sexta-feira, 2 de dezembro de 2022

Pensamento do Dia

 


Sem abdicar da esperança

No Brasil, a reflexão nunca foi razoavelmente prestigiada. Preferimos, sempre, reagir percorrendo o circuito das emoções.

Ocorre que a revolução digital, com a força descomunal das redes sociais, enfraqueceu a mediação reflexiva da informação, acentuando a prevalência, quase absoluta, da emoção sobre a reflexão, em um processo de autoamputação da razão.

Sem juízo de valor, basta ver a capacidade de convencimento dos influenciadores digitais, profissionais ou eventuais, vis-à-vis a mídia tradicional. Seu poder de convencimento é avassalador.

Não é, contudo, um fenômeno local, mas, em menor ou maior intensidade, mundial. Aparentemente, é, também, irreversível, o que imporá uma rediscussão da natureza do Estado e dos institutos que o integram.

Como já ocorreu tantas vezes, talvez estejamos vivendo uma transição entre duas realidades históricas, o que remete à conhecida reflexão do pensador italiano Antônio Gramsci: “O velho está morrendo e o novo não pode nascer; nesse interregno surgem os sintomas mórbidos mais variados”.


Um desses sintomas, hoje, são os movimentos oportunistas que buscam, por meio da manipulação da linguagem, viabilizar interesses próprios, nem sempre legítimos, gerando uma peculiar guerra de palavras.

Grandes dicionários costumam eleger a palavra do ano. O Merriam-Webster, que nos dois últimos anos destacou as palavras pandemia e vacina, elegeu, para este ano, “gaslighting”. Segundo ele, essa palavra corresponde ao ato ou prática de enganar grosseiramente alguém especialmente para vantagem própria, de forma mais elaborada que a mentira improvisada, porque decorre de um planejamento com propósitos iníquos. O Brasil é um terreno fértil para esses atos ou práticas, em virtude de nossa acanhada capacidade de reflexão.

Nesse delicado contexto, que se soma ao imprevisível curso das mudanças climáticas, à guerra da Ucrânia e outros focos de tensão bélica, ao desabastecimento alimentar, à inflação em escala internacional e à crise da democracia, teremos a instalação de um novo governo no Brasil, em circunstâncias em que se constatam visíveis e irresolutas instabilidades institucionais.

É previsível que surjam muitos projetos governamentais para enfrentar os problemas atuais e um futuro desafiador. Ainda que possa parecer uma platitude, é recomendável que a ação política seja pautada pelo comedimento de linguagem, desarmamento dos espíritos, planejamento centrado em diagnósticos e em escolha de soluções qualificadas, e negociação sem apelo a meios pouco virtuosos.

Por que o mundo precisa de um tratado global sobre plástico

De nossas embalagens a nossas roupas e eletrodomésticos – o plástico está presente em quase todos as áreas do consumo.

Mas um tratado global para conter essa torrente de poluição pode mudar as coisas. No início deste ano, líderes mundiais reunidos numa conferência das Nações Unidas votaram por unanimidade pela elaboração de um acordo juridicamente vinculativo sobre o plástico até 2024.

"Este é o acordo ambiental multilateral mais significativo desde o acordo de Paris. É uma apólice de seguro para esta geração e as futuras, para que elas possam viver com plástico e não serem amaldiçoadas por ele", disse então Inger Andersen, chefe do Programa Ambiental da ONU.

Agora é a vez de um comitê de negociação, formado por delegados da ONU, agências especializadas e ONGs, acertar os detalhes. Nesta semana, o grupo se reúne no Uruguai para a primeira rodada de negociações sobre como abordar a produção, o design e o descarte do plástico.
A dimensão do problema

Embora existam muitas estatísticas sobre a produção de plástico, ativistas dizem que não se pode saber ao certo quais são os números reais. Não há requisitos globais para que a indústria relate sua produção, mas a magnitude da crise é clara.

