sábado, 8 de janeiro de 2022

O Brasil tem fome

Fome. O tema é indigesto para iniciar o ano, mas obrigatório em um país onde mais da metade da população – 116,8 milhões – não come todos os dias e 9% – 19 milhões – têm carência alimentar grave. Avesso a pobres, o governo Jair Bolsonaro era sabidamente incapaz de fazer frente a essa penúria, que, pelo menos até aqui, também não frequenta a agenda dos demais presidenciáveis. No máximo, usam o estômago oco de milhões para rechear de indignação seus discursos, sem expor estratégias para livrar da indigência esse enorme contingente de brasileiros.

Bolsonaro, que neste ano – e só neste ano – vai pagar R$ 400 do Auxílio Brasil aos inscritos no Bolsa Família que ele implodiu, só vê os miseráveis como eleitores em potencial.


No primeiro ano da pandemia, os efeitos do auxílio emergencial de R$ 600 mantiveram seus índices de popularidade, segurando a onda nos 9 meses que durou. No fim de 2020, o suporte acabou enquanto a pandemia, que não termina por decreto, recrudescia. Resultado: mais pobres, que passaram a receber meio-auxílio, R$ 300, mesmo assim só três meses depois de ficarem à míngua.

Como desgraça é cumulativa, a inflação crescente estimulada pelo desgoverno Bolsonaro tratou de comer o pouco que ainda restava. Um desastre sem precedentes.

Mesmo Lula limita-se a falar do combate à fome no passado. Criador do Bolsa Família, que reuniu em um só programa iniciativas experimentadas pelo antecessor Fernando Henrique Cardoso, em especial o Comunidade Solidária, de Ruth Cardoso, e o Bolsa Escola, implantado pelo então governador do Distrito Federal, o ex-petista Cristovam Buarque, e pelo já falecido prefeito tucano de Campinas, José Roberto Magalhães Teixeira, Lula teria absoluta autoridade para abraçar o tema. Mas não o faz.

O Bolsa Família sucedeu ao retumbante fracasso do Fome Zero, ideia de Duda Mendonça para a campanha petista de 2001. No ano seguinte, o primeiro de Lula, a iniciativa marqueteira naufragou. À época, Maurício Andrade, coordenador do Ação da Cidadania – ONG criada pelo sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, que teria inspirado o programa – foi definitivo ao dizer que era “um nome de fantasia”.

Mesmo tendo recebido milhares de doações, entre elas o icônico cheque de Gisele Bünchen, que jamais chegou à contabilidade do programa, o Fome Zero nunca foi além da propaganda com a miséria alheia, algo que muitos candidatos não têm qualquer pudor em fazer.

Dilma Rousseff agregou ingredientes nesse tipo de tática eleitoral. Apoiada na combinação do Bolsa Família com o estímulo desenfreado ao consumo iniciado por Lula em tempos de commodities em alta, ela decretou o fim da miséria no Brasil. Sua caneta também inflou a classe média, incluindo nessa categoria todos os cidadãos com ganhos acima de R$ 291. Os anos seguintes desmontaram a ficção.

Mesmo sem conseguir soluções mais duradouras, aos pobres restava o Bolsa Família, um programa já consolidado, com contrapartidas importantes como frequência escolar e, para horror dos bolsonaristas, caderneta de vacinação das crianças. Registram-se ainda iniciativas estaduais e municipais de assistência e custeio que poderiam integrar uma política pública perene de contenção da miséria se houvesse interesse real em buscar soluções.

Sancionado por Bolsonaro na quinta-feira, 30, o novo auxílio ainda é uma incógnita. Está garantido para o ano eleitoral, mas não tem fonte de financiamento para 2023. E, ao contrário da promessa feita de zerar a fila dos inscritos para fazer passar a PEC do calote, na qual foram adiados pagamentos de precatórios, o auxílio só chegará aos 14,7 milhões já cadastrados no extinto Bolsa Família, e não aos 17 milhões de miseráveis elegíveis.

Ao descaso explícito de Bolsonaro soma-se a apatia dos demais candidatos. Também eles parecem estar mais interessados nos conchavos e alianças que possam bem acomodar os mesmos de sempre e, de quebra, reforçar o caixa de campanha e o tempo de rádio e TV, do que em apresentar algum tipo de saída para a miséria galopante.

Para 2022 fica a expectativa de que a fome entre no cardápio dos que disputam votos – que chuchu seja mais do que composição de chapa eleitoral e, mais importante, que seja o ano derradeiro do amargo e intragável Bolsonaro.

Nossa eterna e vil tristeza

A crise que ora assola o Brasil deve-se a problemas acumulados ao longo de décadas e a outros de ocorrência recente, entre os quais cumpre destacar os efeitos da recessão econômica iniciada no governo Dilma Rousseff, a pandemia Covid-19, o péssimo desempenho das instituições políticas, nos três Poderes e, não menos importante, a ascensão à presidência do sr. Jair Bolsonaro. Essa é, digamos assim, a parte visível do iceberg político, acima das elites e dos eleitores em geral. Hoje quero discorrer brevemente sobre as elites, fator raramente considerado. Entendo que sem elites robustas e bem preparadas, dificilmente as instituições políticas formais terão um bom desempenho.


