke Hartmann, da Fundação Bertelsmann, em entrevista à DW. Ele ressalta que na média global há menos eleições livres e justas, menos liberdade de opinião e reunião, e a separação de poderes está sendo cada vez mais desgastada.

Como, por exemplo, na Tunísia, um país que foi por muito tempo considerado o último farol de esperança para os movimentos de democratização da Primavera Árabe. No entanto, o presidente Kais Saied governa por decreto desde que tirou o poder de Parlamento e governo em julho de 2021 e suspendeu partes da Constituição. Mais recentemente, Saied dissolveu o Conselho Superior da Magistratura, que deveria garantir a independência do Judiciário no país.

Esse é apenas um de muitos exemplos que Hartmann menciona: "A Turquia foi a que mais perdeu nos últimos dez anos sob o presidente Erdogan, que na verdade começou como um farol de esperança. Porque a separação de poderes e a participação são tão limitadas nesse caso, que há dois anos tivemos que classificar a Turquia como uma autocracia. Infelizmente essa avaliação não mudou nesse meio tempo."

É preocupante que muitas democracias anteriormente bem estabelecidas tenham caído na categoria de "democracias defeituosas". Por exemplo, através do curso etnonacionalista do primeiro-ministro Narendra Modi na Índia ou dos governos autoritários de direita dos presidentes Jair Bolsonaro no Brasil e Rodrigo Duterte nas Filipinas.

"Para mim, essas são as democracias que há dez anos classificávamos como em consolidação, como estáveis, e que agora têm grandes defeitos em seus processos políticos."

Hartmann vê as elites políticas e econômicas, que querem proteger seu sistema clientelista e corrupto, como a principal causa do fortalecimento dos sistemas autocráticos e da erosão das normas democráticas. "Na maioria dos 137 países que examinamos, estamos lidando com um sistema político baseado na pseudo-participação e num sistema econômico que distorce a concorrência e impede a participação econômica e social."

Isso pode ser observado com particular frequência na América Central, onde a política é muitas vezes minada por estruturas mafiosas. Assim como na África Subsaariana, onde os indivíduos garantiram sinecuras políticas e exploraram a fraca institucionalização dos processos políticos.

"Politicamente, as autocracias, em particular, usaram a pandemia para restringir ainda mais os direitos fundamentais e suprimir vozes críticas", afirmam os autores do estudo, ponderando entretanto, que Bolsonaro não conseguiu lucrar com a crise.

"Populistas como o presidente brasileiro Jair Bolsonaro, por outro lado, fracassaram em capitalizar a pandemia de maneira polarizadora. A tentativa de ignorar o saber científico e a cooperação internacional e minimizar o risco do vírus, levou a uma propagação quase sem impedimento do vírus, com sérias consequências econômicas e sociais", dizem os autores no texto de divulgação do BTI 2022.

A pandemia de coronavírus provocou mais restrições aos direitos políticos e civis em muitos países. Na maioria dos casos, de forma moderada, limitada no tempo e, no que diz respeito às democracias, também legitimada pelo Parlamento, segundo Hartmann.

“Mas encontramos exceções em regimes populistas com traços autoritários como as Filipinas ou a Hungria, ou em autocracias como Azerbaijão, Camboja ou Venezuela, que usaram a pandemia como pretexto para impulsionar ainda mais a repressão”, diz o especialista. Em autocracias avançadas como a China, a extensão da vigilância digital aumentou enormemente.

Apesar da tendência mundial para mais autocracia, Hartmann também continua a acreditar que a maioria dos seres humanos anseia por liberdade. Ele diz ter esperança de que não haja declínio no engajamento cívico, na média global.

"Veja, por exemplo, a coragem dos protestos por eleições livres em Balerus, a solidariedade da sociedade civil no Líbano, a luta contra o domínio militar no Sudão ou o protesto contra o golpe em Mianmar. Essa gente não está indo a uma manifestação qualquer, ela arrisca a vida por uma sociedade melhor." Para o especialista, trata-se de heróis, do último e mais perseverante bastião na luta global contra a autocracia.