A Fundação Heinrich Böll, uma fundação política da Alemanha, estima que 8,3 bilhões de toneladas métricas de plástico foram produzidas entre 1950 e 2015. Isso é mais de uma tonelada por pessoa vivendo no mundo hoje. Disso, a maior parte foi para produtos e embalagens de uso único – e menos de 10% foi reciclado.

O restante é queimado, despejado em aterros sanitários ou jogado na natureza, nos quais os animais podem ficar presos ou comer e se engasgar.

Animais de engasgam com plásticos em seu habitat

Uma vez em nossos ecossistemas, o plástico pode lá permanecer por centenas de anos. A bem da verdade, ele nunca desaparece completamente, mas apenas se decompõe em fragmentos cada vez menores, que têm um alcance ainda maior. Os microplásticos contaminam a nossa água potável, o ar, o solo e os alimentos. E, como resultado, o corpo humano. A ciência ainda está dividida sobre as ameaças à nossa saúde.

Mesmo assim, a produção não mostra sinais de desaceleração. Se as políticas públicas não mudarem, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) estima que o consumo de plástico deve aumentar de 460 milhões de toneladas métricas em 2019 para 1,2 bilhão de toneladas em 2060.

Dois setores estão particularmente interessados ​​em manter as vendas de plástico em crescimento: o petroquímico e o de combustíveis fósseis, já que a maior parte do plástico é feita com produtos químicos derivados do petróleo e do gás natural. Essa matéria-prima representa 12% da demanda global de petróleo, uma parcela que deve crescer, de acordo com um relatório de 2018 da Agência Internacional de Energia.

Muitos especialistas ambientais dizem que uma crise global como a da poluição plástica também exige uma resposta global para combater o problema.

No momento, a legislação difere de país para país e tem graus variados de sucesso. Muitas leis visam plásticos feitos de material não reciclável ou projetados para serem descartados rapidamente.

A União Europeia, por exemplo, proibiu produtos de plástico de uso único, como cotonetes, talheres, pratos ou canudos. A Nova Zelândia também não permite embalagens de alimentos de poliestireno e bandejas de alimentos de PVC. Bangladesh, Quênia e vários outros países africanos proibiram as sacolas plásticas.

Outros grandes poluentes, como os EUA, não têm nenhuma lei federal que regule o uso de plásticos descartáveis. Mas o lixo tem consequências internacionais, seja quando levado para ecossistemas de outras nações ou exportado para aterros sanitários no exterior.

"No momento, temos uma verdadeira colcha de retalhos na legislação", disse Christina Dixon, da Agência de Investigação Ambiental do Reino Unido. "Mas o plástico, como material e como poluente, é totalmente transfronteiriço. Portanto, é incrivelmente difícil administrar algo que flui pelo ar, pelas correntes oceânicas e pelo comércio."

Embora a poluição plástica seja frequentemente enquadrada como um problema de gerenciamento de resíduos – de que a reciclagem precisa ser intensificada –, muitos especialistas dizem que precisamos é olhar para a origem do problema.

"Não podemos lidar com a poluição plástica sem lidar com a produção de plástico", disse Dixon.

À medida que a produção de plástico virgem aumenta, ativistas estão pressionando para que o tratado global inclua proibições e restrições a novos materiais. Isso significa que a economia teria que repensar o consumo e priorizar a redução dos resíduos plásticos em vez da reciclagem ou do descarte.

Mas, para que isso aconteça, é preciso haver dados melhores, diz Dixon. Ela quer que os negociadores criem um padrão global para que os vendedores relatem quanto produzem, onde obtêm seus petroquímicos e como seu plástico é composto.

"Se tivermos a elaboração de relatórios como uma obrigação legal mínima, isso criará a capacidade de estabelecer restrições a certos tipos de polímeros problemáticos e estabelecer metas para limitar e reduzir gradualmente a produção", disse ela. "Sem o relatório, o tratado está realmente fadado ao fracasso."

