sexta-feira, 23 de junho de 2017
As crises dentro da crise
Em vários espaços, tenho descrito impressões sobre a natureza dos males que o país vive. Não há certeza de nada, nunca haverá; é apenas a crise como a vejo. Como o Riobaldo de Guimarães Rosa, ''eu quase de nada sei, mas desconfio de muita coisa''. Cansado de atirar pedras, talvez seja o momento de repetir e atualizar as desconfianças de maior fôlego. Compartilhar, quem sabe contribuir — menos com os partidos, mais com a sociedade; se não com a sociedade, com os raros leitores. Segue um ''textão''.
A crise não é conjuntural, ela abraça ao sistema por múltiplos fatores estruturais e se manifesta por um processo de cumplicidades entre partidos e agentes que, incapazes de resolve-la, batalham pela conciliação. Mas, à doença crônica é possível que não haja remédio, no curto prazo. O corpo médico à disposição é limitado, o diagnóstico e a terapia prescritos são inúteis. Sobre o doente, se pratica medicina paliativa como se fosse terminal; na verdade, ministra-se um tratamento negligente.
As desconfianças vão em várias frentes; são cinco as crises dentro da crise: 1) a crise de modelo econômico, 2) a crise do ''país da meia-entrada'', 3) a crise do presidencialismo de coalizão, 4) a crise do financiamento da política, 5) a crise de liderança. Necessário enfiar o dedo em cada uma dessas chagas.
Na década de 1990, ao dominar a inflação, o país deu um estupendo salto econômico. Estabeleceu a racionalidade dos ''fundamentos macroeconômicos''; isto deu alguma segurança para distribuir renda e promover investimentos. Foi o período do governo FHC e boa parte do governo Lula, este favorecido pelo choque de commodities. Percebeu-se, todavia, que não bastava: seria necessário avançar na agenda de produtividade; investir em infraestrutura, logística, educação e aperfeiçoamento do ambiente de negócios.
A Nova Matriz Econômica de Dilma deu com os burros n'agua ao imaginar que tudo pudesse ser feito unicamente pelas mãos do Estado e à parte de transformações das instituições políticas; não investiu em reformas e, pior, abusou-se até o esgotamento de mecanismos como o crédito e incentivos fiscais de toda ordem.
Hoje, de volta à agenda de 1990 — controlar os fundamentos macroeconômicos —, o país retrocedeu ao que deveria ser obrigação. Precisa, no entanto, da política para avançar numa agenda de reformas que possa ir além do simples ajuste fiscal. Essa agenda, é claro, fere interesses de toda a ordem e por isso requer a solução de outras crises.
O ''país da meia-entrada'' é a expressão que o economista Marcos Lisboa encontrou para descrever um sistema de enorme poder e privilégios corporativos. Desde, pelo menos 1936, se sabe — com Sérgio Buarque de Holanda — da presença e da força dos ''interesses particularistas''. Corporações que levam o maior valor da renda nacional, praticamente arrendando para si o Estado.
São diversos grupos que ficam com ''a parte do leão''; sejam eles empresários, sindicatos de empregados públicos, privados e patronais e até grupos específicos como juízes, promotores, fiscais, parlamentares, médicos, professores, estudantes… Todos os que conseguem arrancar uma lasquinha dos recursos públicos, com supostos direitos que inexistem — por que a escassez é a lei da natureza — para grupos sociais que vivem sem qualquer proteção.
Esse ''país da meia-entrada'' entrou em crise, sobretudo, por conta das transformações demográficas — mas também pelas próprias limitações de crescimento e expansão do modelo econômico. Resolver seu colapso demandaria ação de um sistema político eficaz, com visão de Estado e de longo prazo, pouco ou quase nada voltada para interesses particulares e fisiológicos. Eis outro ponto de crise.
Durante anos, teceu-se loas ao presidencialismo de coalizão — de fato, o sistema entregava aquilo que o Executivo pedia. Descobriu-se que, com os recursos de que dispunha, o governo fazia maioria no Congresso e aprovava demandas. Eureca! Admitia-se o fisiologismo como elemento estrutural do processo. Com efeito, alguma gordura, às vezes, e necessária para que o mecanismo flua. Com alternância de poder, o sistema tem seus momentos de ''reloading'' e se renova. Novos governos surgem, refazem acordos, redistribuem recursos e o pacto fisiológico renasce.
