quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

Sobre a extinção da imprensa

Há dois anos, em janeiro de 2020, o presidente da República olhou para um pequeno grupo de jornalistas no portão do Palácio da Alvorada e bradou: “Vocês são uma espécie em extinção”. Seus apoiadores, amontoados bem ao lado, riam e babavam, em agitações libidinais. O chefe de Estado prosseguiu: “Acho que eu vou botar os jornalistas do Brasil, éééé..., vinculado (sic) ao Ibama. Vocês são uma raça em extinção”. Mais risadas ao fundo. A voz do governante exalava um júbilo azedo. Ele falava como se comemorasse uma bonança e, no seu estilo bestial de celebrar, disparava agressões aos profissionais da imprensa que acorriam à entrada do Alvorada para registrar seus descalabros diários.

Naqueles tempos, estava em alta o famoso “cercadinho”, uma espécie de curral improvisado ao lado da portaria do palácio. Religiosamente, a autoridade máxima do País ofendia aos gritos homens e mulheres dedicados a apurar notícias para informar a sociedade. Eram recorrentes os xingamentos sexuais, chulos e repugnantes. Ele exultava, em êxtase com o papel que inventara para si mesmo, qual seja, o de profeta da aniquilação de uma “espécie”.


Passados dois anos, o “cercadinho” não tem mais a projeção que teve, mas o tom presidencial segue idêntico. Em 2020, ele afirmava que “quem lê jornal está desinformado”; agora, mantém a pregação. Aos seus olhos baços, não há diferenças substantivas entre os diários sérios, com CNPJ, endereço e telefone, e os centros semiclandestinos de inspiração fascista que produzem e distribuem fake news temperadas com mensagens racistas, misóginas e odientas. Aos primeiros, trata como inimigos, e, aos segundos, já se referiu como “a mídia a meu favor”. Na substância, porém, segundo seu discernimento primário, só o que mudaria entre uns e outros é a “opinião” ou a “narrativa”. No mais, seriam equivalentes uns dos outros.

Nada poderia ser mais obtuso. O presidente não compreende o que seja método de apuração da realidade, assim como não alcança o estatuto lógico da fiscalização pública do poder. Não sabe distinguir entre o juízo de valor e o juízo de fato – não sabe e não tem como saber, pois o modelo de poder que ele representa abomina essa distinção. Vai daí que, em seus sonhos, imprensa boa é imprensa extinta.

De nossa parte, sabemos que os sonhos desse personagem correspondem aos nossos pesadelos mais apavorantes. Pior ainda: muitos desses pesadelos vêm se tornando reais. A imprensa vive tempos sufocantes. Títulos de grande reputação fecham as portas no Brasil e em muitos outros países. O jornalismo local está em declínio. Em dezembro passado, o Atlas da Notícia, do Projor, registrou o encerramento das atividades de 17 veículos brasileiros de médio ou grande alcance em quatro anos.

Surge, então, a pergunta: quer dizer que o presidente está certo e que a atividade jornalística entrou em extinção? A resposta é negativa. Não, claro que não. O inquilino do Palácio da Alvorada não tem razão em nada do que fala – aliás, a palavra “razão” não encontra aderência à sua figura. O que ocorre é que existe, efetivamente, uma crise generalizada nas redações, que a cada dia ficam menores, mais pobres e mais fracas, e isso faz parecer que o tal sujeito tem razão, mas ele não tem.

Não está em curso nenhuma “extinção”. Ao contrário, há registros animadores vindos de novas formas de jornalismo digital (como o Poder360 ou o Nexo Jornal) e de organizações jornalísticas sem fins de lucro (Agência Pública, entre outras). Só o que acontece, aí sim, é que o cenário geral é desalentador – a tal ponto que, quando alardeia o ocaso desta profissão, o presidente encontra respaldo em fragmentos da realidade, e se regozija. Fora isso, não sabe o que diz.

Tanto não sabe que não se sabe efeito – e não causa – da quadra medonha que atravessamos. Definitivamente, o esmorecimento das redações não brota das palavras que ele pronuncia ou da vontade liberticida que ele encarna, mas o contrário: ele é que é o produto do enfraquecimento da imprensa.

O jornalismo não está em crise porque os líderes autoritários, que o xingam de “lixo” (à moda dos nazistas nos anos 1920 e 1930), conseguiram finalmente derrubá-lo. O jornalismo está em crise porque foi alcançado pela combinação de três fatores tão profundos quanto adversos: a transformação estrutural de seus padrões tecnológicos (que não soube acompanhar), a obsolescência de seus modelos de negócio e o fosso que se abriu entre a imprensa e os processos decisórios da democracia (imprensa e democracia se distanciaram).

As correntes fascistas do presente cresceram no vazio informativo e institucional deixado por essa crise, e aí criaram a indústria da desinformação. Essas correntes, que dominam ferramentas tecnológicas avançadíssimas para tentar construir relações políticas atrasadíssimas, têm clareza de que devem trabalhar pela extinção da democracia. Só atacam a imprensa para ensaiar o golpe maior. Ainda estão longe de alcançar o seu intento, é verdade, mas não darão sossego por muito tempo.

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