Jair Bolsonaro nunca brochou. Nunca defendeu a ditadura e nunca elogiou um torturador. Nunca foi um fanfarrão. Nunca promoveu selvagens motociatas para intimidar os cidadãos comuns. Nunca propagou fake news sobre as vacinas. Nunca ignorou a tragédia do povo yanomami e nunca acobertou os garimpeiros que a provocaram. Nunca corrompeu o Congresso, a PGR, a PRF, os órgãos de inteligência, juízes, ministérios, estatais e um bando de generais.
Bolsonaro nunca pregou a desobediência às decisões judiciais e nunca subiu a um palanque para xingar um ministro do STF de canalha e dizer que não acataria suas decisões. Nunca abusou do perdão presidencial para tirar da cadeia um rufião que ameaçou fisicamente outro ministro. Nunca pôs em dúvida a confiabilidade das urnas eletrônicas, e muito menos para boquiabertos embaixadores estrangeiros chamados ao Alvorada para a performance. E nunca vociferou contra sua derrota nas eleições, aceitando democraticamente o resultado das urnas.
Em nome da liberdade de expressão, Bolsonaro nunca repreendeu ou censurou seus seguidores acampados em frente ao QG do Exército, que pediam intervenção militar para a sua, dele, manutenção no poder. Ao contrário, silenciou. Da mesma forma, nunca insuflou o caos com o intuito de justificar um golpe militar. Quando seus seguidores invadiram o Congresso, o Planalto e o STF armados com facas, picaretas e barras de ferro para provocar esse caos, ele nem estava no Brasil. E quem garante que eram seus seguidores e não milhares de comunistas infiltrados?
Não há filmes, gravações, fotos, transmissões pelos canais oficiais do governo, postagens em redes sociais nem depoimentos de testemunhas que provem que Bolsonaro cometeu qualquer dos crimes acima.
Portanto, Bolsonaro não teve nada a ver com o 8/1. E, como já sabemos, nunca brochou. Só falta agora combinar com a Polícia Federal.
No Brasil, como já ocorre em alguns países latino-americanos, agudiza-se o mito das primeiras-damas, mulheres de presidentes, que de simples companheiras sentimentais ou mães de filhos, se tornaram referência, com a esperança de substituí-los no poder.
Neste momento, a questão se intensificou porque tanto a atual mulher do presidente, Rosângela da Silva, conhecida como Janja, quanto Michelle Bolsonaro, atual e terceira esposa do ex-presidente Bolsonaro, já são apontadas como possíveis futuras candidatas a chefes de Estado. Assim, acabam ocupando não só nas redes sociais, mas até mesmo na mídia tradicional, um espaço que não lhes corresponderia.
Foi Lygia Maria, do jornal Folha de São Paulo, quem deu o alarme ao lembrar que neste país nunca existiu o cargo de primeira-dama. Mulheres de médicos, engenheiros, juízes, nunca tiveram importância no papel de seus maridos. E lembrou que na Alemanha, por exemplo, ninguém nunca se importou com o papel do marido de Ângela Merkel, que sempre viveu no anonimato.
No Brasil, a questão da primeira-dama se agudizou quando coincide o fato de que tanto a mulher do derrotado Bolsonaro quanto a do vencedor já aparecem como possíveis candidatas a herdar o cargo de seus maridos. E isso à luz do dia, em proveito dos partidos dos dois, em busca de figuras carismáticas para exibir nas eleições.