Dixon também espera que o tratado estabeleça um fundo para ajudar as economias em desenvolvimento na transição para o abandono do plástico. De acordo com um estudo publicado na Science Advances, países de alta renda, como os EUA e o Reino Unido, foram responsáveis pela maior quantidade de lixo plástico produzido per capita em 2016. Os efeitos, porém, são sentidos em todo o mundo.

O comitê tem apenas dois anos para decidir sobre esses fatores. O prazo apertado mostra a urgência do problema, mas também dificulta as condições.

"Eles precisam encontrar um equilíbrio entre agir rapidamente e projetar um instrumento realmente robusto que será eficaz nos próximos anos", disse Dixon.

Bolsonaro já era, por absoluta incapacidade de se reinventar

Uma coisa é o que dizem para consumo público os políticos que cercam de perto o presidente demissionário Jair Bolsonaro, calado, perplexo e desocupado desde que perdeu a eleição.

Outra bem diferente é o que eles dizem quando conversam entre si no escurinho do cinema, ou nos gabinetes da República à prova de escuta dos curiosos, especialmente dos jornalistas.


Para consumo público, eles dizem, ou pelo menos diziam até um dia desses, que Bolsonaro, pouco a pouco, voltava a governar, que já dava ouvidos aos outros, e que em breve recuperaria a voz.

Intramuros, dizem o contrário. Que Bolsonaro continua apático, macambúzio, sofrido, que não fala porque não tem nada a dizer, e que dificilmente será o líder da oposição ao governo Lula.



Bolsonaro sempre gostou de impor suas vontades, e quando as via ameaçadas, falava muito, batia na mesa, distribuía desaforos, e valia-se da caneta cheia de tinta para intimidar os desafetos.

Jamais em 27 anos como deputado federal ele foi homem de partido. Passou por 9 e está no décimo, o PL de Valdemar Costa Neto. Operava como um franco atirador do baixo clero da Câmara.

Esteve a ponto de encerrar sua carreira por cansaço e desânimo. Sentia-se sem futuro na política. Aí, teve a ideia de ser candidato a presidente para impulsionar a carreira dos filhos.

Foi então, para seu próprio espanto, que se deu bem. Foi então, depois de quatro anos, que se deu mal. Entrou para a história como o único presidente que não se reelegeu, e o pior de todos.

O que ele teria a dizer aos seus eleitores hoje? A maior parte dos que votaram nele queria evitar a volta de Lula. A minoria que poderia votar novamente sente-se órfã e começa a criticá-lo.

Transcorrido mais de ano em que tentou desacreditar o processo eleitoral, reconhecer a derrota seria contraditório. Tendo se empenhado pelo golpe, não pode mandar os golpistas para casa.

Acreditou que os partidos que o apoiaram, comprados com o Orçamento Secreto, estariam ao seu lado na vitória ou na derrota. Não foi o que aconteceu. E ele está revoltado.

Quando a Alemanha, na Copa do Mundo de 2014, goleou o Brasil por 7 x 1 e sagrou-se campeã, muito se disse que o futebol jogado por ela viera para ficar e seria copiado pelos demais países.

Na Copa de 2018, a Alemanha emperrou na fase de grupos. Na Copa do Catar, ora em curso, foi o que se viu ontem. O futebol alemão será obrigado a se reinventar, e certamente o fará.

Quanto a Bolsonaro, por absoluta impossibilidade, já era.

A volta da política cala Bolsonaro

Lula reinaugura a política em Brasília. Até agora tem sabido, para ficar na metafísica influente destes dias, como tocar e lançar a bola, a despeito da rabugice "Duzmercáduz" e de setores consideráveis da imprensa, que odeiam justamente a... política. "Rabugem", a propósito, é sinônimo de sarna. O rabugento está sempre se coçando, numa inquietude viciosa.

