terça-feira, 27 de novembro de 2018

Pensamento do Dia


Bolsonaro e o Congresso

Jair Bolsonaro saiu de dentro do congresso mas o congresso não saiu de dentro de Jair Bolsonaro. Nem dele nem da família dele. (E termos de nos preocupar com ela é a pior parte desse começo de história).

“Menos Brasília e mais Brasil” é tudo que ele próprio não tem feito. “Dar a conhecer ao povo a verdade que o libertará” menos ainda. O presidente recebeu do Sérgio Moro juiz e dos eleitores um congresso posto no seu devido lugar mas parece não se ter dado conta do valor da graça alcançada. Está aceitando o estilo de jogo dele em vez de impor-lhe o seu. A falta de uma reação proporcional ao tamanho da ignomínia dos 16,38% que os eunícios e stf’s, mancomunados, atiraram abaixo da linha d’água do casco do Brasil, deu o sinal. Pode até ter sido o efeito surpresa pois mesmo nestes calejados trópicos é difícil não se embasbacar com tamanha cara de pau. Mas sentindo o espaço a canalha se agrandou.

Na sequência Bolsonaro abriu mão do seu compromisso solene com fichas-limpas e aceitou “fichas + ou –” como ministros, ficando o Brasil com aquela pergunta incômoda. Que argumento das “bancadas” o teria levado a concessão tão perigosa senão os daquele tipo que a justiça tornou crime e o eleitor mandou revogar para sempre?
Em seguida aceitou um veto a uma escolha anunciada em nome de quase-ideologias tão distorcidas quanto as que jurou de morte. Não se perca um minuto com os argumentos dos fariseus que “não enxergam desvio nenhum na educação” e insistem no bla-bla-blá sobre o salário que o professor deve ganhar e fazer crescer sem ler nem suar e, pior, sem fazer ler nem fazer suar, mas apenas com as “conquistas” que obtiver no vão do Masp ou nos cercos a palácios estaduais sob o escudo dessa indemissibilidade do funcionalismo que é a mãe de toda a corrupção. Eles valem tanto quanto os da camarilha do STF para expor suas partes pudendas na cara de um país em choque por hemorragia desatada de um Tesouro Nacional que tá feito “táuba de tiro ao álvaro” de tanto “levá frechada” das corporações de sanguessugas. Mas esse negócio de “Escola sem Partido” é um erro tão grande quanto o que pretende corrigir porque, ao focar naquilo que “deve ser dito e estudado” acaba, inescapavelmente, numa “Escola com o meu Partido” e não numa “Escola sem Censura”, com mandato para punir aquilo que hoje a patrulha proíbe que seja dito e estudado. Esta sim é a escola que tanto o ideal acadêmico quanto o ideal democrático exigem.


Por trás dessas capitulações estariam “as reformas”. De fato, este governo e o Brasil serão o que ele conseguir na reforma das previdências, nem um tostão de investimento a mais, nem um cadáver produzido pela miséria a pela desesperança no fim da miséria a menos. Sem o fim da desigualdade perante a lei ao menos nas aposentadorias num horizonte visível, ainda que longínquo o Brasil definitivamente não voa. Mas o apego das corporações militar e política das quais faz parte o presidente aos seus direitos adquiridos têm conseguido mante-lo num obsequioso silêncio. Ninguém sabe qual a reforma da previdência que ele quer. Evita até mesmo esse plural no qual deveria estar insistindo obsessivamente. É das previdências que o governo eleito deveria estar falando sem parar. Muito na pública, dos ricos, e quase nada na privada, dos pobres, contra cuja reforma não “emana” resistência alguma ao contrário do que afirma a falsificação pacificamente aceita pela situação e pela oposição de hoje e de amanhã. “Impopular” certamente não é cessar a exploração de 99,5% da população brasileira pelo 0,5% que é parte da corte, é misturar os alhos com os bugalhos como todos que não querem que nada mude têm feito.

São, enfim, muitas novidades para muito pouco tempo e o trauma do atentado também pode estar contribuindo para esse efeito mas Jair Bolsonaro dá frequentemente a impressão de não compreender a força do fenômeno que ele próprio traduz. É a rua que pauta o congresso. Quem vive de voto sente a rua até por debaixo do asfalto. Qualquer vontade manifestada por ela o congresso arranja meios de satisfazer nem que seja a de derrubar governos inderrubáveis. É à rua, portanto, que Bolsonaro se deveria estar dirigindo. Não necessariamente num tom de desafio. Para manter o congresso literalmente em estado de sítio bastaria honrar o mote da campanha que o elegeu, cuidando de informar a nação dos dados do problema das previdências, no plural, da sua gravidade explosiva e das alternativas que não ha que o resto aconteceria sozinho por esse subterrâneo que conecta a Câmara e o Senado à vontade popular.

