segunda-feira, 5 de maio de 2025
Mussolini inspira esquerda e direita
Ao final da estupenda trilogia de Antonio Scurati sobre Benito Mussolini, um misto de espanto e encanto fica gravado no leitor. “M — Os últimos dias da Europa” encerra a narrativa da triste epopeia quando flagra o ditador italiano, entre a vaidade e a covardia, transformado em capacho de Adolf Hitler. Armado de retórica trágica, em cada parágrafo, sob a poesia de desabamento, Scurati constrói um personagem sempre fadado ao atoleiro, mesmo se vitorioso, ou em queda no precipício, se em desespero.
Não há escapatória para o Mussolini de Scurati — a conquista também é o passaporte de seu cadafalso. O autoengano surge disfarçado de estratégia política, de esperteza ideológica. Disposto a ser um César romano, será apenas um oportunista seminal e lúgubre da História.
Antes elogiado por Churchill, que o derrotou depois de ele se aliar ao ditador alemão, Mussolini encarna a tragédia política do século passado. Começa socialista, termina nazifascista. De um extremo a outro sem intervalo, onde a incoerência é aparato da amoralidade, quase seu sinônimo. É um jornalista de texto vibrante, polemista incansável. Ao ser execrado pelos companheiros de esquerda, funda seu movimento direitista. Com o ato, procura o reconhecimento intelectual e afetivo capaz de compensar seu constante sentimento de abandono e substitui a baixa estima pela virulenta arrogância e violência anticomunista. Não há ética, é apenas o gesto político de um animal ferido; o poder nada mais é que um bálsamo diante das frustrações.
Encontra nas amantes, mais jovens e mais ricas, o consolo afetivo paradoxalmente não preenchido por suas conquistas políticas, quando é incensado pelas massas a quem oferece um futuro espelhado no passado glorioso do Império Romano (Trump? Bolsonaro?). Morrerá ao lado de uma delas, Clara Petacci. Mas deve a Margherita Sarfatti seu verniz de sofisticação. Bronco, analfabeto cultural, sem modos ou lustro, receberá da rica judia veneziana as instruções para estar na sociedade. Por seu intermédio virá a convivência com a aristocracia, escritores e artistas. Sarfatti teoriza e organiza o Novecento Italiano, com o pintor Mario Simoni e o grande Umberto Boccioni, entre outros. Mussolini aproveita o brilho social e intelectual da amante. Ao contrário de seu futuro aliado, Adolf Hitler, admira a arte moderna e seus recursos como a fotomontagem. É uma paixão de resultados — Sarfatti o ensina a usar os talheres e os copos adequados à mesa.
Também é uma paixão trágica. E oportunista. Até então modelo político para Hitler, que o imita até na formação de milícias para espancar os adversários e, ao final, o inspira na grotesca coreografia de gestos, Mussolini passa a imitar o imitador. Torna-se antissemita e edita leis raciais, para desespero de muitos de seus apoiadores e amigos judeus. Entre eles, Sarfatti, obrigada a abandonar o leito do ditador e buscar refúgio na América do Sul. Não sem antes deixar sua filha Fiammetta como refém na Itália; era uma garantia de que sua mãe (judia) não escandiria a relação com o ditador (agora racista). Safartti só voltará do exílio no final da década de 1940, depois de Hitler meter uma bala na cabeça e Mussolini ser morto e pendurado de ponta-cabeça em praça pública ao lado de outros fascistas (Petacci inclusive).
O espanto deixado por Scurati em seus leitores é a proximidade das ideias e práticas de Mussolini com o universo político contemporâneo. Entre muitos exemplos, os argumentos das Leis Raciais, de 1938. À sombra do Ministério da Cultura Popular, a seu pedido, um grupo de intelectuais fascistas lança o documento “O fascismo e o problema da raça”. Estabelecem: “As raças humanas existem. A existência das raças humanas já não é uma abstração do nosso espírito, mas corresponde a uma realidade fenomênica, material, perceptível aos nossos sentidos”. E mais: “O conceito de raça é um conceito puramente biológico”. Chocante atualidade.
Scurati recorre a documentos, diários dos personagens e fonogramas na construção da narrativa. Depois de se unir ao nazismo, como fantoche e coadjuvante, com a vaidade ultrajada, sem munição para entrar na guerra, Mussolini busca influenciar o ditador alemão. E grafa mensagem: “O dia que tivermos demolido o bolchevismo (…) será então a vez das grandes democracias”. Desde então, o socialismo foi enterrado. Apostas? “O povo é uma puta e se deita com o macho que vence”, vaticinou o italiano antes de ser morto e apedrejado pela turba que o amou.
Não há escapatória para o Mussolini de Scurati — a conquista também é o passaporte de seu cadafalso. O autoengano surge disfarçado de estratégia política, de esperteza ideológica. Disposto a ser um César romano, será apenas um oportunista seminal e lúgubre da História.
Antes elogiado por Churchill, que o derrotou depois de ele se aliar ao ditador alemão, Mussolini encarna a tragédia política do século passado. Começa socialista, termina nazifascista. De um extremo a outro sem intervalo, onde a incoerência é aparato da amoralidade, quase seu sinônimo. É um jornalista de texto vibrante, polemista incansável. Ao ser execrado pelos companheiros de esquerda, funda seu movimento direitista. Com o ato, procura o reconhecimento intelectual e afetivo capaz de compensar seu constante sentimento de abandono e substitui a baixa estima pela virulenta arrogância e violência anticomunista. Não há ética, é apenas o gesto político de um animal ferido; o poder nada mais é que um bálsamo diante das frustrações.
Encontra nas amantes, mais jovens e mais ricas, o consolo afetivo paradoxalmente não preenchido por suas conquistas políticas, quando é incensado pelas massas a quem oferece um futuro espelhado no passado glorioso do Império Romano (Trump? Bolsonaro?). Morrerá ao lado de uma delas, Clara Petacci. Mas deve a Margherita Sarfatti seu verniz de sofisticação. Bronco, analfabeto cultural, sem modos ou lustro, receberá da rica judia veneziana as instruções para estar na sociedade. Por seu intermédio virá a convivência com a aristocracia, escritores e artistas. Sarfatti teoriza e organiza o Novecento Italiano, com o pintor Mario Simoni e o grande Umberto Boccioni, entre outros. Mussolini aproveita o brilho social e intelectual da amante. Ao contrário de seu futuro aliado, Adolf Hitler, admira a arte moderna e seus recursos como a fotomontagem. É uma paixão de resultados — Sarfatti o ensina a usar os talheres e os copos adequados à mesa.
Também é uma paixão trágica. E oportunista. Até então modelo político para Hitler, que o imita até na formação de milícias para espancar os adversários e, ao final, o inspira na grotesca coreografia de gestos, Mussolini passa a imitar o imitador. Torna-se antissemita e edita leis raciais, para desespero de muitos de seus apoiadores e amigos judeus. Entre eles, Sarfatti, obrigada a abandonar o leito do ditador e buscar refúgio na América do Sul. Não sem antes deixar sua filha Fiammetta como refém na Itália; era uma garantia de que sua mãe (judia) não escandiria a relação com o ditador (agora racista). Safartti só voltará do exílio no final da década de 1940, depois de Hitler meter uma bala na cabeça e Mussolini ser morto e pendurado de ponta-cabeça em praça pública ao lado de outros fascistas (Petacci inclusive).
O espanto deixado por Scurati em seus leitores é a proximidade das ideias e práticas de Mussolini com o universo político contemporâneo. Entre muitos exemplos, os argumentos das Leis Raciais, de 1938. À sombra do Ministério da Cultura Popular, a seu pedido, um grupo de intelectuais fascistas lança o documento “O fascismo e o problema da raça”. Estabelecem: “As raças humanas existem. A existência das raças humanas já não é uma abstração do nosso espírito, mas corresponde a uma realidade fenomênica, material, perceptível aos nossos sentidos”. E mais: “O conceito de raça é um conceito puramente biológico”. Chocante atualidade.