No entanto, não se considerou a qualidade da democracia que se fazia. Recursos públicos têm limites; voracidade fisiológica, não. O vício se expande e controla o organismo; sem negociação programática e limites morais, cargos e recursos transmutam-se em ''esquemas''; tudo passa a ser negociado no paralelo. Em quatro mandatos, a gordura fisiológica compromete as artérias do sistema; a graxa emperra o mecanismo. Vive-se o colapso da coalizão fisiológica.
Esquemas assim vorazes e sem freios comprometem a dinâmica de outro fator estrutural: a relação das empresas com a política por meio da corrupção — de algumas empresas, não todas. Acordos, engodos, fraudes, a corrupção sistêmica que financiava esse tipo de política e de políticos, todavia, agora diante de uma sociedade diferente.
A Constituição de 1988, de fato, gerou novas instituições. Em que pese excessos, o Ministério Público formado por jovens promotores, com o sangue nos olhos, surgiu como fato novo. Ao mesmo tempo, o judiciário que se remoçou e assumiu doutrinas distintas do tipo de direito que aqui se pratica; a Polícia Federal também conquistou autonomia. Trata-se do ''republicanismo'', que hoje o PT enxerga com desdém e origem de sua desgraça; ironicamente, sua maior contribuição.
Some-se a isto um sistema internacional assustado com o terror e mais vigilante com a corrupção e com lavagem de recursos; uma sociedade multimídia, fragmentada e, ao mesmo tempo, conectada em redes, tão plena de conflitos e disputas, indócil, que já não mais se pode cooptar. E está posta a bactéria que revela a sepse, a infecção generalizada do organismo, prenúncio da morte do sistema.
Tudo isto requer medidas profundas e urgentes. Todavia, a liderança política é o quinto elemento em colapso. Com diagnóstico correto, coragem e mediedade, habilidade política — o que inclui comunicação com a sociedade —, o corpo político poderia promover a reinvenção e seu próprio resgate; reorganizando o sistema, superando as diversas crises. Mas, é esta a principal crise do país, seu momentâneo deserto de lideranças.
Nem sempre foi assim, mas vive-se esta ausência de lideranças (no plural). Não se trata de apenas um líder solitário e messiânico, pleno de fúria e farisaísmo que, quando surgiu, foi sintoma e não solução. Mas, de grupos capazes compreender as crises, de representar e liderar setores, conduzir processos de reformulação. Não à toa, tudo tem ido parar no Supremo Tribunal Federal, que também vive sua crise de quadros e lideranças.
A entressafra é ruim, talvez uma geração perdida; um hiato a ser preenchido.
Dizem os chineses que as próprias crises geram inovação, lideranças, soluções. A história coloca problemas aos quais a própria história traz consertos e concertações. Plácidos, os chineses a tudo enxergam com perspectiva de décadas, séculos, milênios; doenças se curam com terapias longas. O diabo é que não somos chineses; não há tanto tempo nem paciência assim. Os males são males que consomem rapidamente.
Carlos Melo
A crise não é conjuntural, ela abraça ao sistema por múltiplos fatores estruturais e se manifesta por um processo de cumplicidades entre partidos e agentes que, incapazes de resolve-la, batalham pela conciliação. Mas, à doença crônica é possível que não haja remédio, no curto prazo. O corpo médico à disposição é limitado, o diagnóstico e a terapia prescritos são inúteis. Sobre o doente, se pratica medicina paliativa como se fosse terminal; na verdade, ministra-se um tratamento negligente.
As desconfianças vão em várias frentes; são cinco as crises dentro da crise: 1) a crise de modelo econômico, 2) a crise do ''país da meia-entrada'', 3) a crise do presidencialismo de coalizão, 4) a crise do financiamento da política, 5) a crise de liderança. Necessário enfiar o dedo em cada uma dessas chagas.
Na década de 1990, ao dominar a inflação, o país deu um estupendo salto econômico. Estabeleceu a racionalidade dos ''fundamentos macroeconômicos''; isto deu alguma segurança para distribuir renda e promover investimentos. Foi o período do governo FHC e boa parte do governo Lula, este favorecido pelo choque de commodities. Percebeu-se, todavia, que não bastava: seria necessário avançar na agenda de produtividade; investir em infraestrutura, logística, educação e aperfeiçoamento do ambiente de negócios.