Sempre que falo em elites, faço questão de logo advertir que não vou me referir a aristocracias, tampouco a grupos dirigentes ligados por laços de hereditariedade ou consanguinidade. Outro ponto preliminar importante é que elites entendidas como grupos reais são algo muito raro no mundo atual. Na maioria dos casos, o termo designa elites abstratas, que no fundo são pura e simplesmente os ápices de quantas hierarquias quisermos imaginar com base em posições objetivas (dirigentes políticos eleitos, alta administração civil e militar, empresários, líderes sindicais etc) ou na reputação de exercer grande influência na sociedade, como é o caso de universitários, intelectuais e jornalistas. Claro, os “ápices” a que me refiro não são homogêneos em termos de poder. Um jornalista destacado é parte de um deles, mas para pertencer à elite econômica você precisa viver em uma mansão, ter uma casa de campo ou no litoral e, quem sabe, um iate de dez milhões de reais.

Assim, enquanto as elites de antigamente, que eram grupos reais, caracterizavam-se por uma coesão “natural”, as elites atuais, sendo meros grupos numéricos, geralmente carecem de coesão. Este é o meu ponto. A eleição do sr. Jair Bolsonaro foi o reflexo perfeito de um País carente de elites capazes de balizar o processo político. Foi um fogo-cruzado rancoroso entre os cidadãos cuja imaginação ele conseguiu capturar para se contrapor aos petistas, que devolviam na mesma moeda.

Não por acaso, Bolsonaro começou prometendo uma “nova” “política” e pulou sem rebuços para o extremo oposto: o Centrão. O Supremo Tribunal Federal e o Congresso Nacional não deixaram por menos. Com a débil pressão moral que nossa sociedade é capaz de exercer, ambos têm perpetrado todo tipo de disparate. E, infelizmente, tudo indica que esse enredo se repetirá em 2022.

O que Jair Bolsonaro poderia aprender com os índios zoés do Pará

Se dois anos depois do Coronavírus aparecer na China, e aqui em março de 2020 colher a primeira vida, Bolsonaro insiste em exaltar drogas como a cloroquina para combater a pandemia, como é possível tanta gente ainda acreditar no que ele diz?

A memória coletiva é curta e a ignorância não tem limites. Não há no planeta um só caso registrado de cura pela cloroquina, mas e daí? No Recife dos anos 70, não faltou quem se dissesse vítima de uma perna cabeluda que aparecia do nada e batia nas pessoas.

Esta semana, Bolsonaro repetiu que crianças não morrem de Covid-19, apesar de mais de trezentas terem morrido no Brasil desde o início da pandemia. Por que no mundo e aqui crianças são vacinadas contra outras doenças? Estupidez dele ou maldade?

A meu ver, maldade. Se quiserem, os isentos poderão chamar de cálculo político. É a maneira que ele encontrou para manter unido o contingente de seguidores radicais que lhe resta. Afinal, Bolsonaro não veio para construir, mas para destruir.

Ao tomar posse, disse que seria o presidente de todos. Pois bem: o defensor extremado da tese de que o vírus só desaparecerá depois que matar quem tiver de morrer deveria trocar por instantes o cercadinho do Alvorada pela reserva dos índios zoés no Pará.


Ali, perto da fronteira com o Suriname, os zoés decidiram se isolar voluntariamente quando souberam da chegada de um novo vírus, como conta Letícia Holanda, repórter do Metrópoles. Montaram um sistema para não usar as mesmas trilhas entre as aldeias.

Só vão ao posto de Saúde para tomar vacina ou em situação de muita necessidade. Wahu Zoé, velho e quase cego, não tinha mais força para caminhar ida e volta os 6 quilômetros que separam sua casa do posto de saúde. O jovem Tawy Zoé carregou-o nas costas.

Nenhum dos 325 zoés pegou Covid até hoje. Em março último, o Palácio do Planalto registrou a primeira morte de um servidor por Covid: o sargento do Exército Silvio Kammers, supervisor da ajudância de ordens do gabinete de Bolsonaro.

À época, 460 servidores do palácio, de um total de 3.500, haviam contraído a doença. A taxa de infecção do lugar onde o presidente da República dá expediente diário era o dobro da média brasileira. Para não irritar Bolsonaro, os servidores evitam usar máscara.

No ano passado, Bolsonaro contou quase sete mentiras por dia, conforme um levantamento feito pela agência de checagem “Aos Fatos”. Foram 2.516 falas mentirosas ou distorcidas contra 1.592 em 2020 e 606 em 2019. A média diária saltou de 1,6 para 6,9.

Em ano eleitoral, o número de mentiras baterá um novo recorde. Quantas vidas isso não custará?