Scurati recorre a documentos, diários dos personagens e fonogramas na construção da narrativa. Depois de se unir ao nazismo, como fantoche e coadjuvante, com a vaidade ultrajada, sem munição para entrar na guerra, Mussolini busca influenciar o ditador alemão. E grafa mensagem: “O dia que tivermos demolido o bolchevismo (…) será então a vez das grandes democracias”. Desde então, o socialismo foi enterrado. Apostas? “O povo é uma puta e se deita com o macho que vence”, vaticinou o italiano antes de ser morto e apedrejado pela turba que o amou.
Uma anatomia de genocídio e silêncio global que trai a humanidade
Tudo se sabe, tudo se comprova. Amanhã, ninguém ousará dizer: "Eu não sabia". Desde outubro de 2023, Gaza está desaparecendo diante de nossos olhos, vítima de um crime que as mais altas autoridades morais, jurídicas e intelectuais ousaram nomear inequivocamente: genocídio.
Será que as nações ocidentais — principalmente os Estados Unidos — ainda terão a audácia de denunciar violações de direitos humanos em outros lugares, pontuando sua hipocrisia com os intermináveis chavões do Departamento de Estado? Seu descrédito está selado; sua palavra está desonrada.
E o que dizer dos regimes árabes cúmplices — Egito, Jordânia, Arábia Saudita, Emirados — especialmente o Egito e os Emirados, os verdadeiros arquitetos do estrangulamento de Gaza? O que dirão perante o tribunal da história? Esses regimes da vergonha carregarão para sempre a marca da infâmia. Pensaram em trocar sua honra pela proteção dos poderosos; em vez disso, ganharam apenas o desprezo de seus povos e as maldições de gerações ainda por nascer.
A terrível palavra genocídio não é pronunciada levianamente, nem movida pela emoção; ela foi cuidadosamente ponderada por aqueles cuja vocação é o rigor. Omer Bartov , eminente historiador do Holocausto e ex-soldado israelense, descreve Gaza como o teatro do extermínio deliberado. Raz Segal, especialista israelense em genocídios modernos, a identifica como um " caso clássico " de apagamento étnico em plena luz do dia. Amos Goldberg , professor da Universidade Hebraica de Jerusalém, declara sem rodeios: "Isso é genocídio". Gregory Stanton, fundador do Genocide Watch, denuncia o "genocídio à vista de todos". Até mesmo instituições internacionais, tipicamente tão relutantes em nomear o irreparável, confirmaram esse diagnóstico condenatório.
Em 26 de janeiro de 2024, o Tribunal Internacional de Justiça reconheceu solenemente a plausibilidade das acusações de genocídio contra Israel, exigindo medidas imediatas para impedir novos danos irreparáveis. O Tribunal Penal Internacional, ultrapassando um limiar histórico, emitiu mandados de prisão para os principais líderes israelenses por crimes de guerra e crimes contra a humanidade. A Anistia Internacional, a Human Rights Watch e o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos — todos agora falam abertamente em extermínio, genocídio e destruição sistemática de um povo.
Israel impôs um bloqueio total a Gaza, cortando a alimentação, a eletricidade e a água potável, tornando impossível a sobrevivência física. A última usina de dessalinização cessou a operação, condenando a população à sede e à doença. Mais da metade do território está militarmente ocupada.
Dois terços dos habitantes de Gaza enfrentam ordens de deslocamento forçado, forçados a se deslocar em direção a uma fronteira fechada em um êxodo orquestrado. O Ministro da Defesa de Israel admite abertamente que Israel usará todas as formas de pressão, militar e civil, para impor esse deslocamento, em consonância com as ambições do plano de Trump.
O número de vítimas humanas é sem precedentes. Entre 7 e 31 de outubro de 2023, quase 1.900 crianças foram mortas, segundo a Airwars — o equivalente proporcional a trezentas vezes a taxa de mortalidade infantil observada na Ucrânia. No pior ano da Síria, foram necessários doze meses para atingir esse número. Em Gaza, três semanas foram suficientes. Trabalhadores humanitários assassinados, médicos alvejados, jornalistas executados, hospitais destruídos: Gaza se tornou o epicentro de uma tragédia sem precedentes na história contemporânea. Até mesmo a tonelagem de bombas lançadas supera a de Dresden em 1945.
A escala da destruição desafia qualquer justificativa militar; ela personifica o instinto genocida em sua forma mais pura. Até Moshe Ya'alon , ex-ministro da Defesa israelense, acusou abertamente Israel de cometer crimes de guerra e limpeza étnica em Gaza — uma acusação extraordinária vinda de dentro do establishment de segurança israelense em meio ao conflito em curso.
Essa avaliação terrível é amplamente compartilhada. O Projeto de Direitos Humanos Lowenstein da Faculdade de Direito de Yale afirma inequivocamente: "Israel cometeu atos genocidas, nomeadamente matando, ferindo gravemente e impondo condições de vida calculadas e destinadas a provocar a destruição física dos palestinos em Gaza."
O Instituto Lemkin para a Prevenção do Genocídio acrescenta sem rodeios: "Israel está cometendo genocídio, e os EUA são cúmplices". Michael Fakhri, Relator Especial da ONU para o Direito à Alimentação, denunciou as táticas de fome de Israel como genocidas. Tlaleng Mofokeng, Relator Especial da ONU para o Direito à Saúde, concorda, condenando a imposição deliberada de fome, desnutrição prolongada, desidratação e genocídio.
O método segue uma lógica glacial: aterrorizar, matar de fome, deslocar e, então, sem ter para onde fugir, tornar Gaza inabitável, aniquilando sua infraestrutura vital. Transformar esta terra em um deserto. O próprio Benjamin Netanyahu admitiu: o objetivo é " reduzir a população ".
Contra essa empreitada de apagamento, a memória universal se ergue. Imre Kertész nos lembrou que algumas tragédias excedem a linguagem comum; Gaza agora impõe tal provação ao discurso humano. Charlotte Delbo ensinou que a agonia dos vivos — fome, sede, extinguindo corpos e espíritos — pode ser mais cruel que a própria morte.
Primo Levi levantou uma questão devastadora: ainda é humano aquele privado de pão, água e dignidade? Em Gaza, não são apenas algumas almas, mas dois milhões de seres humanos que imploram diariamente pelo direito básico de existir. Simone Veil, sobrevivente do extermínio, sabia que o crime supremo é relegar os sobreviventes ao deserto da indiferença.
Hoje, Gaza corre o risco de morrer — não apenas sob bombas, mas também enterrada no esquecimento.
Depois de Auschwitz, escreveu Adorno, a poesia parecia bárbara. Depois de Gaza, até a fala vacila. Como podemos falar de direitos humanos sem profanar o que resta da dignidade humana? Como erguer tratados, pronunciamentos, quando as cinzas de um povo sufocam nossas vozes? Cada discurso oco, silêncio educado e indignação fingida se tornam, depois de Gaza, mais uma cumplicidade, mais uma abdicação assinada com sangue. Não basta mais lamentar: é preciso condenar. Não basta mais comemorar: é preciso se levantar.
Há crimes contra o corpo. Há crimes contra a alma. Há crimes contra a memória.
Permanecer em silêncio, virar as costas, recusar-se a nomear — é assassinar duas vezes.
Nosso dever não é lamentar, mas declarar; não desviar o olhar, mas nomear com clareza; não sobreviver na vergonha, mas testemunhar com dignidade. Se Gaza for apagada pela indiferença, então "Nunca Mais" se tornará apenas um epitáfio mentiroso na vala comum de nossas traições.
Enquanto isso, os propagandistas sionistas zombam, alheios ao seu próprio naufrágio moral. Encurralados pelos fatos, oprimidos por todos os lados, nada lhes resta nas redes sociais além de emojis risonhos — caretas pálidas de uma causa decadente. Desprovidos de linguagem e coragem, recrutam soldados rasos anônimos da Nigéria e da Índia, cuja mediocridade reflete a decadência de suas mentiras.