Tem salvo a pátria e o humor do mercado o rigor do critério técnico nas escolhas da área econômica. Mesmo na de Joaquim Levy, na qual a capacidade técnica ultrapassou a medida da conveniência política ao criar uma atrapalhação séria para a obrigatória devassa do BNDES sem a qual não se porá a pedra definitiva por cima do crime organizado na política.

O outro grande ausente do discurso do governo eleito é, aliás, a reforma política, aquela que abre o caminho e dá consistência a todas as outras. De Bolsonaro ao PT e aos PT’s em volta do PT, dos juízes honestos aos juízes ladrões, dos brasileiros sem-vergonha aos indignados, todos atribuem a nossa desgraça aos defeitos pessoais dos indivíduos que já passaram ou estão por passar pelo poder, apesar de estarmos iniciando a segunda volta na roda completa das ideologias no comando do país colhendo sempre o mesmo fruto podre. Ninguém vê defeitos no “sistema”. Quem tem falhado são só os seus operadores. Tudo vai ser diferente quando as pessoas certas chegarem “lá”, diz-se de norte a sul e de leste a oeste, embora já seja óbvio, desde pelo menos 1776, que o problema está em de onde “emana” o poder no Brasil, que é de todo mundo menos do povo. A desconfiança no povo, que neste país tem de ser “guiado” até para dar um passeiozinho no parque, é uma unanimidade que transcende todas as ideologias.

Como será o amanhã?

Há exatamente dois anos, logo após as eleições municipais de 2016, eu afirmei em entrevista para este jornal que a eleição presidencial de 2018 seria ganha por um outsider da política ou por uma figura anti-establishment. Desde então, eu reafirmei o mesmo prognóstico em entrevistas para outros veículos e também em diversos textos que escrevi para este jornal. Muitas vezes, fui questionado pelos meus clientes do mercado financeiro e por tradicionais players do mundo da política por conta desta afirmação – questionamentos esses que eram mais fruto de um desejo que tal prognóstico não se concretizasse do que consequência de uma análise racional a respeito do comportamento do eleitorado brasileiro.

Ao final do primeiro turno das eleições, veio a comprovação: as duas candidaturas mais rejeitadas pelo establishment (popularmente conhecido como O Sistema) estavam no segundo turno.

Hoje, eleitores de cada um dos dois lados, me criticam por não considerar o candidato do campo oposto como parte do establishment. Essa é uma discussão apaixonada, mas ela se torna irrelevante quando trazida para o campo da objetividade. Para isso, basta olharmos as matérias e as linhas editoriais que dominaram a grande mídia do país até dez ou quinze dias antes do primeiro turno - quando o Sistema ainda sonhava com uma vitória de Geraldo Alckmin. Ao fazer esse exercício, fica fácil perceber que o pior pesadelo para o establishment era exatamente um segundo turno entre o candidato do PT e Jair Bolsonaro.

De fato, para o punhado de plutocratas que comanda o Sistema, a candidatura do PT trazia diversos riscos que poderiam ameaçar sua contínua acumulação de riqueza e poder: 1) a adoção de políticas fiscais expansionistas; 2) o combate ao rentismo; 3) a desvalorização do câmbio; 4) a proposição de uma reforma tributária ousadamente progressista; 5) a revogação da reforma trabalhista; 6) o repúdio à reforma da previdência nos termos desejados pelo mercado; 7) a luta por uma reforma política capaz de tornar o Congresso Nacional mais partidário, mais ideológico e consequentemente, menos pulverizado e menos “fluido e manobrável”; 8) o fim da concentração do mercado de comunicação na mão de pouquíssimos grupos familiares; 9) o enfrentamento ao poder que o judiciário, a polícia federal e o ministério público acumularam ao longo da última década; e por último, 10) a soltura do ex-presidente Lula.

O deputado Jair Bolsonaro, por outro lado, aos olhos desse mesmo punhado de plutocratas, representa(va) outros riscos: 1) o enfrentamento à agenda de costumes defendida por eles (relacionada à descriminalização do aborto, ao desarmamento dos cidadãos, ao aprofundamento dos direitos dos grupos LGBTs, à descriminalização do consumo de drogas e à defesa do meio-ambiente e de políticas afirmativas); 2) a promoção de um autogolpe durante o mandato; ou 3) a volta dos militares ao poder - menos “fluidos e maleáveis” que os políticos tradicionais. Além desses três riscos, a eleição dele também pode(ria) ameaçar o poder da grande mídia, do Congresso Nacional (historicamente comandado pelo “centrão” – um importante aliado do establishment) e do Supremo Tribunal Federal.

Logo, por mais que ao longo do segundo turno, tenhamos visto esses plutocratas aderindo ao candidato do PSL (para eles, o bolso é sempre mais importante que os ideais...), não dá para falar que o parlamentar do Rio de Janeiro era o candidato dos sonhos desse pequeno grupo que comanda o Sistema. Da mesma forma, só alguém com a cabeça muito contaminada nessa era da pós-verdade, poderia afirmar que esses titãs do capitalismo tupiniquim desejavam a eleição do candidato do PT - por mais que na década passada, eles tenham enriquecido enormemente durante o governo pelo ex-presidente Lula.