Jair Bolsonaro se queda em silêncio porque moralmente derrotado, incapaz de se apresentar a suas milícias com a conhecida altivez burra e truculenta. Faz soar, na sua quietude, o apito de cachorro para manter mobilizados os zumbis do golpismo, enquanto Eduardo, o filhote, vai à farra no Qatar levando consigo supostos "pen drives" sobre "a atual situação do Brasil"... Mas há mais do que o peso da derrota.

Aquele que, para todos os efeitos, ainda preside o país nada diz porque se vê cercado, de súbito, por um ambiente que lhe é absolutamente estranho e ao qual sempre se mostrou hostil: a negociação. Quando chegou à Presidência, tinha uma carreira de quase 30 anos como deputado federal, trilha profissional seguida pelos filhos. O clã havia encontrado um meio de ganhar a vida e de acumular um formidável patrimônio —parte em dinheiro vivo—, mas se dedicava a que causa pública mesmo?


O líder petista indicou vários nomes para se acercar da herança do "imbrochável" amuado, mas é evidente que é ele, não um preposto enfatuado e arrogante, a negociar, por exemplo, a PEC da Transição. O eleito já se encontrou duas vezes com Arthur Lira (PP-AL) e Rodrigo Pacheco (PSD-MG), presidentes, respectivamente, da Câmara e do Senado.

Não sei se Lula consegue a aprovação da PEC pelo pico, com um valor de R$ 198 bilhões, excepcionalizando-se por quatro anos os R$ 175 bilhões do Bolsa Família. Seria o melhor, mas é provável que não leve tudo: alguns falam em favor de dois anos, tempo para se arranjar outra âncora fiscal. Frise-se: essa eventual nova amarra —teto de dívida, por exemplo— é só métrica diversa. O dinheiro é um só. O que se busca é um critério confiável para conter gastos, mas que tenha um efeito virtuoso na economia, em vez de conduzir ao sucateamento de bens e de serviços públicos, com superávit primário chinfrim e insustentável em meio ao caos.

A negociação virou instrumento para a formação da futura base de apoio e para a eleição das respectivas Mesas da Câmara e do Senado. O PT apoiará a recondução de Pacheco, como o esperado, e de Lira, o que constrange alguns bons. É do jogo. Ignorando-se os limites da realidade, não se consegue nem tomar um Chicabon, para ecoar Nelson Rodrigues.

"Ah, mas e a permanência do orçamento secreto"? Como existe, é uma excrescência e não vai se tornar virtuoso porque Lula será o presidente. Parece-me, no entanto, que, por ora, já é grandeza demais dotar o país de uma peça orçamentária realista; reconstruir a governança destroçada em qualquer área que se analise; reinserir o Brasil na economia verde; enfrentar —e isto ainda reserva sortilégios futuros, podem apostar— um processo de normalização do golpismo, que contamina até setores da imprensa, e reinstaurar o espaço da divergência que não pressuponha a eliminação do outro. O "bolsofascismo" veio para ficar. O desafio consiste em circunscrevê-lo, aprisionando-o nos nichos da delinquência política.

Antes de escrever essa coluna, voltei ao noticiário do início de dezembro de 2018. Bolsonaro, presidente eleito, dedicava-se a atacar a legislação ambiental, e Guedes explicava como aprovaria medidas salvacionistas apelando às "bancadas temáticas", não aos partidos. Deu tudo errado. No dia 26 de maio de 2019, o Planalto já patrocinava o primeiro ato golpista contra o STF e o Congresso. Um dos alvos era Rodrigo Maia, então presidente da Câmara, que conduzia a reforma na Previdência e teria, no ano seguinte, papel central na PEC de Guerra contra a Covid. Nem por isso parou de apanhar.

Eram os primeiros passos do desastre. "Uzmercáduz" reagiam com menos estridência do que a uma simples entrevista de Lula afirmando que a responsabilidade fiscal não pode levar à irresponsabilidade social. Estão desatualizados. Precisam redescobrir o capitalismo e a política.