Eles riem, mas é o grotesco estertor dos derrotados, o último suspiro de uma fraude completamente exposta.
Será que as nações ocidentais — principalmente os Estados Unidos — ainda terão a audácia de denunciar violações de direitos humanos em outros lugares, pontuando sua hipocrisia com os intermináveis chavões do Departamento de Estado? Seu descrédito está selado; sua palavra está desonrada.
E o que dizer dos regimes árabes cúmplices — Egito, Jordânia, Arábia Saudita, Emirados — especialmente o Egito e os Emirados, os verdadeiros arquitetos do estrangulamento de Gaza? O que dirão perante o tribunal da história? Esses regimes da vergonha carregarão para sempre a marca da infâmia. Pensaram em trocar sua honra pela proteção dos poderosos; em vez disso, ganharam apenas o desprezo de seus povos e as maldições de gerações ainda por nascer.
A terrível palavra genocídio não é pronunciada levianamente, nem movida pela emoção; ela foi cuidadosamente ponderada por aqueles cuja vocação é o rigor. Omer Bartov , eminente historiador do Holocausto e ex-soldado israelense, descreve Gaza como o teatro do extermínio deliberado. Raz Segal, especialista israelense em genocídios modernos, a identifica como um " caso clássico " de apagamento étnico em plena luz do dia. Amos Goldberg , professor da Universidade Hebraica de Jerusalém, declara sem rodeios: "Isso é genocídio". Gregory Stanton, fundador do Genocide Watch, denuncia o "genocídio à vista de todos". Até mesmo instituições internacionais, tipicamente tão relutantes em nomear o irreparável, confirmaram esse diagnóstico condenatório.
Em 26 de janeiro de 2024, o Tribunal Internacional de Justiça reconheceu solenemente a plausibilidade das acusações de genocídio contra Israel, exigindo medidas imediatas para impedir novos danos irreparáveis. O Tribunal Penal Internacional, ultrapassando um limiar histórico, emitiu mandados de prisão para os principais líderes israelenses por crimes de guerra e crimes contra a humanidade. A Anistia Internacional, a Human Rights Watch e o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos — todos agora falam abertamente em extermínio, genocídio e destruição sistemática de um povo.
Israel impôs um bloqueio total a Gaza, cortando a alimentação, a eletricidade e a água potável, tornando impossível a sobrevivência física. A última usina de dessalinização cessou a operação, condenando a população à sede e à doença. Mais da metade do território está militarmente ocupada.
Dois terços dos habitantes de Gaza enfrentam ordens de deslocamento forçado, forçados a se deslocar em direção a uma fronteira fechada em um êxodo orquestrado. O Ministro da Defesa de Israel admite abertamente que Israel usará todas as formas de pressão, militar e civil, para impor esse deslocamento, em consonância com as ambições do plano de Trump.
O número de vítimas humanas é sem precedentes. Entre 7 e 31 de outubro de 2023, quase 1.900 crianças foram mortas, segundo a Airwars — o equivalente proporcional a trezentas vezes a taxa de mortalidade infantil observada na Ucrânia. No pior ano da Síria, foram necessários doze meses para atingir esse número. Em Gaza, três semanas foram suficientes. Trabalhadores humanitários assassinados, médicos alvejados, jornalistas executados, hospitais destruídos: Gaza se tornou o epicentro de uma tragédia sem precedentes na história contemporânea. Até mesmo a tonelagem de bombas lançadas supera a de Dresden em 1945.
A escala da destruição desafia qualquer justificativa militar; ela personifica o instinto genocida em sua forma mais pura. Até Moshe Ya'alon , ex-ministro da Defesa israelense, acusou abertamente Israel de cometer crimes de guerra e limpeza étnica em Gaza — uma acusação extraordinária vinda de dentro do establishment de segurança israelense em meio ao conflito em curso.
Essa avaliação terrível é amplamente compartilhada. O Projeto de Direitos Humanos Lowenstein da Faculdade de Direito de Yale afirma inequivocamente: "Israel cometeu atos genocidas, nomeadamente matando, ferindo gravemente e impondo condições de vida calculadas e destinadas a provocar a destruição física dos palestinos em Gaza."
O Instituto Lemkin para a Prevenção do Genocídio acrescenta sem rodeios: "Israel está cometendo genocídio, e os EUA são cúmplices". Michael Fakhri, Relator Especial da ONU para o Direito à Alimentação, denunciou as táticas de fome de Israel como genocidas. Tlaleng Mofokeng, Relator Especial da ONU para o Direito à Saúde, concorda, condenando a imposição deliberada de fome, desnutrição prolongada, desidratação e genocídio.
O método segue uma lógica glacial: aterrorizar, matar de fome, deslocar e, então, sem ter para onde fugir, tornar Gaza inabitável, aniquilando sua infraestrutura vital. Transformar esta terra em um deserto. O próprio Benjamin Netanyahu admitiu: o objetivo é " reduzir a população ".
Contra essa empreitada de apagamento, a memória universal se ergue. Imre Kertész nos lembrou que algumas tragédias excedem a linguagem comum; Gaza agora impõe tal provação ao discurso humano. Charlotte Delbo ensinou que a agonia dos vivos — fome, sede, extinguindo corpos e espíritos — pode ser mais cruel que a própria morte.
Primo Levi levantou uma questão devastadora: ainda é humano aquele privado de pão, água e dignidade? Em Gaza, não são apenas algumas almas, mas dois milhões de seres humanos que imploram diariamente pelo direito básico de existir. Simone Veil, sobrevivente do extermínio, sabia que o crime supremo é relegar os sobreviventes ao deserto da indiferença.
Hoje, Gaza corre o risco de morrer — não apenas sob bombas, mas também enterrada no esquecimento.
Depois de Auschwitz, escreveu Adorno, a poesia parecia bárbara. Depois de Gaza, até a fala vacila. Como podemos falar de direitos humanos sem profanar o que resta da dignidade humana? Como erguer tratados, pronunciamentos, quando as cinzas de um povo sufocam nossas vozes? Cada discurso oco, silêncio educado e indignação fingida se tornam, depois de Gaza, mais uma cumplicidade, mais uma abdicação assinada com sangue. Não basta mais lamentar: é preciso condenar. Não basta mais comemorar: é preciso se levantar.
Há crimes contra o corpo. Há crimes contra a alma. Há crimes contra a memória.
Permanecer em silêncio, virar as costas, recusar-se a nomear — é assassinar duas vezes.
Nosso dever não é lamentar, mas declarar; não desviar o olhar, mas nomear com clareza; não sobreviver na vergonha, mas testemunhar com dignidade. Se Gaza for apagada pela indiferença, então "Nunca Mais" se tornará apenas um epitáfio mentiroso na vala comum de nossas traições.
Enquanto isso, os propagandistas sionistas zombam, alheios ao seu próprio naufrágio moral. Encurralados pelos fatos, oprimidos por todos os lados, nada lhes resta nas redes sociais além de emojis risonhos — caretas pálidas de uma causa decadente. Desprovidos de linguagem e coragem, recrutam soldados rasos anônimos da Nigéria e da Índia, cuja mediocridade reflete a decadência de suas mentiras.
Eles riem, mas é o grotesco estertor dos derrotados, o último suspiro de uma fraude completamente exposta.
Trump 2.0: ídolo ou espantalho?
Até recentemente, muitos analistas previam que a volta de Donald Trump ao poder facilitaria a ascensão de líderes semelhantes mundo afora – políticos que buscam se promover com base em discursos antissistema, “anti-globalistas” e com ataques às instituições democráticas. Não faltam precedentes: desde 2016, Trump influenciou líderes como Jair Bolsonaro no Brasil, Viktor Orbán na Hungria e Matteo Salvini na Itália. No entanto, a realidade do segundo mandato de Trump está mostrando nuances inesperadas – e até contraditórias.