Enfim, o grande derrotado do primeiro turno das eleições presidenciais foi o establishment. Não poderia ser diferente num país em que a soma dos eleitores que diziam não confiar nada ou confiar pouco no Congresso Nacional em meados de abril, chegava a uma taxa impressionante de 89%. Similarmente, não poderia ser diferente num país em que cerca de 80% dos eleitores diziam - em questionamentos separados – confiar pouco ou não confiar nada na grande mídia, nos grandes bancos, nas grandes empresas e na justiça brasileira – apesar da avaliação bastante positiva acerca da Operação Lava Jato.

Curiosamente, apesar do mercado financeiro e desse punhado de plutocratas brasileiros terem aderido ao deputado Jair Bolsonaro no segundo turno, ele venceu a eleição exatamente por ter encarnado a narrativa antissistema melhor que Fernando Haddad.

Mas, não pretendo me prolongar nesse texto sobre as razões que fizeram Bolsonaro vencer Haddad. Meu objetivo aqui é traçar um possível prognóstico a respeito do futuro Governo.

Nesse sentido, a teoria dos jogos nos ensina que quando conhecemos os valores pessoais, as relações de poder e os objetivos dos jogadores, fica fácil prever as ações dos mesmos e consequentemente, o resultado final do jogo.

O presidente eleito defende valores morais bastante conservadores – outro fator fundamental que explica sua vitória sobre Fernando Haddad. Ele é contra a descriminalização do aborto, contra a descriminalização do consumo de drogas e contra o aprofundamento das agendas LGBT, feminista e pró-minorias. Por outro lado, é a favor do direito das pessoas portarem armas de fogo para defenderem suas posses e a sua integridade física.

Politicamente, o deputado e ex-capitão do Exército tem uma retórica ultranacionalista e é um grande admirador da linha dura do regime militar brasileiro (que reagiu à abertura política iniciada no governo Geisel), do Coronel Brilhante Ustra e do General Augusto Pinochet.

Ele enxerga os partidos, intelectuais, políticos, movimentos e organizações de esquerda como os maiores inimigos da nação e dele próprio – em seu discurso, ele também os classifica como os maiores inimigos do povo.

Dentre suas referências mais atuais, destacam-se o ensaísta Olavo de Carvalho, o Juiz Sérgio Moro e o Presidente Donald Trump.

Na economia, apesar de ter defendido durante toda sua carreira parlamentar o modelo nacional-desenvolvimentista implantado pelo regime militar brasileiro, o presidente eleito foi recém-convertido ao liberalismo econômico.

Com essa conversão, que fez aumentar ainda mais sua admiração pelo regime militar chileno, o deputado Jair Bolsonaro passou a declarar-se um defensor da reforma trabalhista, da reforma da previdência, das privatizações e da redução do tamanho do estado.

No campo internacional, o presidente eleito defende uma relação umbilical (para alguns analistas, vassalar) com os Estados Unidos e, por isso, se mostra reativo ao multilateralismo e aos laços que o Brasil construiu ao longo das últimas décadas com a China, a Rússia, o Mercosul e alguns países africanos, árabes e até mesmo europeus de tradição social-democrata.

Por último, na questão do meio-ambiente, assim como o atual presidente norte-americano, o parlamentar do Rio de Janeiro também entende que há exageros na agenda do aquecimento global e acredita que, atualmente, ela é prejudicial ao progresso do país e do mundo.

Passemos agora, para o entendimento de sua base eleitoral - originalmente construída a partir da defesa dos interesses dos integrantes das forças armadas e das polícias. Além das questões salariais e de carreira que afetam essas corporações, o presidente eleito destacou-se nos últimos anos, pela sua proposta de mudança da legislação do excludente de ilicitude. Na prática, ele pretende dar mais garantias legais para policiais que são acusados de homicídio ou de abuso de autoridade por parte do Ministério Público - com as propostas de afrouxamento das exigências para a comercialização de armas de fogo e de ampliação do excludente de ilicitude, é natural que grupos parapoliciais e milicianos tenham sido fortes defensores de sua candidatura conforme já foi retratado por este jornal em algumas matérias.

A partir das eleições de 2014, essa base eleitoral original foi bastante ampliada.

Uma classe média com valores conservadores, que não foi favorecida pelas políticas sociais dos governos do PT, que sofre com o aumento da violência nas ruas, e que foi convencida pela grande mídia que a corrupção política é a grande responsável pela crise econômica, pelo desemprego e pela perda do seu poder aquisitivo, passou a se sentir representada pelo parlamentar do Rio de Janeiro - são pessoas que entre 1994 e 2014, “tapavam o nariz” para votar no PSDB nas eleições presidenciais apenas porque este tinha o PT como adversário.

Essa classe média é filha e neta da mesma classe média que apoiou a queda de João Goulart em 64 e que ainda carrega em suas entranhas a bipolarização do pós-guerra, isto é, a visão de um mundo em que patriotas defensores da família, da propriedade privada e do cristianismo devem lutar continuamente contra a expansão do comunismo ateu.

