terça-feira, 17 de janeiro de 2023

O sentido do golpe demente

São muitas as interrogações que o golpe frustrado de 8 de janeiro em Brasília, suscita. Estarrecidos, nós perguntamos como podemos ter chegado a esse nível de barbárie a ponto de destruir os símbolos do governo de uma nação: os três poderes, o executivo, o legislativo e o judiciário? Isso não acontece por acaso. É consequência de fatores histórico-sociais anteriores que se materializaram na vandalização dos três palácios.

Filosoficamente podemos dizer que a dimensão de demens (demência, excesso, ausência da justa medida) sufocou a outra dimensão de sapiens (de racionalidade, de equilíbrio) que sempre a acompanha, pois esta é a condição humana. Ocorre que o demens prevaleceu sobre o sapiens e inundou a consciência de numerosos grupos humanos.

Tal fato mostra o lado perverso da cordialidade descrita por Sérgio Buarque de Holanda quando em Raízes do Brasil (1936) fala do brasileiro como homem cordial. A maioria dos analistas esquece a nota de rodapé que o autor faz ao explicar que cordialidade vem de coração. Neste coração há bondade, bem-querença, hospitalidade. Mas há também ódio, maldade e violência. Ambos têm sua sede no coração dos brasileiros.

O povo brasileiro mostrou a cordialidade nestas duas dimensões, a luminosa e a tenebrosa. Em Brasília desceu o espírito da demência pura, sem qualquer laivo de racionalidade, destruindo os órgãos que representam a democracia e a República.


Por que irrompeu a demência? Ela é fruto de uma história demente que começou com o genocídio dos povos originários, se implantou na colônia, como uma feitoria, uma empresa para fazer dinheiro e não para fundar uma nação. Agravou-se desmedidamente pelos 300 anos de escravismo quando pessoas arrancadas de África foram aqui feitas coisas, animais para o trabalho, escravos submetidos a todo tipo de exploração e violência a ponto que a idade média deles, segundo Darcy Ribeiro, não passar de 22 anos, tal era a brutalidade que sofriam. A abolição os jogou ao deus-dará, na rua e na favela sem qualquer compensação. Essa dívida clama aos céus até os dias de hoje.

Terminada a colonização, o povo brasileiro, no dizer do grande historiador mulato Capistrano de Abreu, foi “capado e recapado, sangrado e resangrado”. Essa lógica não foi abolida pois está presente nos 30 milhões de famintos, nos 110 milhões com insuficiência alimentar e com mais da metade de nossa população (54% de ascendência africana) pobre vivendo nas periferias das cidades, nas favelas e em condições desumanas.

Os donos do poder, “a elite do atraso” como a denomina pertinentemente Jessé Souza, sempre controlaram o poder político mesmo nas várias fases da República e nos poucos períodos de democracia representativa. As classes endinheiradas, fizeram entre si a política de conciliação, jamais de reformas e de inclusão. Logicamente se construíram várias constituições, mas quando foi que elas regularam e limitaram a ganância dos poderosos?

O nosso capitalismo é um dos mais selvagens do mundo, a ponto de Noam Chomsky dizer: “O Brasil é uma espécie de caso especial; raramente vi um país onde elementos da elite têm tanto desprezo e ódio pelos pobres e pelo povo trabalhador”. Ele nunca se deixou civilizar. Mal houve luta de classes porque eles com violência (secundada pelo braço militar) a esmagou impiedosamente.

Tivemos e temos democracia, mas sempre foi frágil e foi e é continuamente ameaçada, como se viu em vários golpes, contra Getúlio Vargas, Jango, Dilma Rousseff e no dia 8 de janeiro do corrente ano. Mas ela sempre ressurgiu.

Tudo isso deve ser tomado em consideração para termos um quadro que nos permite entender o recente golpe demente e frustrado. Vale a observação de Veríssimo num twitter: “O antipetismo não é de agora, o antipovo está no DNA da classe dominante. Ela nunca permitiu que alguém vindo do andar de baixo, subisse a outro, ocupando o centro do poder, como ocorreu com Lula/Dilma e novamente com Lula em 2023. Fez-lhe todo tipo de oposição e manobras golpistas, apoiadas pelo braço ideológico da grande imprensa corporativa”.

Há um outro ponto a ser considerado: a cultura do capital exacerbou o individualismo, a busca de bem-estar individual ou corporativo, nunca para todo um povo. Tal ethos impregnou a sociedade, os processos de socialização, as escolas, as mentes e os corações das pessoas menos críticas. Todos, de certa forma, somos reféns da cultura do capital pois nos obriga a consumir bens supérfluos e se implantou no mundo inteiro, gerando a desgraça planetária, jogando grande parte da humanidade na marginalização e pondo em risco a vida sobre o planeta Terra. Ela criou consumidores e não cidadãos.

A ditadura deste individualismo levou a muitos, a milhares a não quererem viver juntos. Preferem suas Alfa Villes e seus bairros restritos a endinheirados e especuladores. Ora, uma sociedade não existe nem se sustenta sem um pacto social. Ele se expressa por certa ordem social, materializada numa Constituição e nas leis que todos se comprometem a aceitar. Mas tanto a Constituição quanto as leis são continuamente violadas, posto que o individualismo solapou o sentido do respeito às leis, às pessoas e à ordem convencionada.

Os que estão por trás da intentona de Brasília, são tais tipos de pessoas que se consideram acima da ordem existente. Há pessoas de todas as classes, mas principalmente, representantes do grande capital. Não esqueçamos do último relatório da revista Forbes que trouxe os dados dos opulentos do Brasil: 315 bilionários, grande parte vivendo do rentismo e não da produção de bens de consumo.