Dois dos aliados históricos mais próximos dos EUA – Canadá e Austrália – responderam de forma a desafiar essa narrativa dominante. No Canadá, a postura hostil de Trump, com tarifas unilaterais e a insinuações de anexação, provocou uma reação nacionalista que enfraqueceu a oposição conservadora, vista como alinhada demais ao trumpismo. O resultado foi uma virada eleitoral histórica:
Mark Carney, um tecnocrata moderado e ex-presidente do Banco da Inglaterra, foi eleito primeiro-ministro com um mandato robusto em 28 de abril. Sua imagem de estabilidade e preparo contrastou com o radicalismo associado à direita pró-Trump, revertendo uma tendência que parecia consolidada meses antes da eleição.
A Austrália viveu um fenômeno semelhante. O primeiro-ministro Anthony Albanese, de centro-esquerda, surfou uma onda de sentimento antiTrump para triunfar nas eleições neste 3 de maio, poucos meses depois de as pesquisas indicarem que ele enfrentaria uma derrota humilhante. O líder conservador Peter Dutton, que apostava em uma retórica nacionalista e em ataques culturais semelhantes aos de Trump, sofreu o mesmo destino que o líder conservador canadense – uma consequência direta do efeito Trump.
O cenário britânico, porém, revela que a influência de Trump se manifesta de formas diferentes. Nigel Farage, veterano do Brexit e líder do Reform UK, está importando abertamente o estilo MAGA: ataques contra as elites e o “estado profundo”, discursos inflamados sobre imigração e promessas de “recuperar o país”. Seu partido avançou de forma contundente nas recentes eleições locais em 1º de maio. Tudo indica que não se trata apenas de protesto momentâneo: Farage está construindo, passo a passo, uma base nacional que desafia o duopólio partidário britânico.
Seu êxito revela que o trumpismo, longe de ser universalmente tóxico, encontra terreno fértil em sociedades que atravessam desafios econômicos, desilusão política e insegurança cultural. Se em alguns países Trump serve de espantalho, capaz de unir eleitores moderados contra o radicalismo; em outros, ele segue como referência para lideranças populistas.
A volta de Trump não significa, portanto, uma nova onda global de adesão automática ao trumpismo. Em muitos países, o republicano pode acelerar a rejeição a seu estilo de governar e até consolidar lideranças moderadas. Mas em outros ele continua sendo um símbolo poderoso para populistas “anti-globalistas” com tendências antidemocráticas que se apresentam como salvadores em tempos de incerteza.
Ainda é cedo para saber se o impacto de Trump no Brasil será semelhante ao observado no Canadá e na Austrália ou similar ao modelo britânico. No caso brasileiro, os sinais são ambíguos. Por um lado, Trump continua sendo uma figura de enorme visibilidade no debate público, e sua reemergência vem encorajando atores como Jair Bolsonaro e seus aliados. Desde 2018, o Brasil tem espelhado diversos aspectos da política norteamericana: da retórica antissistema à recusa em aceitar resultados eleitorais e à invasão de prédios públicos por apoiadores radicais. Eduardo Bolsonaro mudou-se para os EUA recentemente para reforçar vínculos com grupos trumpistas no país. Caso Trump ou figuras de alto perfil como Elon Musk tentem influenciar o processo eleitoral brasileiro no ano que vem, como o dono da Tesla fez recentemente na Alemanha, o impacto político pode ser profundo, seja fortalecendo, seja enfraquecendo seu candidato preferido.
A pergunta central para os próximos anos será: em quais países Trump funcionará como exemplo do que não se fazer e em quais continuará sendo visto como receita de sucesso político?
Dois dos aliados históricos mais próximos dos EUA – Canadá e Austrália – responderam de forma a desafiar essa narrativa dominante. No Canadá, a postura hostil de Trump, com tarifas unilaterais e a insinuações de anexação, provocou uma reação nacionalista que enfraqueceu a oposição conservadora, vista como alinhada demais ao trumpismo. O resultado foi uma virada eleitoral histórica:
Mark Carney, um tecnocrata moderado e ex-presidente do Banco da Inglaterra, foi eleito primeiro-ministro com um mandato robusto em 28 de abril. Sua imagem de estabilidade e preparo contrastou com o radicalismo associado à direita pró-Trump, revertendo uma tendência que parecia consolidada meses antes da eleição.
A Austrália viveu um fenômeno semelhante. O primeiro-ministro Anthony Albanese, de centro-esquerda, surfou uma onda de sentimento antiTrump para triunfar nas eleições neste 3 de maio, poucos meses depois de as pesquisas indicarem que ele enfrentaria uma derrota humilhante. O líder conservador Peter Dutton, que apostava em uma retórica nacionalista e em ataques culturais semelhantes aos de Trump, sofreu o mesmo destino que o líder conservador canadense – uma consequência direta do efeito Trump.
O cenário britânico, porém, revela que a influência de Trump se manifesta de formas diferentes. Nigel Farage, veterano do Brexit e líder do Reform UK, está importando abertamente o estilo MAGA: ataques contra as elites e o “estado profundo”, discursos inflamados sobre imigração e promessas de “recuperar o país”. Seu partido avançou de forma contundente nas recentes eleições locais em 1º de maio. Tudo indica que não se trata apenas de protesto momentâneo: Farage está construindo, passo a passo, uma base nacional que desafia o duopólio partidário britânico.
Seu êxito revela que o trumpismo, longe de ser universalmente tóxico, encontra terreno fértil em sociedades que atravessam desafios econômicos, desilusão política e insegurança cultural. Se em alguns países Trump serve de espantalho, capaz de unir eleitores moderados contra o radicalismo; em outros, ele segue como referência para lideranças populistas.
A volta de Trump não significa, portanto, uma nova onda global de adesão automática ao trumpismo. Em muitos países, o republicano pode acelerar a rejeição a seu estilo de governar e até consolidar lideranças moderadas. Mas em outros ele continua sendo um símbolo poderoso para populistas “anti-globalistas” com tendências antidemocráticas que se apresentam como salvadores em tempos de incerteza.
Ainda é cedo para saber se o impacto de Trump no Brasil será semelhante ao observado no Canadá e na Austrália ou similar ao modelo britânico. No caso brasileiro, os sinais são ambíguos. Por um lado, Trump continua sendo uma figura de enorme visibilidade no debate público, e sua reemergência vem encorajando atores como Jair Bolsonaro e seus aliados. Desde 2018, o Brasil tem espelhado diversos aspectos da política norteamericana: da retórica antissistema à recusa em aceitar resultados eleitorais e à invasão de prédios públicos por apoiadores radicais. Eduardo Bolsonaro mudou-se para os EUA recentemente para reforçar vínculos com grupos trumpistas no país. Caso Trump ou figuras de alto perfil como Elon Musk tentem influenciar o processo eleitoral brasileiro no ano que vem, como o dono da Tesla fez recentemente na Alemanha, o impacto político pode ser profundo, seja fortalecendo, seja enfraquecendo seu candidato preferido.
A pergunta central para os próximos anos será: em quais países Trump funcionará como exemplo do que não se fazer e em quais continuará sendo visto como receita de sucesso político?
Raça é uma construção social?
Quando os cientistas revelaram o primeiro rascunho do Projeto Genoma Humano, há 25 anos, ele parecia dar a palavra final em relação a alguns mitos ultrapassados sobre raça.
O projeto forneceu evidências definitivas de que os grupos raciais não têm base biológica. Na verdade, há mais variação genética dentro dos grupos raciais do que entre eles. A raça, como a iniciativa mostrou, é uma construção social.
Apesar desta descoberta fundamental, que só foi reforçada com o avanço da pesquisa sobre genomas humanos, a raça e a etnia ainda são usadas com frequência para categorizar as populações humanas como grupos biológicos distintos.
São visões que podem ser encontradas circulando na pseudociência das redes sociais, mas também ainda se infiltram na pesquisa científica e nos sistemas de saúde.
É ainda mais preocupante quando este pensamento chega aos corredores do poder.
O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, e seu governo não escondem sua rejeição a vários aspectos da visão científica do mundo.