A Nova Matriz Econômica de Dilma deu com os burros n'agua ao imaginar que tudo pudesse ser feito unicamente pelas mãos do Estado e à parte de transformações das instituições políticas; não investiu em reformas e, pior, abusou-se até o esgotamento de mecanismos como o crédito e incentivos fiscais de toda ordem.
Hoje, de volta à agenda de 1990 — controlar os fundamentos macroeconômicos —, o país retrocedeu ao que deveria ser obrigação. Precisa, no entanto, da política para avançar numa agenda de reformas que possa ir além do simples ajuste fiscal. Essa agenda, é claro, fere interesses de toda a ordem e por isso requer a solução de outras crises.
O ''país da meia-entrada'' é a expressão que o economista Marcos Lisboa encontrou para descrever um sistema de enorme poder e privilégios corporativos. Desde, pelo menos 1936, se sabe — com Sérgio Buarque de Holanda — da presença e da força dos ''interesses particularistas''. Corporações que levam o maior valor da renda nacional, praticamente arrendando para si o Estado.
São diversos grupos que ficam com ''a parte do leão''; sejam eles empresários, sindicatos de empregados públicos, privados e patronais e até grupos específicos como juízes, promotores, fiscais, parlamentares, médicos, professores, estudantes… Todos os que conseguem arrancar uma lasquinha dos recursos públicos, com supostos direitos que inexistem — por que a escassez é a lei da natureza — para grupos sociais que vivem sem qualquer proteção.
Esse ''país da meia-entrada'' entrou em crise, sobretudo, por conta das transformações demográficas — mas também pelas próprias limitações de crescimento e expansão do modelo econômico. Resolver seu colapso demandaria ação de um sistema político eficaz, com visão de Estado e de longo prazo, pouco ou quase nada voltada para interesses particulares e fisiológicos. Eis outro ponto de crise.
Durante anos, teceu-se loas ao presidencialismo de coalizão — de fato, o sistema entregava aquilo que o Executivo pedia. Descobriu-se que, com os recursos de que dispunha, o governo fazia maioria no Congresso e aprovava demandas. Eureca! Admitia-se o fisiologismo como elemento estrutural do processo. Com efeito, alguma gordura, às vezes, e necessária para que o mecanismo flua. Com alternância de poder, o sistema tem seus momentos de ''reloading'' e se renova. Novos governos surgem, refazem acordos, redistribuem recursos e o pacto fisiológico renasce.
No entanto, não se considerou a qualidade da democracia que se fazia. Recursos públicos têm limites; voracidade fisiológica, não. O vício se expande e controla o organismo; sem negociação programática e limites morais, cargos e recursos transmutam-se em ''esquemas''; tudo passa a ser negociado no paralelo. Em quatro mandatos, a gordura fisiológica compromete as artérias do sistema; a graxa emperra o mecanismo. Vive-se o colapso da coalizão fisiológica.
Esquemas assim vorazes e sem freios comprometem a dinâmica de outro fator estrutural: a relação das empresas com a política por meio da corrupção — de algumas empresas, não todas. Acordos, engodos, fraudes, a corrupção sistêmica que financiava esse tipo de política e de políticos, todavia, agora diante de uma sociedade diferente.
A Constituição de 1988, de fato, gerou novas instituições. Em que pese excessos, o Ministério Público formado por jovens promotores, com o sangue nos olhos, surgiu como fato novo. Ao mesmo tempo, o judiciário que se remoçou e assumiu doutrinas distintas do tipo de direito que aqui se pratica; a Polícia Federal também conquistou autonomia. Trata-se do ''republicanismo'', que hoje o PT enxerga com desdém e origem de sua desgraça; ironicamente, sua maior contribuição.
Some-se a isto um sistema internacional assustado com o terror e mais vigilante com a corrupção e com lavagem de recursos; uma sociedade multimídia, fragmentada e, ao mesmo tempo, conectada em redes, tão plena de conflitos e disputas, indócil, que já não mais se pode cooptar. E está posta a bactéria que revela a sepse, a infecção generalizada do organismo, prenúncio da morte do sistema.
Tudo isto requer medidas profundas e urgentes. Todavia, a liderança política é o quinto elemento em colapso. Com diagnóstico correto, coragem e mediedade, habilidade política — o que inclui comunicação com a sociedade —, o corpo político poderia promover a reinvenção e seu próprio resgate; reorganizando o sistema, superando as diversas crises. Mas, é esta a principal crise do país, seu momentâneo deserto de lideranças.