A diferença entre a de Bolsonaro e a atual de Lula é que enquanto Janja, além de feminista atuante, é uma socióloga que trabalhou durante anos na estrutura do Estado e em movimentos feministas; Michelle é conhecida apenas por ser uma evangélica carismática, supostamente com dons espirituais extraordinários, como entrar em êxtase e falar línguas antigas em transe.Segundo os políticos de seu partido, além de ser uma conservadora assumida, Michelle fala muito bem e sabe se comunicar com o grande e poderoso grupo de evangélicos, principalmente com as mulheres. Uma mulher anônima que de repente diz que gostaria de ser a Evita Perón do Brasil, e que não esconde mais sua ambição de estrear na política ativa.Michelle é a terceira mulher de Bolsonaro e nunca houve um grande entendimento entre eles. É conhecido o desânimo do marido, claramente machista, quando depois de ter tido três filhos nos casamentos anteriores, nasceu-lhe uma filha da união com Michelle. Chegou a comentar então, sem pudor, que tinha sido um “tropeço”, já que o que ele gosta são filhos.Agora, porém, que Bolsonaro tem quase certeza de que a Justiça o tornará inelegível por oito anos, e que sabe que não lhe será fácil encontrar um sucessor que possa dominar, ele já defende que Michelle poderia substituí-lo. E assim vai nascendo o mito, principalmente entre as mulheres, as mais pobres e evangélicas, que são maioria nas urnas.Bem diferente é o caso de Janja, que nos três meses em que o marido está na Presidência, já protagonizou uma série de episódios até polêmicos nos quais aparece como tendo influenciado decisões de Lula, a quem acompanha em todos os momentos de sua atividade política. Ela já ocupa um cargo ao lado de Lula no Palácio do Planalto e é notória a influência que exerce sobre ele.Lula confessou durante a campanha eleitoral que o terceiro mandato seria o desfecho de sua carreira, já que em 2026 terá mais de 80 anos e não pretende concorrer outra vez. Nem todos acreditaram, sabendo da paixão do ex-sindicalista pela política. No entanto, quer ele queira ou não, ou talvez queira, Janja aparece e até inconscientemente atua como sua sucessora natural.Tudo isso tem seus prós e contras, pois carrega em si certa ambiguidade e arrasta não só os partidos, mas também a mídia em geral a acompanhar passo a passo, com ou sem razão, as duas mulheres no mínimos detalhes, às vezes em detrimento dos reais e graves problemas que assolam o país.Uma amostra disso aconteceu dias atrás, durante visita de Lula a Portugal. Ao chegarem ao hotel lisboeta onde o casal se alojaria, Janja saiu por um momento e entrou numa loja de luxo, a do famoso estilista italiano Ermenegildo Zegna.A primeira notícia que apareceu instantaneamente na mídia foi que a mulher de Lula “foi vista entrando em uma loja de luxo e saindo com um pacote de compras na mão”. E ainda dava os preços das roupas que eram vendidas na referida loja.Tudo desmoronou em minutos quando se soube que a Janja simplesmente havia saído para procurar a loja mais próxima do hotel e comprar uma gravata azul para Lula, e que por acaso era uma loja da estilista Zegna. Mas a notícia já havia se espalhado aos trancos e barrancos em todos os meios de comunicação.A repercussão foi tamanha que Chico Buarque, ídolo da música brasileira, um dos maiores personagens deste país e com imagem internacional, que não é conhecido por seu humor, aproveitou o momento em que Lula lhe entregou o Prêmio Camões, em Lisboa, para ironizar o episódio da gravata.O famoso compositor e poeta, que nunca aparece de gravata, desta vez apareceu com uma. Questionado pela imprensa, respondeu ironicamente que sua mulher havia saído do hotel para comprar uma gravata para ele na primeira loja que encontrou, e que não teve outra opção a não ser usá-la.Buarque aproveitou a ocasião para encher Bolsonaro de elegante sarcasmo. Lembrando que o ex-presidente de extrema direita havia se recusado há quatro anos a assinar o famoso Prêmio Camões que Lula agora lhe entregava, comentou: “Agradeço a Bolsonaro pela delicadeza em não querer sujar meus Camões com sua assinatura”. E acabou oferecendo seu importante prêmio a todos os artistas “humilhados e desprezados” pelo ex-presidente durante seu governo.
No domingo, o sociólogo e escritor José Henrique Bortoluci publicou nesta Folha um forte artigo-exortação, sob o título "É preciso narrar o horror".
O professor da Fundação Getulio Vargas referia-se à necessidade de falar da degradação política, social e civilizatória promovida por Jair Bolsonaro e seus cúmplices, com milhares de óbitos evitáveis durante a pandemia; rotineiros ataques incentivados contra populações indígenas; mortes causadas pela facilidade com que civis passaram a ter acesso a armas de fogo; destilação desinibida de ódio político via redes sociais.
Bortoluci tem razão em advertir para os efeitos nefastos do silêncio sobre esse passado recente e revelador do que de pior existe entre os brasileiros. É certo que o presidente de extrema direita —que por pouco não se reelegeu, aliás— foi o responsável maior pelo aprofundamento dos horrores sociais do país. Mas ele não os criou da noite para o dia: além de muitos, são renitentes.
Decerto o mais escandaloso está nas levas que vivem nas ruas das principais cidades, incorporadas à paisagem pelos que passam tratando de não vê-las e submetidas pelos governos aos mais desastrados experimentos de políticas públicas.
Segundo o Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), vivem nas ruas pelo menos 280 mil brasileiros —uma Governador Valadares (MG). Os sem-nada cresceram mais de 200% entre 2012 e 2022, ou 20 vezes o aumento da população em geral no período. Tamanho inchaço tem relação direta com a prolongada crise econômica da última década e a explosão do mercado de drogas.