Desde que retornou à Casa Branca, ele fez cortes drásticos no financiamento científico para pesquisas biomédicas e climáticas, mas em uma ordem executiva recente, Trump mirou no que a maioria dos cientistas agora considera como uma realidade biológica.
Intitulado "Restaurando a verdade e a sanidade na história americana", o decreto presidencial, assinado por Trump, teve como alvo uma exposição chamada A forma do poder: histórias de raça e escultura americana no Museu de Arte Americana do Instituto Smithsonian.
A ordem executiva faz parte de uma tentativa mais ampla de moldar a cultura americana, eliminando "ideologias impróprias, divisivas ou antiamericanas" dos museus do instituto.
Ela afirma: "Os museus da capital da nossa nação devem ser lugares onde as pessoas vão para aprender — não para serem submetidas a doutrinação ideológica ou narrativas divisivas que distorcem nossa história compartilhada."
A exposição em si é criticada no texto por promover a ideia de que "a raça não é uma realidade biológica, mas uma construção social, afirmando que 'a raça é uma invenção humana'".
A ordem executiva apresenta a exposição como um exemplo de uma mudança "prejudicial e opressiva" na narrativa que retrata os valores americanos.
Este é o ponto em que pessoas como eu, um geneticista especializado na história da ciência racial, ficam um pouco irritadas.
A questão aqui é que a frase citada pelo Instituto Smithsonian está 100% correta.
Isso não é controverso nem na ciência nem na história.
A variação humana é, obviamente, bastante real. As pessoas são diferentes, e podemos ver essas diferenças na pigmentação da pele, na cor e na textura do cabelo e em outras características físicas.
Essas diferenças se agrupam em locais ao redor do mundo: pessoas da mesma região, em média, são mais parecidas entre si do que com pessoas de outras áreas — até aí, tudo óbvio.
No século 18, estas características foram os principais fatores determinantes de uma nova forma de categorizar os seres humanos em termos supostamente científicos.
O botânico sueco Karl Linnaeus é considerado legitimamente como o pai da biologia moderna, uma vez nos forneceu o sistema de classificação que usamos até hoje: gênero e espécie.
Todo ser vivo é nomeado de acordo com este sistema — por exemplo, a bactéria Escherichia coli, o leão, Panthera leo, ou o Gorilla gorilla, que provavelmente dispensa apresentações. Nós somos Homo sapiens — pessoas sábias.
Mas em sua obra fundamental, intitulada Systemae Naturae, Linnaeus introduziu outro nível de classificação para nós, designado principalmente pela mais visível das características humanas: a pigmentação.
Linnaeus estabeleceu quatro tipos de seres humanos, agrupados por massas terrestres continentais: Asiaticus — pessoas com "pele amarela" e cabelo liso preto; Americanus — indígenas americanos, com "pele vermelha", e também cabelo liso preto; Africanus — pessoas de "pele preta" e cabelo crespo; e Europaeus — de "pele branca" com olhos azuis.
Estas designações são claramente absurdas — nenhuma das cores é precisa, mesmo se você adotasse a visão obviamente incorreta de que milhões de pessoas compartilham os mesmos tons de pele, inclusive dentro destas categorias.
Mas as raízes das designações raciais que usamos ainda hoje são visíveis nesses rótulos.
Alguns destes termos deixaram de ser aceitos socialmente, e são considerados racistas. Mas ainda usamos "negro" e "branco" para descrever milhões de pessoas, nenhuma das quais realmente tem pele negra ou branca.
Mesmo que esse esquema de cores fosse verdadeiro, as descrições originais de Linnaeus apenas começaram com características físicas.
O que ele incluiu em edições posteriores do Systemae Naturae, que se tornou a base do racismo científico, foram retratos de comportamentos.
Os Asiaticus foram descritos como "arrogantes, gananciosos e regidos por opiniões", enquanto os Americanus foram rotulados como "teimosos, fervorosos e regidos pelos costumes".
As mulheres Africanus foram descritas como "sem vergonha", enquanto ambos os sexos foram considerados "astutos, preguiçosos e regidos pelo capricho".
Ele descreveu os Europaeus como "gentis, perspicazes, inventivos e regidos por leis".
Por qualquer definição e em qualquer época, estas afirmações são racistas e totalmente incorretas.
É claro que, ao examinar a história, devemos ter cuidado ao julgar as pessoas do passado com base em nossos próprios padrões.
Mas, como texto fundamental da biologia moderna, a introdução de um sistema de classificação para os seres humanos que é absurdo, racista e, acima de tudo, hierárquico, deixaria uma marca indelével nos séculos seguintes.
Nos 200 anos seguintes, muitos homens buscaram refinar essas categorias com novas métricas, incluindo interpretações pseudocientíficas da craniometria, ou medidas do crânio.
Eles nunca chegaram a uma resposta definitiva sobre quantas raças existem — nenhuma das características que estavam sendo usadas é imutável nem exclusiva das pessoas para as quais elas eram supostamente essenciais.
Chamamos esta ideologia de "essencialismo racial". Mas todos os vários esquemas colocavam os europeus brancos como superiores a todos os outros.
Foi o biólogo Charles Darwin quem primeiro começou a desconstruir essas ideias, reconhecendo em seu livro de 1871, A Origem do Homem, que havia muito mais continuidade nas características entre pessoas que haviam sido designadas como raças distintas.
No início do século 20, a biologia molecular entrou em cena, e a era da genética desmantelou o conceito biológico de raça.
Quando começamos a analisar como os genes são compartilhados em famílias e populações, vimos que as semelhanças de fato se aglomeram em grupos, mas esses agrupamentos não se alinham com as tentativas de longa data de classificar as raças. A verdadeira métrica da diferença humana é a nível genético.
No século 20, quando começamos a desvendar nossos genomas, e a observar como as pessoas são semelhantes e diferentes em relação ao DNA, vimos que os termos em uso há vários séculos tinham pouca relação significativa com a genética subjacente.
Embora apenas uma pequena porcentagem do nosso DNA seja diferente entre os indivíduos, o genoma é tão grande e complexo que há uma grande diversidade.
Os geneticistas ainda estão trabalhando para desvendar como isso altera a saúde das pessoas, por exemplo.
Mas essas diferenças genéticas não se definem de acordo com o que chamamos de raça. Elas seguem linhagens ancestrais, podem diferir de acordo com a localização geográfica e podem ser rastreadas por meio de padrões históricos de migração.
O que sabemos agora é que há mais diversidade genética em pessoas de ascendência africana recente do que no resto do mundo junto.
Pegue duas pessoas, por exemplo, da Etiópia e da Namíbia, e elas serão mais diferentes entre si a nível genético do que uma delas é em relação a um europeu branco, ou até mesmo um japonês, um inuíte ou um indiano.
Isso inclui os genes que estão envolvidos na pigmentação.
No entanto, por razões históricas, continuamos a nos referir tanto aos etíopes quanto aos namíbios sob a definição de raça "negra".
Vejamos o exemplo dos afro-americanos, pessoas que descendem em grande parte de africanos escravizados levados para o Novo Mundo.
O sequenciamento dos genomas dos negros americanos revela ecos da história da escravidão transatlântica.
Eles não só misturaram a ascendência genética de alguns países da África Ocidental de onde seus ancestrais foram retirados, mas também quantidades significativas de DNA de europeus brancos.
Isso reflete o fato de que os proprietários de pessoas escravizadas mantinham relações sexuais — muitas das quais não eram consensuais — com escravizados.
Portanto, a simples categorização dos descendentes dos escravizados como "negros" também não faz sentido do ponto de vista biológico.
Eles são geneticamente diversos por si só, e diferentes dos ancestrais africanos dos quais descendem. Colocá-los juntos não faz sentido do ponto de vista científico.
Portanto, é por consenso, uso e história que continuamos a usar o termo "negro". Isso é o que queremos dizer com uma construção social.
O conceito de raça tem pouca utilidade como taxonomia biológica. Mas é extremamente importante do ponto de vista social e cultural.
As construções sociais são a forma como o mundo funciona: dinheiro e tempo também são construídos socialmente.