Nem sempre foi assim, mas vive-se esta ausência de lideranças (no plural). Não se trata de apenas um líder solitário e messiânico, pleno de fúria e farisaísmo que, quando surgiu, foi sintoma e não solução. Mas, de grupos capazes compreender as crises, de representar e liderar setores, conduzir processos de reformulação. Não à toa, tudo tem ido parar no Supremo Tribunal Federal, que também vive sua crise de quadros e lideranças.
A entressafra é ruim, talvez uma geração perdida; um hiato a ser preenchido.
Dizem os chineses que as próprias crises geram inovação, lideranças, soluções. A história coloca problemas aos quais a própria história traz consertos e concertações. Plácidos, os chineses a tudo enxergam com perspectiva de décadas, séculos, milênios; doenças se curam com terapias longas. O diabo é que não somos chineses; não há tanto tempo nem paciência assim. Os males são males que consomem rapidamente.
Carlos Melo
Nossos marajás eleitos
O pano de fundo que todos cuidam juntos de omitir, imprensa à frente, é o que imediatamente desconfunde toda essa aparente confusão: o quão estupenda é a passagem do marajá por este vale de lágrimas e doce é a vida sem crise do nomeado ou do concurseiro que consegue saltar da nau dos que sustentam para a nau dos que são sustentados!
Tem um Brasil que precisa de reformas para sobreviver e tem um Brasil que não sobreviverá a reformas. Um onde o salário só sobe e outro onde salário não há. Um que tem todos os direitos adquiríveis e outro que não tem direito nenhum
Fernão Lara Mesquita
Palavra fácil
Nós somos um povo de palavra fácil. Os estrangeiros que aqui vêm ficam satisfeitos com nossa acolhida, damos atenção, somos camaradas e gentis com nossos visitantes. Já morei fora e creio poder afirmar que isso é raro acontecer em outros países.
Ao conversar com um morador do lugar onde estamos, temos a sensação – por vezes ilusória, é verdade – de conhecer melhor o país que visitamos.
Acima do Equador é raro iniciarmos um papo num bar, numa sala de espera, num trem. Aqui, basta às vezes uma palavra para iniciar uma relação cordial ou mesmo só uma maneira agradável de passar o tempo. Nisso o Brasil é mestre.
Mas nem sempre isso é uma qualidade. Às vezes pode ser um defeito e tanto.
Ao conversar com um morador do lugar onde estamos, temos a sensação – por vezes ilusória, é verdade – de conhecer melhor o país que visitamos.
Acima do Equador é raro iniciarmos um papo num bar, numa sala de espera, num trem. Aqui, basta às vezes uma palavra para iniciar uma relação cordial ou mesmo só uma maneira agradável de passar o tempo. Nisso o Brasil é mestre.
Mas nem sempre isso é uma qualidade. Às vezes pode ser um defeito e tanto.
Dou como exemplo a palavra fácil dos nossos togados. Andam falando demais os nossos juízes. Vejam o quanto fala o Ministro Gilmar Mendes que em muito boa hora nos recordou o grande Américo Pisca-Pisca, de quem é um lídimo representante.
Pensando nisso leio no Blog do Noblat um artigo cujo tema é “Outra forma de escolher ministro do STF”. Comenta o autor que está para ser votada uma proposta de emenda constitucional (PEC) do senador Lasier Martins (PSD-RS) “que altera mandato e forma de escolha dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). Ela sugere que uma comissão formada por sete importantes juristas indique, após 30 dias da abertura de uma vaga no STF, três nomes ao presidente da República para que escolha entre eles um novo ministro”.
Pouco entusiasmada com a proposta do senador gaúcho, esta autêntica representante do Reino da Palavra Fácil, sem a menor qualificação jurídica para tratar de assunto tão relevante, começa a esboçar um artigo sobre uma ideia que teve: os ministros do STF seriam escolhidos por concurso público! Animada, telefono para um grande amigo, meu afilhado de casamento, Procurador da República aposentado, e conto-lhe o que estou fazendo. Ele, como sempre paciente, ouve calado minhas palavras agitadas e depois pergunta: “Quem organizaria o concurso? Quem redigiria as perguntas? Quem corrigiria as provas e daria as notas?”.
Logo vi que não era por aí que teríamos um Supremo Tribunal Federal como já tivemos há alguns anos, com ministros calados, reservados, discretos, mais preocupados em julgar do que em serem julgados...