Depois dessa classe média conservadora, a base se ampliou com o rebanho evangélico neopentecostal. Uma massa que cresce pari passu com a carestia, o desemprego e a miséria nos grandes centros urbanos. O forte posicionamento do presidente eleito a favor de algumas causas ligadas à defesa da família tradicional e contra as pautas comportamentais e de identidade que passaram a dominar a militância de esquerda na última década, foi fundamental para que ele conquistasse o eleitorado evangélico – inclusive um grande número de eleitores de baixa renda que se beneficiaram imensamente pelas políticas públicas dos governos do PT e que costumavam votar em candidatos apoiados pelo ex-presidente Lula.

Simultaneamente, veio o voto “sertanejo” - tradicionalmente mais conservador que o voto nas áreas urbanas. As propostas de 1) promover um relaxamento da legislação e da fiscalização ambiental e trabalhista nas áreas rurais; 2) de permitir que os proprietários de terra possam se armar mais fortemente para proteger suas posses; e 3) de combater duramente (ou até mesmo, de criminalizar) o MST, ganharam o coração das lideranças políticas e econômicas do Brasil Rural. Como essas lideranças ainda detém forte influência sobre o voto popular em seus domínios, o deputado Bolsonaro obteve larga vantagem sobre o candidato do PT no interior do país.

De fato, a retórica nacionalista, messiânica, de resgate de valores morais tradicionais e de criminalização da esquerda, foi fundamental para a vitória do parlamentar do Rio de Janeiro. Por outro lado, essa mesma retórica também faz com que o presidente eleito acabe sendo percebido pela imprensa internacional como mais um representante do neopopulismo de extrema direita que vem conquistando eleitores no mundo todo.

A combinação dessa mesma retórica com a admiração declarada pela linha dura do regime militar (e por figuras como o Coronel Ustra), somada ao apoio recebido por militares, policiais e parapoliciais, faz com que outros analistas políticos desconfiem das declarações de respeito à democracia e à Constituição feitas pelo deputado Bolsonaro depois de eleito - são analistas que vão além e que afirmam que seu futuro Governo representa uma ameaça fascista para o Brasil.

Todavia, no atual contexto de pós-verdade, todas essas expressões precisam ser relativizadas. Afinal o que seria esse neopopulismo de extrema direita? O que significa uma ameaça fascista? Será que ao longo dos últimos anos, as instituições da nossa República têm de fato respeitado a Constituição e a democracia?

As palavras têm poder, mas às vezes, pouco importam. Para a maior parte dos brasileiros, o importante agora é entender o que presidente eleito vai fazer a partir de primeiro de janeiro.

Se ele for tão sagaz quanto tem se mostrado desde o início da campanha eleitoral em agosto, ele vai conseguir implantar grande parte da sua agenda.

Com algumas ações heterodoxas e tendo o Juiz Sérgio Moro como seu ministro da Justiça, não será difícil para o presidente Jair Bolsonaro conseguir criminalizar e, eventualmente, banir a esquerda da cena política nacional. Com a criação de alguns fatos, a instalação de novos inquéritos, o apoio da Procuradoria Geral da República (o presidente eleito já sinalizou que assim como fez o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, não vai se comprometer a seguir a lista tríplice proposta pelo Ministério Público para a escolha do próximo Procurador Geral da República) e a complacência do Congresso Nacional, da grande mídia e do Judiciário, não será difícil incriminar, encarcerar e calar as principais lideranças de esquerda do país – tudo feito sob o manto do combate à corrupção e dentro da legalidade.

Com a escolha do próximo chanceler, também não haverá nenhuma dificuldade para o presidente Jair Bolsonaro implantar uma política externa umbilicalmente associada à política externa norte-americana – afinal, tal movimento não afeta em nada os interesses daquele punhado de plutocratas a que me referi anteriormente.

Por exemplo, é muito provável que a embaixada brasileira em Israel seja mesmo transferida para Jerusalém. Além do desejo de alinhamento com os Estados Unidos, há também a pressão das igrejas evangélicas neopentecostais brasileiras que apoiaram o presidente eleito – elas, assim como suas coirmãs norte-americanas, associam o retorno de Jesus ao reconhecimento de Jerusalém como a única capital do estado judeu. Dessa forma, é improvável que o lobby do agronegócio (que gostaria de evitar uma eventual retaliação dos países árabes por causa dessa transferência) seja capaz de reverter o anúncio que foi feito logo após o fim das eleições.

Adicionalmente, o endurecimento das relações comerciais com a China e com a Rússia também deve acontecer apesar dos potenciais prejuízos para o agronegócio e para o setor de mineração do país.