O valor de uma libra ou dólar é aplicado em relação a bens e serviços. O tempo passa de forma infalível, mas horas e minutos são unidades totalmente arbitrárias.
Portanto, embora a raça não seja biologicamente significativa, ela tem consequências biologicamente significativas.
O impacto da maioria das doenças está relacionado à pobreza. Como as pessoas com ascendência de minorias étnicas tendem a apresentar níveis mais baixos de status socioeconômico, as doenças tendem a afetá-las de forma mais grave.
Isso é verdade em todas os aspectos, mas ficou evidente logo no início da pandemia de covid-19. Negros, sul-asiáticos e, nos Estados Unidos, hispânicos foram desproporcionalmente infectados e morreram em decorrência da doença.
A imprensa imediatamente começou a procurar um motivo que materializasse a versão biológica da raça, às vezes com foco no metabolismo da vitamina D, que está ligado à produção de melanina e tem efeitos sobre infecções virais.
Alguns estudos mostraram que níveis mais baixos de vitamina D estavam de fato associados à suscetibilidade à infecção por covid-19 entre os negros. Mas isso é uma correlação, não uma causa.
Por trás de qualquer pequena diferença biológica, estão causas muito mais fortes: enquanto muitos de nós estávamos confinados em casa, os trabalhadores da linha de frente do NHS (sistema público de saúde britânico), as pessoas que limpam nosso lixo e dirigem nossos ônibus tinham maior probabilidade de pertencer a minorias étnicas.
Elas simplesmente tinham um risco maior de serem expostas e, portanto, infectadas pelo vírus. Combine isso com o fato de que os grupos minoritários têm maior probabilidade de viver em moradias urbanas densas e multigeracionais, e a suposta suscetibilidade biológica desaparece.
É por isso que a genética desempenha um papel tão importante no desmantelamento de uma justificativa científica da raça e na compreensão do próprio racismo.
E é por isso que a recente declaração da Casa Branca está preocupando muitos na comunidade científica.
Trump fala com frequência sobre aspectos da genética para defender argumentos políticos. Uma opinião que ele manifestou repetidamente é que algumas pessoas, e de forma previsível, ele próprio, são geneticamente superiores.
"Vocês têm bons genes, vocês sabem disso, certo?", ele disse em setembro de 2020 durante um comício em Minnesota, estado americano com mais de 80% de população branca.
"Vocês têm bons genes. Muito disso tem a ver com os genes, não é, vocês não acreditam? Vocês têm bons genes em Minnesota."
Da mesma forma, na bem-sucedida campanha de 2024, ele denunciou os imigrantes como tendo "genes ruins".
É difícil para alguém que estuda genes — e a estranha e, às vezes, perturbadora história da genética — entender até mesmo o que pode constituir um gene "bom" ou "ruim".
Nossa história pode ser perniciosa, mas a trajetória da genética tem sido uma que tende ao progresso e à equidade para todos, conforme consagrado na Declaração de Independência dos Estados Unidos.
O projeto forneceu evidências definitivas de que os grupos raciais não têm base biológica. Na verdade, há mais variação genética dentro dos grupos raciais do que entre eles. A raça, como a iniciativa mostrou, é uma construção social.
Apesar desta descoberta fundamental, que só foi reforçada com o avanço da pesquisa sobre genomas humanos, a raça e a etnia ainda são usadas com frequência para categorizar as populações humanas como grupos biológicos distintos.
São visões que podem ser encontradas circulando na pseudociência das redes sociais, mas também ainda se infiltram na pesquisa científica e nos sistemas de saúde.
É ainda mais preocupante quando este pensamento chega aos corredores do poder.
O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, e seu governo não escondem sua rejeição a vários aspectos da visão científica do mundo.
Desde que retornou à Casa Branca, ele fez cortes drásticos no financiamento científico para pesquisas biomédicas e climáticas, mas em uma ordem executiva recente, Trump mirou no que a maioria dos cientistas agora considera como uma realidade biológica.
Intitulado "Restaurando a verdade e a sanidade na história americana", o decreto presidencial, assinado por Trump, teve como alvo uma exposição chamada A forma do poder: histórias de raça e escultura americana no Museu de Arte Americana do Instituto Smithsonian.
A ordem executiva faz parte de uma tentativa mais ampla de moldar a cultura americana, eliminando "ideologias impróprias, divisivas ou antiamericanas" dos museus do instituto.
Ela afirma: "Os museus da capital da nossa nação devem ser lugares onde as pessoas vão para aprender — não para serem submetidas a doutrinação ideológica ou narrativas divisivas que distorcem nossa história compartilhada."
A exposição em si é criticada no texto por promover a ideia de que "a raça não é uma realidade biológica, mas uma construção social, afirmando que 'a raça é uma invenção humana'".
A ordem executiva apresenta a exposição como um exemplo de uma mudança "prejudicial e opressiva" na narrativa que retrata os valores americanos.
Este é o ponto em que pessoas como eu, um geneticista especializado na história da ciência racial, ficam um pouco irritadas.
A questão aqui é que a frase citada pelo Instituto Smithsonian está 100% correta.
Isso não é controverso nem na ciência nem na história.
A variação humana é, obviamente, bastante real. As pessoas são diferentes, e podemos ver essas diferenças na pigmentação da pele, na cor e na textura do cabelo e em outras características físicas.
Essas diferenças se agrupam em locais ao redor do mundo: pessoas da mesma região, em média, são mais parecidas entre si do que com pessoas de outras áreas — até aí, tudo óbvio.
No século 18, estas características foram os principais fatores determinantes de uma nova forma de categorizar os seres humanos em termos supostamente científicos.
O botânico sueco Karl Linnaeus é considerado legitimamente como o pai da biologia moderna, uma vez nos forneceu o sistema de classificação que usamos até hoje: gênero e espécie.
Todo ser vivo é nomeado de acordo com este sistema — por exemplo, a bactéria Escherichia coli, o leão, Panthera leo, ou o Gorilla gorilla, que provavelmente dispensa apresentações. Nós somos Homo sapiens — pessoas sábias.
Mas em sua obra fundamental, intitulada Systemae Naturae, Linnaeus introduziu outro nível de classificação para nós, designado principalmente pela mais visível das características humanas: a pigmentação.
Linnaeus estabeleceu quatro tipos de seres humanos, agrupados por massas terrestres continentais: Asiaticus — pessoas com "pele amarela" e cabelo liso preto; Americanus — indígenas americanos, com "pele vermelha", e também cabelo liso preto; Africanus — pessoas de "pele preta" e cabelo crespo; e Europaeus — de "pele branca" com olhos azuis.
Estas designações são claramente absurdas — nenhuma das cores é precisa, mesmo se você adotasse a visão obviamente incorreta de que milhões de pessoas compartilham os mesmos tons de pele, inclusive dentro destas categorias.
Mas as raízes das designações raciais que usamos ainda hoje são visíveis nesses rótulos.
Alguns destes termos deixaram de ser aceitos socialmente, e são considerados racistas. Mas ainda usamos "negro" e "branco" para descrever milhões de pessoas, nenhuma das quais realmente tem pele negra ou branca.
Mesmo que esse esquema de cores fosse verdadeiro, as descrições originais de Linnaeus apenas começaram com características físicas.
O que ele incluiu em edições posteriores do Systemae Naturae, que se tornou a base do racismo científico, foram retratos de comportamentos.
Os Asiaticus foram descritos como "arrogantes, gananciosos e regidos por opiniões", enquanto os Americanus foram rotulados como "teimosos, fervorosos e regidos pelos costumes".
As mulheres Africanus foram descritas como "sem vergonha", enquanto ambos os sexos foram considerados "astutos, preguiçosos e regidos pelo capricho".
Ele descreveu os Europaeus como "gentis, perspicazes, inventivos e regidos por leis".
Por qualquer definição e em qualquer época, estas afirmações são racistas e totalmente incorretas.
É claro que, ao examinar a história, devemos ter cuidado ao julgar as pessoas do passado com base em nossos próprios padrões.