O que precisamos, e disso esta Palavra Fácil não abre mão, é de um Senado composto por senadores cultos, bem preparados e dispostos a uma sabatina mais preocupada com o Brasil do que com seus partidos políticos.
E tenho mais um palpite a dar: os candidatos a ministro do STF não fariam aquela romaria em busca de votos pelos gabinetes dos senadores.
O ideal é que só fossem visitar o Senado Federal no dia de sua sabatina...
Que tal? Concordam?
Pensando nisso leio no Blog do Noblat um artigo cujo tema é “Outra forma de escolher ministro do STF”. Comenta o autor que está para ser votada uma proposta de emenda constitucional (PEC) do senador Lasier Martins (PSD-RS) “que altera mandato e forma de escolha dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). Ela sugere que uma comissão formada por sete importantes juristas indique, após 30 dias da abertura de uma vaga no STF, três nomes ao presidente da República para que escolha entre eles um novo ministro”.
Pouco entusiasmada com a proposta do senador gaúcho, esta autêntica representante do Reino da Palavra Fácil, sem a menor qualificação jurídica para tratar de assunto tão relevante, começa a esboçar um artigo sobre uma ideia que teve: os ministros do STF seriam escolhidos por concurso público! Animada, telefono para um grande amigo, meu afilhado de casamento, Procurador da República aposentado, e conto-lhe o que estou fazendo. Ele, como sempre paciente, ouve calado minhas palavras agitadas e depois pergunta: “Quem organizaria o concurso? Quem redigiria as perguntas? Quem corrigiria as provas e daria as notas?”.
Logo vi que não era por aí que teríamos um Supremo Tribunal Federal como já tivemos há alguns anos, com ministros calados, reservados, discretos, mais preocupados em julgar do que em serem julgados...
O que precisamos, e disso esta Palavra Fácil não abre mão, é de um Senado composto por senadores cultos, bem preparados e dispostos a uma sabatina mais preocupada com o Brasil do que com seus partidos políticos.
E tenho mais um palpite a dar: os candidatos a ministro do STF não fariam aquela romaria em busca de votos pelos gabinetes dos senadores.
O ideal é que só fossem visitar o Senado Federal no dia de sua sabatina...
Que tal? Concordam?
Quem resolve o que é melhor para o país?
Sempre que a Justiça faz um papelão, alguém se lembra do nome de Oliver Wendell Holmes Junior, que fez parte da Suprema Corte americana entre 1902 e 1932. Holmes, que se notabilizou pelo espírito prático e despretensioso, gostava de repetir que juiz não faz justiça – juiz aplica a lei. Muito simples e muito direto. Um livro lançado em 2009, Our corrupt legal system (que poderíamos traduzir por Nossa Justiça corrupta ou Nosso Direito corrompido), escrito pelo jornalista australiano Evan Whitton, recupera uma passagem memorável e bastante instrutiva de Oliver Holmes. Consta que, certa feita, alguém lhe pediu que fizesse justiça.
Ao ouvir tais palavras, ele atalhou o interlocutor:
Agora mesmo, depois do fatídico julgamento do Tribunal Superior Eleitoral que decidiu absolver a chapa Dilma-Temer das acusações de abuso de poder econômico nas eleições de 2014, estamos novamente às voltas com o velho assunto. Outra vez, o dilema parece ser o mesmo de sempre: entre salvar a pátria e aplicar a lei, os meritíssimos parece que se atrapalham e acabam não fazendo nem uma coisa nem outra. Ô Justiça temperamental, essa nossa.
Basta ver o que disseram dois dos togados que participaram do julgamento no TSE, Luiz Fux e Gilmar Mendes. Não são dois juízes quaisquer. Tanto Fux quanto Mendes integram também o Supremo Tribunal Federal, que é a Suprema Corte brasileira, ou seja, o que eles pensam sobre Direito e sobre aplicação da lei é matéria da maior relevância para todos os cidadãos brasileiros, sem exceção.
Comecemos pelo que disse Luiz Fux. Como você bem sabe, ele votou pela condenação da chapa Dilma-Temer, mas sua posição foi derrotada por 4 a 3. Pois bem. No dia 12 de junho, segunda-feira passada – depois do julgamento, portanto –, ele compareceu a um seminário para empresários e representantes do mercado financeiro, em São Paulo, e resolveu falar sobre as razões que o levaram a votar como votou. Ao microfone, Fux se abriu:
– Não disputei vaidades. Pensei no que era melhor para o país.