A agenda comportamental conservadora (relacionada a temas como aborto, drogas, maioridade penal, porte de armas de fogo e excludente de ilicitude) e o afrouxamento da legislação ambiental também devem ser implantadas com sucesso. Para isso, basta atrelar a condução de tais medidas no Congresso Nacional à aprovação da reforma da previdência (a grande obsessão do establishment e do mercado financeiro) e ao programa de privatizações que será proposto pelo futuro Ministro da Economia.

Na verdade, o economista Paulo Guedes será muito útil ao Sistema enquanto estiver na linha de frente da reforma da previdência, do programa de privatizações, da redução do tamanho do Estado, da independência do Banco Central e do aprofundamento da reforma trabalhista recentemente aprovada.

“A porca só vai torcer o rabo” quando ele resolver acelerar sua agenda liberal na tentativa de fazer o país crescer de forma significativa.

O futuro ministro da economia encontrará um muro intransponível quando quiser: 1) reduzir os juros reais e tornar o Real mais competitivo para favorecer a exportação e com isso, gerar demanda para o setor produtivo brasileiro; 2) combater privilégios fiscais e os juros subsidiados oferecidos pelos bancos estatais; e 3) enfrentar os poderosos cartéis e monopólios privados do país para aumentar a produtividade da nossa economia por meio de políticas antitruste, da redução de tarifas de importação e da atração de investimento estrangeiro direto para aumentar a competição nesses setores.

Quando entrar nesse “capítulo”, o futuro ministro deixará de ser visto como herói pela grande mídia e passará a ser alvo dos plutocratas e de seus aliados no Congresso Nacional, no Ministério Público e no Judiciário.

O presidente Bolsonaro terá então três alternativas: 1) bancar a agenda liberal do seu “Posto Ipiranga”; 2) dar um “cavalo de pau” na economia e adotar políticas de expansionismo fiscal e/ou de distribuição de renda para tentar gerar crescimento econômico; e por último, 3) ceder à pressão do establishment e manter o velho capitalismo de compadrio brasileiro – o mesmo que que favorece o rentismo, a concentração de renda e que é responsável pela estagnação econômica do país nos últimos 30 anos.

As duas primeiras alternativas farão com que o presidente eleito também se torne alvo do Congresso, do Ministério Público e do poder judiciário. Nesses casos, assim como aconteceu com Jânio Quadros e Fernando Collor, que também foram eleitos com um discurso “apolítico”, anticorrupção e liberal na economia, é possível que o mandato de Jair Bolsonaro fique ameaçado - tendo o General Mourão como seu substituto direto, é pouco provável que as Forças Armadas se arrisquem a defender o presidente eleito num eventual embate contra o Congresso e o Judiciário.

A terceira alternativa vai lhe garantir a permanência no cargo até o final do mandato, mas não será capaz de gerar o crescimento econômico necessário para melhorar seus níveis de aprovação nos dois últimos anos de governo.

Dessa forma, para sua própria sobrevivência política, lhe restará “caçar e queimar novas bruxas” - no que tiver sobrado na esquerda, em outro campo político, ou quem sabe até fora do país. Seria o uso da velha tática do “se você não pode dar pão ao povo, dê a ele o sangue de um inimigo” - imaginário ou não.

O mundo já viu muitos exemplos trágicos dessa tática ao longo da história. No curto prazo, ela pode até dar algum resultado, mas no final, nunca acaba bem.

Vamos dançar?

Irresponsabilidade salarial marca a gestão Temer

Michel Temer encerra o seu mandato-tampão exatamente como começou, sob o signo da irresponsabilidade salarial. Há dois anos e meio, autorizou seus apoiadores no Congresso a aprovar um pacote de reajustes que engordou os contracheques de 38 carreiras do funcionalismo. A apenas 35 dias de voltar para casa, avalizou um aumento de 16,38% para os ministros do STF. Algo que descerá em cascata pelo organograma do Estado, engordando as folhas da União e dos Estados. Nos dois casos, a generosidade de Temer se confunde com a temeridade, pois as contas públicas estão em petição de miséria.

Suprema ironia: o aumento sancionado agora por Temer constou do cardápio de um jantar que o presidente ofereceu a senadores do PSDB em 17 de agosto de 2016. Os tucanos foram à presença de Temer justamente para avisar que Eunício Oliveira, então líder do MDB, recolhia assinaturas no Senado com o propósito de impor o regime de urgência na votação do projeto que aumentaria os vencimentos do Supremo de R$ 33,7 mil para R$ 39,2 mil. A duras penas, desarmou-se a bomba.


Decorridos dois anos e três meses, o mesmo Eunício Oliveira, agora presidente do Senado, transferiu o projeto sobre o tônico salarial do STF do freezer para a pauta de votações. Aprovado a toque de caixa, foi para a mesa de Temer há 13 dias. E o presidente concluiu que seria uma boa ideia jogar o artefato fiscal radioativo que se encontrava desativado desde 2016 no colo do sucessor Jair Bolsonaro.