Mas, como texto fundamental da biologia moderna, a introdução de um sistema de classificação para os seres humanos que é absurdo, racista e, acima de tudo, hierárquico, deixaria uma marca indelével nos séculos seguintes.
Nos 200 anos seguintes, muitos homens buscaram refinar essas categorias com novas métricas, incluindo interpretações pseudocientíficas da craniometria, ou medidas do crânio.
Eles nunca chegaram a uma resposta definitiva sobre quantas raças existem — nenhuma das características que estavam sendo usadas é imutável nem exclusiva das pessoas para as quais elas eram supostamente essenciais.
Chamamos esta ideologia de "essencialismo racial". Mas todos os vários esquemas colocavam os europeus brancos como superiores a todos os outros.
Foi o biólogo Charles Darwin quem primeiro começou a desconstruir essas ideias, reconhecendo em seu livro de 1871, A Origem do Homem, que havia muito mais continuidade nas características entre pessoas que haviam sido designadas como raças distintas.
No início do século 20, a biologia molecular entrou em cena, e a era da genética desmantelou o conceito biológico de raça.
Quando começamos a analisar como os genes são compartilhados em famílias e populações, vimos que as semelhanças de fato se aglomeram em grupos, mas esses agrupamentos não se alinham com as tentativas de longa data de classificar as raças. A verdadeira métrica da diferença humana é a nível genético.
No século 20, quando começamos a desvendar nossos genomas, e a observar como as pessoas são semelhantes e diferentes em relação ao DNA, vimos que os termos em uso há vários séculos tinham pouca relação significativa com a genética subjacente.
Embora apenas uma pequena porcentagem do nosso DNA seja diferente entre os indivíduos, o genoma é tão grande e complexo que há uma grande diversidade.
Os geneticistas ainda estão trabalhando para desvendar como isso altera a saúde das pessoas, por exemplo.
Mas essas diferenças genéticas não se definem de acordo com o que chamamos de raça. Elas seguem linhagens ancestrais, podem diferir de acordo com a localização geográfica e podem ser rastreadas por meio de padrões históricos de migração.
O que sabemos agora é que há mais diversidade genética em pessoas de ascendência africana recente do que no resto do mundo junto.
Pegue duas pessoas, por exemplo, da Etiópia e da Namíbia, e elas serão mais diferentes entre si a nível genético do que uma delas é em relação a um europeu branco, ou até mesmo um japonês, um inuíte ou um indiano.
Isso inclui os genes que estão envolvidos na pigmentação.
No entanto, por razões históricas, continuamos a nos referir tanto aos etíopes quanto aos namíbios sob a definição de raça "negra".
Vejamos o exemplo dos afro-americanos, pessoas que descendem em grande parte de africanos escravizados levados para o Novo Mundo.
O sequenciamento dos genomas dos negros americanos revela ecos da história da escravidão transatlântica.
Eles não só misturaram a ascendência genética de alguns países da África Ocidental de onde seus ancestrais foram retirados, mas também quantidades significativas de DNA de europeus brancos.
Isso reflete o fato de que os proprietários de pessoas escravizadas mantinham relações sexuais — muitas das quais não eram consensuais — com escravizados.
Portanto, a simples categorização dos descendentes dos escravizados como "negros" também não faz sentido do ponto de vista biológico.
Eles são geneticamente diversos por si só, e diferentes dos ancestrais africanos dos quais descendem. Colocá-los juntos não faz sentido do ponto de vista científico.
Portanto, é por consenso, uso e história que continuamos a usar o termo "negro". Isso é o que queremos dizer com uma construção social.
O conceito de raça tem pouca utilidade como taxonomia biológica. Mas é extremamente importante do ponto de vista social e cultural.
As construções sociais são a forma como o mundo funciona: dinheiro e tempo também são construídos socialmente.
O valor de uma libra ou dólar é aplicado em relação a bens e serviços. O tempo passa de forma infalível, mas horas e minutos são unidades totalmente arbitrárias.
Portanto, embora a raça não seja biologicamente significativa, ela tem consequências biologicamente significativas.
O impacto da maioria das doenças está relacionado à pobreza. Como as pessoas com ascendência de minorias étnicas tendem a apresentar níveis mais baixos de status socioeconômico, as doenças tendem a afetá-las de forma mais grave.
Isso é verdade em todas os aspectos, mas ficou evidente logo no início da pandemia de covid-19. Negros, sul-asiáticos e, nos Estados Unidos, hispânicos foram desproporcionalmente infectados e morreram em decorrência da doença.
A imprensa imediatamente começou a procurar um motivo que materializasse a versão biológica da raça, às vezes com foco no metabolismo da vitamina D, que está ligado à produção de melanina e tem efeitos sobre infecções virais.
Alguns estudos mostraram que níveis mais baixos de vitamina D estavam de fato associados à suscetibilidade à infecção por covid-19 entre os negros. Mas isso é uma correlação, não uma causa.
Por trás de qualquer pequena diferença biológica, estão causas muito mais fortes: enquanto muitos de nós estávamos confinados em casa, os trabalhadores da linha de frente do NHS (sistema público de saúde britânico), as pessoas que limpam nosso lixo e dirigem nossos ônibus tinham maior probabilidade de pertencer a minorias étnicas.
Elas simplesmente tinham um risco maior de serem expostas e, portanto, infectadas pelo vírus. Combine isso com o fato de que os grupos minoritários têm maior probabilidade de viver em moradias urbanas densas e multigeracionais, e a suposta suscetibilidade biológica desaparece.
É por isso que a genética desempenha um papel tão importante no desmantelamento de uma justificativa científica da raça e na compreensão do próprio racismo.
E é por isso que a recente declaração da Casa Branca está preocupando muitos na comunidade científica.
Trump fala com frequência sobre aspectos da genética para defender argumentos políticos. Uma opinião que ele manifestou repetidamente é que algumas pessoas, e de forma previsível, ele próprio, são geneticamente superiores.
"Vocês têm bons genes, vocês sabem disso, certo?", ele disse em setembro de 2020 durante um comício em Minnesota, estado americano com mais de 80% de população branca.
"Vocês têm bons genes. Muito disso tem a ver com os genes, não é, vocês não acreditam? Vocês têm bons genes em Minnesota."
Da mesma forma, na bem-sucedida campanha de 2024, ele denunciou os imigrantes como tendo "genes ruins".
É difícil para alguém que estuda genes — e a estranha e, às vezes, perturbadora história da genética — entender até mesmo o que pode constituir um gene "bom" ou "ruim".
Nossa história pode ser perniciosa, mas a trajetória da genética tem sido uma que tende ao progresso e à equidade para todos, conforme consagrado na Declaração de Independência dos Estados Unidos.
Impetuosidade dos cem primeiros dias de Trump começa a mostrar rachaduras
Final de julho de 1980, Aeroporto Internacional Sheremetyevo, em Moscou. O empresário Roberto Civita, editor das revistas da Editora Abril, estava entre os milhares de estrangeiros atraídos pela oportunidade de cruzar a Cortina de Ferro e assistir aos Jogos Olímpicos na União Soviética. Além de gostar de esportes, Civita queria observar como o colosso comunista lidaria com o evento. Desembarcou despreocupado com meia dúzia de exemplares da revista Veja na bagagem. Era uma edição sobre os Jogos, fresquinha da gráfica, que trazia a imagem do líder soviético Leonid Brejnev na capa. Estava orgulhoso e pretendia mostrá-la aos jornalistas que faziam a cobertura olímpica em Moscou.
Péssima ideia. As revistas estampavam a caricatura de Brejnev com feições de urso feroz, e o tempo fechou com os agentes da imigração. Não só confiscaram o material e mais alguns extras, como retiveram o viajante para explicações. Segunda ideia péssima de Civita: argumentou não ser mero leitor, mas representante do maior grupo editorial brasileiro que publicava aquelas revistas. Para ouvidos soviéticos, um capitalista incontrito. O não diálogo foi bastante tenso, contaria depois.