O principal fator que criou as condições para este golpe frustrado, foi a atmosfera criada por Jair Bolsonaro que suscitou a dimensão demente em milhões, tomados por ódio, truculência, discriminações de todo tipo e desprezo covarde de pobres e marginalizados. A eles cabe a responsabilidade principal pelo envenenamento de nossa sociedade com traços de desumanidade, regressão a modelos sociais antiquados e não contemporâneos. Nem a religião escapou desta pestilência, especialmente em grupos de igrejas neopentecostais e também em grupo de católicos conservadores e reacionários.

Graças à rápida determinação dos Ministros do STF e do TSE nomeadamente do ministro Alexandre de Moraes e no caso do golpe a atuação rápida e inteligente do Ministro da Justiça Flávio Dino que indicou ao presidente Lula, face à gravidade da questão, a necessidade de ordenar uma intervenção federal em termos de segurança no Distrito Federal. Assim, de última hora, se conseguiu abortar um golpe. A estupidez dos invasores das três casas do governo e a destruição que lá perpetraram, freou a junta militar que, segundo o plano revelado do golpe, assumiria o poder na forma de uma ditadura com a prisão de todos os ministros, fechamento do Congresso e atos de repressão já conhecidos em nossa história.

Pode a democracia ter seus defeitos e limites, mas é ainda a melhor forma de nos permitir viver juntos, como cidadãos participativos e com garantia de direitos. Sem ela resvalamos fatalmente para a barbárie e a desumanização nas relações pessoais e sociais. Essa democracia tem que ser construída dia a dia, ser cotidiana, aberta a enriquecimentos e a se transformar numa verdadeira cultura permanente.

O sonho murcho na padaria de Bolsonaro

Uma padaria não é mais uma simples padaria cercada de pão doce por todos os lados. Uma padaria agora é uma prova do crime, uma cena inesperada do grande escândalo nacional, e sexta-feira passada, curioso pela própria natureza, fui até aquela de Copacabana onde Bolsonaro tinha tentado esconder sob sigilo de 100 anos uma despesa de R$ 55 mil.

“O sonho do Bolsonaro acabou?”, eu provoquei o funcionário assim que sentei à mesa para fazer os pedidos do lanche.


O Rio tem um roteiro atualizado de pães de fermentação natural, mas de um modo geral as padarias sofreram um processo cafona de gentrificação. Perderam a identidade. Misturaram-se com pizzarias, lanchonetes, supermercados, todas envergonhadas em apresentar ao distinto público o balcão tradicional onde dormitava inesquecível a gloriosa bisnaga fumegante de tantas infâncias.

Você saía da padaria com a bisnaga embaixo do braço, carregadinha de amor e pronta para ser barrada de manteiga Aviação. Já no caminho de casa, no entanto, sem resistir à gula, devorava os dois bicos dela que, salientes, provocavam a libido gustativa para fora do papel do embrulho. Melhor, naquele período, só o primeiro beijo.

Na hora do lanche, essa hora tão feliz, Bolsonaro jamais escalaria a Casa Cavé, há 162 anos na esquina da Uruguaiana com Sete de Setembro, para torrar seus pedidos de padaria inconstitucional, todos fura-bolos e acima do teto de gastos. A Cavé é pura poesia dos confeitos cariocas.

O ex-presidente, fã de frango frito, desprezaria seu cardápio lírico de toucinho do céu, travesseiro de amêndoas, papo de anjo, almofada, alunete, brisa, Dom Rodrigo, Margarida, lamego, pingo de tocha e trouxa d’ovos. Por mais corporativo que lhe fosse o cartão, Bolsonaro não gastaria aqui um níquel dos R$ 361.998,80 que durante os quatro anos de governo despejou na insossa padaria-lanchonete-restaurante de Copacabana.

No lanche de sexta-feira passada, eu e meus dois netos, senhor Eduardo e senhora Vera, gastamos um total de R$ 41,80, saídos em espécie do bolso do colunista. Foram sete itens: um café expresso (R$ 6,90), um pão de queijo (R$ 9,90), um suco de caju (R$ 11,90), um pão na chapa (R$ 4,90), um suco de melancia (R$ 10,90), um ovo mexido (R$ 5,90) e, sim, ele não tinha acabado, o sonho (R$ 7,80).

Ainda não se sabe exatamente o que o ex-presidente consumiu na padaria. Pela quantia espetacular num comércio relativamente barato é provável que tenha experimentado cada produto da casa, e em algum momento passou pelo mesmo tal sonho, murcho e triste, que me chegou à mesa.

O serviço demorou. Foi preciso acionar um segundo garçom (o primeiro estava atarantado com um rádio que trazia por baixo do uniforme e de onde, enquanto ele anotava o pedido, uma voz gritava “padaria! padaria!”, num tom de “socorro! socorro!” que assustava as mesas do salão).

Ao fim, veio um sonho gorduroso, que se caracterizava pela falta absoluta de delicadeza na proposta. A massa do pão e o recheio de creme amarelo uniram-se para dar ao sonho de Bolsonaro a mais radical falta de gosto. Fiquei em duas dentadas protocolares.

Na saída, perguntei ao caixa se tinha visto o ex-presidente por ali. Embora bem-humorado, o rapaz fez mais uma denúncia às muitas que agora se juntam contra o ex-cliente das despesas panificadoramente milionárias:

“Se ele deixasse os 10% dos funcionários a gente tava é bem!”