O senador Ricardo Ferraço era um dos tucanos presentes ao jantar oferecido por Temer em 2016. Ele foi ao repasto porque exercia na época a atribuição de relator do pedido de aumento do Supremo. Realçou à mesa um detalhe que Temer não ignorava: os contracheques dos magistrados da Suprema Corte regem a folha salarial de todo o funcionalismo, pois representam o teto remuneratório do serviço público. Quando sobem, puxam junto os vencimentos do Judiciário e dos demais Poderes.

Ferraço expôs suas contas para Temer. Estimou que o aumento do Supremo abriria uma porteira pela qual passariam gastos adicionais de R$ 5 bilhões. A cifra continua válida. As estimativas feitas hoje variam entre R$ 4 bilhões e R$ 6 bilhões. Em 2016, Temer havia concordado com as ponderações. Hoje, na iminência de deixar o trono, livrou-se das preocupações fiscais.

Dois meses antes de jantar com os tucanos, Temer havia escancarado os cofres da União para as corporações. O governo acabara de arrancar do Congresso uma autorização para fechar suas contas naquele ano com um rombo de R$ 170,5 bilhões. E o presidente, em franca contradição com a realidade, autorizou seus apoiadores no Legislativo a aprovar um pacote bilionário de reajustes salariais a servidores.

Num surto corporativo que manteve as fornalhas do plenário da Câmara acesas até as 2h47 da madrugada do dia 2 de junho de 2016, os deputados aprovaram 14 projetos de lei. Juntos, somavam 370 páginas. Continham bondades destinadas a 38 carreiras do Estado, inclusive o STF. Tudo foi decidido a toque de caixa, em votações simbólicas. Os deputados apenas levantavam e abaixaram a mão para mostrar que a turma do “sim” era majoritária.

Horas antes de se render ao funcionalismo na Câmara, uma comitiva de tucanos liderada pelo deputado baiano Antonio Imbassahy, então líder do PSDB, encontrara-se com Henrique Meirelles, que respondia pelo Ministério da Fazenda. Indagado a respeito da farra salarial, cujo custo o próprio governo estimara em R$ 58 bilhões até 2019, o então czar da economia atribuíra a atmosfera de liberou-geral ao Planalto. Alegou que Temer não teve pulso para brecar reajustes que haviam sido negociados por Dilma antes do impeachment.

Diante da atmosfera de fato consumado, apenas um deputado tucano se animou a escalar a tribuna da Câmara para discursar contra os reajustes: Nelson Marchezan Júnior, hoje prefeito de Porto Alegre. Ele declarou na ocasião:

“Dizem aqui que não posso ser mais realista que o rei. Se o governo encaminha tudo isso, devemos votar a favor. Quero lembrar que acabamos de depor uma rainha porque ela administrou as contas públicas contrariamente ao interesse popular. Tiramos na expectativa de que o novo governo administraria para o interesse popular.”

Marchezan Júnior arrematou: “Espero que esse novo rei mude sua forma de reinar, para que ele não siga no mesmo caminho da rainha deposta. Espero também que as operações da Lava Jato, anunciadas para os próximos dias, não tenham nenhuma relação com esse açodamento de votar esse rombo de algumas centenas de bilhões de reais.”

O tempo passou. A Lava Jato empurrou para dentro da biografia de Temer duas denúncias criminais e dois inquéritos por corrupção. Sergio Moro está na bica de transplantar para o Ministério da Justiça os métodos da força-tarefa de Curitiba. Ao descer a rampa do Planalto, em 1º de janeiro, o ex-novo rei passará a conviver com o receio de receber a visita matutina dos rapazes da Polícia Federal. Foi contra esse pano de fundo que Temer liberou o reajuste do STF. Que Bolsonaro pagará com o déficit público.

Para complicar, o Congresso desistiu de analisar uma medida provisória de Temer que adiaria para 2020 a parcela do reajuste salarial de 372 mil servidores públicos referente a 2019. Coisa de R$ 4,7 bilhões. É parte daquele pacotaço aprovado em 2016. Conforme já noticiado aqui, os congressistas concluíram que o aumento dado ao STF tornou sem nexo o arrocho que seria imposto aos demais servidores.

Fechando o círculo da irresponsabilidade fiscal, Temer revelou-se um presidente eficientíssimo. Ele mesmo concede reajustes a descoberto, ele mesmo sugere o adiamento de parte do desembolso, ele mesmo libera os novos reajustes que servirão de pretexto para sepultar a postergação dos aumentos anteriores. Tudo isso num instante em que há 12 milhões de brasileiros no olho da rua e R$ 139 bilhões de rombo no Orçamento da União para 2019.

Oposição à oposição

O novo governo ainda não tomou posse, e os derrotados tentam se aglutinar para ganhar a próxima eleição, em 2022. Não percebem que, mais do que Bolsonaro vencer a eleição de 2018, a população brasileira disse “não” aos que agora defendem unidade dos derrotados. Querem ganhar o próximo pleito com a mesma postura que apresentaram, com o mesmo discurso e a mesma falta de sintonia com o futuro.