Nesta semana, o episódio de 45 anos atrás saltou do baú da memória. Isso porque, em julho de 2026, a nação americana celebrará os 250 anos da assinatura da Declaração de Independência, festança que pretende ter impacto comparável ao que foram os Jogos de Moscou para a URSS. A julgar pelo clima de suspeição e arbítrio já demonstrado neste início de governo, a recepção a visitantes de determinadas origens, posições políticas ou ideológicas, currículo ou profissões, pode não ser do gosto das autoridades trumpistas. Dias atrás o site da Embaixada dos Estados Unidos no Brasil e sua página no X de Elon Musk fizeram a seguinte postagem bilíngue:
— TODOS devem estar de sobreaviso. Se você é um visitante em nosso país, comporte-se como tal. Nosso rigoroso programa de verificação em redes sociais para identificar riscos à segurança nacional e à segurança pública nunca para. O U.S. Citizenship and Immigration Services está atento para encontrar qualquer coisa on-line que represente uma ameaça à nossa nação e a nosso modo de vida. Green cards e vistos são um privilégio, e não um direito.
Logo nos primeiros dias como presidente, Trump já demonstrou sua capacidade e determinação em fazer desaparecer pessoas que cometeram ou não algum crime, sendo ou não cidadãos legalmente documentados. Convém, portanto, mesmo para viajantes desavisados, não desembarcar nos Estados Unidos com o celular recheado de opiniões mordazes sobre o reinado trumpista.
Uma segunda postagem no site da embaixada, do mesmo dia 30 de abril, surpreendeu pelo tema. Ela informa que uma equipe do Departamento de Estado no consulado americano em Porto Alegre (RS) realizou um exercício de treinamento sobre armas de destruição em massa contra “uma possível ameaça química, biológica, nuclear ou explosiva”. Caramba. Talvez seja melhor nem se interessar pelos festejos de 2026 e, assim, evitar sobressaltos.
Trump, convenhamos, é único. Em 2021, foi enxotado de Washington pelo voto, com dois impeachments no currículo, abandonado por aliados e banido de suas plataformas sociais preferidas. Um pária, em suma. Sua ressurreição política, alvo de exaustiva, invejável (e saborosa) reportagem da revista The Atlantic (“I run the country and the world”), explica por que ele, hoje, se sente invencível. A ponto de desmantelar, com voracidade e velocidade inauditas, quase todos os anteparos de proteção à integridade pública do governo federal. Dezenove agências reguladoras foram evisceradas, abrindo caminho para um caminhão de conflitos de interesses, reversão de políticas voltadas ao bem comum e negociatas sem escrutínio, privadas, da Organização Trump com seletos governos estrangeiros.
A noção de governo como bem público democratizante e instituição de responsabilidade social vem sendo metodicamente destruída, constata Henry Giroux, acadêmico distinto Paulo Freire em Pedagogia Crítica na Universidade McMaster, do Canadá. No Estado trumpista, o bem público passou a ser tratado como inimigo, sustenta.
Mas a impetuosidade dos cem primeiros dias já começa a mostrar as primeiras rachaduras. Segundo dados de 191 pesquisas sobre a popularidade de Trump desde a posse, 119 apontam crescimento de quase dois dígitos na desaprovação — a média de aprovação caiu para 44% segundo o levantamento, feito pelo laboratório de dados do New York Times.
Para Giroux, diante da apatia comatosa do Partido Democrata, seria imperativo uma ação da sociedade civil. “O fascismo se alimenta de desespero, cinismo e silêncio, mas a História ensina o contrário”, diz ele. É quando pessoas comuns se recusam a ficar em silêncio, quando ensinam, criam, marcham e falam com clareza feroz, que os alicerces do poder indevido começam a ruir.
Faltam 1.536 dias para o término do mandato regulamentar de Trump.
Péssima ideia. As revistas estampavam a caricatura de Brejnev com feições de urso feroz, e o tempo fechou com os agentes da imigração. Não só confiscaram o material e mais alguns extras, como retiveram o viajante para explicações. Segunda ideia péssima de Civita: argumentou não ser mero leitor, mas representante do maior grupo editorial brasileiro que publicava aquelas revistas. Para ouvidos soviéticos, um capitalista incontrito. O não diálogo foi bastante tenso, contaria depois.
Nesta semana, o episódio de 45 anos atrás saltou do baú da memória. Isso porque, em julho de 2026, a nação americana celebrará os 250 anos da assinatura da Declaração de Independência, festança que pretende ter impacto comparável ao que foram os Jogos de Moscou para a URSS. A julgar pelo clima de suspeição e arbítrio já demonstrado neste início de governo, a recepção a visitantes de determinadas origens, posições políticas ou ideológicas, currículo ou profissões, pode não ser do gosto das autoridades trumpistas. Dias atrás o site da Embaixada dos Estados Unidos no Brasil e sua página no X de Elon Musk fizeram a seguinte postagem bilíngue:
— TODOS devem estar de sobreaviso. Se você é um visitante em nosso país, comporte-se como tal. Nosso rigoroso programa de verificação em redes sociais para identificar riscos à segurança nacional e à segurança pública nunca para. O U.S. Citizenship and Immigration Services está atento para encontrar qualquer coisa on-line que represente uma ameaça à nossa nação e a nosso modo de vida. Green cards e vistos são um privilégio, e não um direito.
Logo nos primeiros dias como presidente, Trump já demonstrou sua capacidade e determinação em fazer desaparecer pessoas que cometeram ou não algum crime, sendo ou não cidadãos legalmente documentados. Convém, portanto, mesmo para viajantes desavisados, não desembarcar nos Estados Unidos com o celular recheado de opiniões mordazes sobre o reinado trumpista.
Uma segunda postagem no site da embaixada, do mesmo dia 30 de abril, surpreendeu pelo tema. Ela informa que uma equipe do Departamento de Estado no consulado americano em Porto Alegre (RS) realizou um exercício de treinamento sobre armas de destruição em massa contra “uma possível ameaça química, biológica, nuclear ou explosiva”. Caramba. Talvez seja melhor nem se interessar pelos festejos de 2026 e, assim, evitar sobressaltos.
Trump, convenhamos, é único. Em 2021, foi enxotado de Washington pelo voto, com dois impeachments no currículo, abandonado por aliados e banido de suas plataformas sociais preferidas. Um pária, em suma. Sua ressurreição política, alvo de exaustiva, invejável (e saborosa) reportagem da revista The Atlantic (“I run the country and the world”), explica por que ele, hoje, se sente invencível. A ponto de desmantelar, com voracidade e velocidade inauditas, quase todos os anteparos de proteção à integridade pública do governo federal. Dezenove agências reguladoras foram evisceradas, abrindo caminho para um caminhão de conflitos de interesses, reversão de políticas voltadas ao bem comum e negociatas sem escrutínio, privadas, da Organização Trump com seletos governos estrangeiros.
A noção de governo como bem público democratizante e instituição de responsabilidade social vem sendo metodicamente destruída, constata Henry Giroux, acadêmico distinto Paulo Freire em Pedagogia Crítica na Universidade McMaster, do Canadá. No Estado trumpista, o bem público passou a ser tratado como inimigo, sustenta.
Mas a impetuosidade dos cem primeiros dias já começa a mostrar as primeiras rachaduras. Segundo dados de 191 pesquisas sobre a popularidade de Trump desde a posse, 119 apontam crescimento de quase dois dígitos na desaprovação — a média de aprovação caiu para 44% segundo o levantamento, feito pelo laboratório de dados do New York Times.
Para Giroux, diante da apatia comatosa do Partido Democrata, seria imperativo uma ação da sociedade civil. “O fascismo se alimenta de desespero, cinismo e silêncio, mas a História ensina o contrário”, diz ele. É quando pessoas comuns se recusam a ficar em silêncio, quando ensinam, criam, marcham e falam com clareza feroz, que os alicerces do poder indevido começam a ruir.
Faltam 1.536 dias para o término do mandato regulamentar de Trump.
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