É de pasmar: só no fim da primeira década deste século o Brasil definiu uma linha de ação para lidar com a tragédia, dando origem à chamada Política Nacional para a População em Situação de Rua (PNPR), de 2009. Compreende uma visão atualizada de inclusão e garantia de direitos, além de estabelecer programas e formas de cooperação entre o governo federal e os municípios. No ano seguinte, o público-alvo foi incorporado ao Cadastro Único que dá acesso ao Bolsa Família; em 2011, teve abertas as portas do SUS.
Em São Paulo, onde se estima serem 48 mil os moradores em situação de rua, programas e equipamentos criados no âmbito do PNPR, ou por iniciativa do estado e do município, padecem da crônica mudança de políticas —não raro inspiradas por visões desumanas de como lidar com o problema. Varridas de um lugar para outro, as pessoas são obrigadas a desarmar a cada manhã suas tendas de dormir, enquanto praças são cercadas por grades.
No centro da maior cidade brasileira, o horror impera, o tempo todo, à vista de todos.
Em menos de 48 horas, eles ofereceram duas saídas bizarras para os perrengues que enfrentam o ex-presidente e a ex-primeira dama, ambos às voltas com o escândalo das joias milionárias ofertadas pela ditadura da Arábia Saudita; e no caso específico de Bolsonaro, também com a tentativa de golpe do 8 de janeiro.
As joias de Michelle, no valor de 16,5 milhões de reais, foram apreendidas pela Receita Federal. As de Bolsonaro, que entraram ilegalmente no país, apareceram dentro de um pacote entregue nas mãos de Michelle no Palácio da Alvorada. E o que seu porta-voz disse depois de ela ter dito que desconhecia as joias?
Que o pacote, cujo conteúdo Michelle ignorava, ficou fechado dois ou três dias, abandonado sobre uma pia da cozinha do palácio. Mais tarde foi aberto. Foi quando ela soube das joias presenteadas ao marido. Quanto às joias destinadas a ela, Michelle só ouviu falar por meio da imprensa. Não as pediu, nem recebeu.
A segunda explicação bizarra: foi “sem querer”, e sob efeito de morfina, que Bolsonaro, internado em um hospital americano, postou um vídeo no Facebook de estímulo tardio ao golpe que fracassara. Com a palavra, Paulo Cunha Bueno, um dos advogados que acompanhou o depoimento de Bolsonaro à Polícia Federal:
“Esse vídeo foi postado na página do presidente no Facebook, quando ele tentava transmiti-lo pro seu arquivo de WhatsApp para assistir posteriormente. […] A postagem foi feita de forma equivocada, tanto que pouco tempo depois, duas ou três horas depois, ele foi advertido e imediatamente a retirou”.
Postado em 10 de janeiro, o vídeo questionava a lisura e a confiabilidade das eleições presidenciais de 2022. Acusava Lula de não ter sido eleito de maneira legítima pela população, mas sim por um conluio entre ministros de tribunais superiores. Bolsonaro recuperava-se de uma obstrução intestinal.
A Procuradoria-Geral da República (PGR) afirmou à época que a conduta de Bolsonaro poderia ser enquadrada no delito de incitação ao crime, previsto no artigo 286 do Código Penal e cometido por quem estimula a prática de infrações. E que tinha “o poder de estimular novas ações” contra os Poderes da República.
Ao incluir Bolsonaro nas investigações em torno do golpe, Alexandre de Moraes destacou um trecho da manifestação da PGR que diz que ele disseminou falsas informações “sobre as instituições judiciárias responsáveis pela organização dos pleitos, alegando que tramavam contra sua reeleição”.
Morfina não combina com obstrução intestinal, segundo médicos consultados pelo O Globo. É um medicamento usado contra diarreia e tem potencial de agravar o quadro de obstrução intestinal de Bolsonaro. Além disso, ela não provoca um quadro de confusão mental, a não ser se ministrada em doses elevadas.
Para a professora de farmacologia e ex-reitora da Universidade Federal de São Paulo, Soraya Smaili, a alegação é “estranha”:
“É uma argumentação ruim porque a morfina causa mais constipação, ao provocar uma diminuição na motilidade gastrointestinal.”
“Em relação ao sistema nervoso central, a morfina causa principalmente sonolência, uma certa depressão. Agora, confusão mental, só numa concentração muito alta”.
Bolsonaro já havia recebido alta do hospital quando postou o vídeo.