O povo disse não a essas siglas que tentam se aglutinar sem fazer autocrítica, sem entender onde erraram, sem formular alternativas. Parecem acreditar que foi o povo quem errou, escolhendo outro candidato, e propor uma nova chance aos eleitores para acertarem em 2022. Dizem que o único errado é o PT, do qual agora se afastam depois de terem bajulado Lula ao longo de anos. 



Esquecem que, no primeiro turno, o PT teve mais votos que todos os candidatos das siglas que agora se dizem da esquerda não petista. E insistem na esquerda em nada diferente do que o eleitor repudiou em outubro. Não percebem o apego do povo ao país e seus símbolos, continuam falando para as comparações, de empresários e de trabalhadores, cujas reivindicações asfixiam as finanças públicas. Não entenderam o esgotamento gerencial e fiscal do Estado, nem assumem compromissos com responsabilidade fiscal e estabilidade monetária.

Se quiserem fazer oposição pelo bem do Brasil, esses partidos e líderes precisam começar a fazer oposição a si próprios: entender onde estão errando há décadas, formular uma proposta para o futuro do Brasil, definir como dar coesão e rumo ao país e a sua sociedade, dividida socialmente e improdutiva economicamente. Dizer em que esse caminho é antagônico ao do PT e ao do Bolsonaro e, por isso, oposição aos dois.

A primeira autocrítica seria à política do compadrio de siglas com propósito eleitoreiro, como tentaram durante os dois meses que antecederam o pleito e tentam agora olhando 2022. A segunda é entender que perderam sintonia com os rumos da história; perceber as revoluções que ocorreram no mundo: a globalização e as amarras que provocam na economia nacional; a informática, a robotização e o desemprego estrutural consequente; os limites ecológicos ao crescimento; o aburguesamento dos movimentos sindicais e a miopia e oportunismo dos movimentos sociais; a importância da educação de qualidade igual para todos como o vetor do progresso econômico e social. A terceira é perceber que não se constrói justiça social sobre economia ineficiente; por isso, é preciso respeitar os limites orçamentários, despolitizar regras da economia, zelar pela estabilidade monetária, reconhecer o papel do livre-comércio e a necessidade de reformas que desamarrem o Brasil. Concentrar os propósitos revolucionários na garantia de escola com qualidade igual para todos: os filhos dos trabalhadores na mesma escola que os filhos dos patrões.

Uma oposição consequente deve começar pela autocrítica de seus erros, reconhecendo não ter oferecido uma alternativa progressista e sintonizada com o espírito de nossos tempos. Cada democrata-progressista deve fazer oposição ao que Bolsonaro representar de retrocesso, mas isso não basta: é preciso avançar dizendo que rumo pode oferecer para um Brasil eficiente, justo, sustentável, livre.

Antes de fazer oposição aos vitoriosos, a “exquerda” nostálgica que tenta se aglutinar precisa fazer frente a seu próprio passado derrotado, não apenas por Bolsonaro, mas pela história. Sem isso, chegará em 2022 outra vez sem propostas para o futuro ou dizendo que seu projeto é apenas ser contra o novo governo e o PT ao qual serviram até ontem.
Cristovam Buarque

A tradição do êxodo na América Latina

Em Tijuana, os refugiados da América Central na fronteira com os Estados Unidos parecem prenunciar uma escalada do drama migratório da região. Mas essa situação não é singular.

Nas últimas décadas, sempre houve êxodos de refugiados, ainda que não tenham acontecido sob a mesma cobertura midiática. Já meio século atrás, pessoas fugiam maciçamente de El Salvador, da Nicarágua e da Guatemala rumo ao norte. Nos Estados Unidos, encontraram trabalho como jardineiros, garçons, cozinheiros, auxiliares de colheita. Grande parte dos setores agrícola e de serviços americanos ficariam paralisados sem os imigrantes da América Central.

Por muito tempo, ninguém nos Estados Unidos ficou incomodado com isso – e muito menos nos países centro-americanos de origem. É que as chamadas remessas, ou transferências financeiras dos migrantes às famílias que ficaram, são um fator importante para as economias. Na América Central, esses envios já são maiores do que a soma dos investimentos diretos estrangeiros, da ajuda ao desenvolvimento e dos lucros com as exportações.

Fronteira colombiana com a Venezuela

Em El Salvador e em Honduras, as remessas de dinheiro dos emigrantes para os países de origem totalizam 20% do Produto Interno Bruto, segundo cálculos do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Os emigrados transferem anualmente um total de 80 bilhões de dólares para toda a América Latina, dizem estimativas do Banco Mundial. Dois terços do montante vêm dos Estados Unidos.

Dos 40 milhões de latino-americanos que emigraram desde os anos 1970, 25 milhões vêm da América Central. Isso equivale à metade da população atual dos seis países – Panamá, Costa Rica, Nicarágua, El Salvador, Honduras e Guatemala. 90% dos refugiados se estabeleceram nos Estados Unidos – e, desde a virada do milênio, o fluxo de migrantes continua aumentando. Com a onda de refugiados venezuelanos, os países vizinhos estão tomando consciência do problema pela primeira vez na América do Sul.

O drama da migração na América Central é um mau presságio também para a América do Sul. Mostra que, também ali, os fluxos de refugiados deverão aumentar se os governos não conseguirem conter as crises econômicas, sociais e políticas. Um olhar sobre a América Central mostra como uma miséria econômica permanente levou a uma corrente de refugiados durante gerações.

A América Central é o abrigo dos pobres da América Latina. Juntos, os seis países produzem um PIB que equivale mais ou menos ao de Bangladesh. Enquanto o Panamá e a Costa Rica são países comparativamente estáveis do ponto de vista econômico e político no sul da região, a miséria piora no resto da América Central. Na Nicarágua, por exemplo, a renda per capita é de menos de 200 dólares por mês. Se for considerada a paridade do poder de compra, Honduras tem a mesma renda per capita do Sudão.

As causas da miséria são várias. Ao contrário de vários países africanos, a América Central é pobre em matérias-primas. Os principais produtos de exportação são café, açúcar e bananas. Acrescenta-se a isso um fracasso total crônico das elites políticas: já em 1904, o escritor americano William Sydney Porter cunhou num de seus romances o termo pejorativo "República de bananas" após uma viagem a Honduras.

Mas, onde há insegurança política, também não há atrativos para investidores estrangeiros. Indústrias de semicondutores, como na Costa Rica, onde também empresas alemãs, como a Bayer, estabeleceram seus centros regionais, são as poucas ilhas industriais na região até hoje.

Cada vez mais, a criminalidade se une à pobreza e à falta de perspectivas como causa do êxodo. Honduras e El Salvador são os países com as maiores taxas de assassinatos do mundo. A Guatemala ocupa a nona posição, segundo o escritório das Nações Unidas de combate às drogas e ao crime (UNODC). O número de vítimas de assassinatos ultrapassa o número de mortes ocorridas durante as guerras civis que aconteceram quando mercenários financiados pelos Estados Unidos combateram revolucionários de esquerda apoiados por Cuba.

Por isso, não é de se admirar que a atual corrente de refugiados começou na metrópole hondurenha San Pedro Sula, de um milhão de habitantes. Com 187 assassinatos para cada cem mil habitantes, o centro econômico do país foi a cidade mais perigosa do mundo durante anos. Desde então, o número caiu para 51 por cem mil, mas a cidade ainda consta entre os locais mais violentos do globo. A título de comparação, a Alemanha tem uma proporção de 0,85 mortes para cada cem mil habitantes.

Não é só desde Donald Trump que os Estados Unidos tentam conter o fluxo crescente vindo da América Central. Em 1996, o país endureceu as leis de migração e, desde o início dos anos 2000, começou a enviar centro-americanos de volta aos seus países de origem. Desde então, um milhão de centro-americanos e mexicanos foram deportados dos EUA.

Mas isso apenas piorou o problema da violência e da miséria econômica na América Central. Frequentemente, os deportados eram criminosos ou filhos de migrantes que cresceram nos EUA e não conseguiam se integrar no país de origem. As gangues juvenis, as temidas maras, surgiram inspiradas nas gangues americanas – e, atualmente, possuem o monopólio da violência em algumas áreas da América Central.

Os jovens lapidados pela violência costumavam ganhar dinheiro como mensageiros ou pequenos traficantes de cartéis mexicanos de drogas que transacionam especialmente cocaína da Colômbia pelo corredor centro-americano em direção ao norte. Mas isso não é mais suficiente para eles. "Os maras querem ascender e formar cartéis próprios", alerta Roy David Urtecho, ex-procurador-geral de Honduras.

O fortalecimento dos maras na América Central também ocorreu porque a elite política os protegeu, afirma José Miguel Cruz, diretor de pesquisas na Universidade Internacional da Flórida. Para os oligarcas no poder, o surgimento das gangues foi oportuno: elas serviam de auxiliares de campanha, milícia, extorsão de dinheiro em troca de proteção – trocando em miúdos, para manter a ordem vigente, na qual apenas um pequeno círculo de pessoas sempre teve as rédeas nas mãos. "Essas pessoas não têm interesse em fazer avançar suas sociedades, nem econômica nem politicamente", teme o professor de Ciências Políticas e Corrupção Michael Allison, da Universidade de Scranton (EUA).

Não é de se admirar, portanto, que todos os países da América Central constam entre as nações com as maiores taxas de corrupção e as maiores disparidades de renda do mundo. Uma classe média ampla e politicamente autoconfiante nunca pôde se estabelecer na região.

Com exceção da Venezuela, a situação na América do Sul ainda não é tão dramática. Mas isso pode mudar rapidamente, como mostra a América Central. Não parece que o atual fluxo de migrantes para os EUA vai mirrar tão cedo. E pode ser que Trump até o ache positivo – ainda que motivado apenas por táticas eleitorais.
Alexander Busch