Então está ótimo. Fiquemos com isso. Antes de qualquer outra consideração, porém, mudemos de ministro. Passemos para o que declarou Gilmar Mendes, que fez parte do mesmo julgamento. Na mesma segunda-feira, em entrevista à jornalista Mônica Bergamo, do jornal Folha de S.Paulo, Mendes emitiu um enunciado análogo ao de Fux, mas com o propósito oposto (para ele, Dilma e Temer são inocentes e, graças a seu voto, de desempate, a chapa terminou absolvida):
– Queriam que o tribunal decidisse essa questão política, lançando o país em um quadro de incógnita.
Não precisamos de nenhuma hermenêutica mais mirabolante para verificar que os dois magistrados, Luiz Fux e Gilmar Mendes, alegam ter pensado no bem do Brasil, mas há uma diferença entre eles. O primeiro acredita que condenar a chapa Dilma-
Temer seria o melhor para o Brasil. O segundo alega que esse veredicto lançaria o Brasil “em um quadro de incógnita”.
Notemos como é pitoresca nossa triste situação. Os dois ministros dizem praticamente a mesma coisa, mas os dois dizem coisas antagônicas. Dizem a mesma coisa porque os dois parecem estar convencidos de que a função do juiz é “fazer o que é melhor para o país”, ou, em outros termos, proteger o Brasil porque, sem a proteção das mais altas autoridades do Poder Judiciário, o pobre Brasil pode ser “lançado num quadro de incógnita”. E dizem o oposto um do outro porque, para um, Luiz Fux, a cassação de Dilma Rousseff e de Michel Temer seria o melhor para o Brasil, enquanto para o outro, Gilmar Mendes, a absolvição de Dilma Rousseff e de Michel Temer é que é ótimo para o país. Entendeu bem agora como são paradoxais os desígnios da Justiça?
Em tempo, juízes fazem, sim, justiça – desde que apliquem a lei com sabedoria. Fora isso, algum juiz se lembrou de dizer que, numa democracia, quem resolve o que é melhor para o país são os eleitores e que tribunais não são palanques? Data venia, Excelências, data a máxima venia.
Ao ouvir tais palavras, ele atalhou o interlocutor:
– Esse não é o meu serviço. O meu trabalho é aplicar a lei. (Em inglês, a fala é mais saborosa: “That is not my job. My job is to play the game according to the rules”.)
Não seria ruim se os magistrados do Brasil se lembrassem dessa lição elementar, ao menos de vez em quando. Seria uma boa maneira de variar a cena judiciária a que temos de assistir o tempo todo, com jurisconsultos que se dão ares de estadistas e outros que se veem como salvadores da pátria. Em lugar de aplicar a lei, em lugar de abrir mão de estrelismos, preferem livrar o país dos dragões que o espreitam.
Não seria ruim se os magistrados do Brasil se lembrassem dessa lição elementar, ao menos de vez em quando. Seria uma boa maneira de variar a cena judiciária a que temos de assistir o tempo todo, com jurisconsultos que se dão ares de estadistas e outros que se veem como salvadores da pátria. Em lugar de aplicar a lei, em lugar de abrir mão de estrelismos, preferem livrar o país dos dragões que o espreitam.
Basta ver o que disseram dois dos togados que participaram do julgamento no TSE, Luiz Fux e Gilmar Mendes. Não são dois juízes quaisquer. Tanto Fux quanto Mendes integram também o Supremo Tribunal Federal, que é a Suprema Corte brasileira, ou seja, o que eles pensam sobre Direito e sobre aplicação da lei é matéria da maior relevância para todos os cidadãos brasileiros, sem exceção.
Comecemos pelo que disse Luiz Fux. Como você bem sabe, ele votou pela condenação da chapa Dilma-Temer, mas sua posição foi derrotada por 4 a 3. Pois bem. No dia 12 de junho, segunda-feira passada – depois do julgamento, portanto –, ele compareceu a um seminário para empresários e representantes do mercado financeiro, em São Paulo, e resolveu falar sobre as razões que o levaram a votar como votou. Ao microfone, Fux se abriu:
– Não disputei vaidades. Pensei no que era melhor para o país.
Então está ótimo. Fiquemos com isso. Antes de qualquer outra consideração, porém, mudemos de ministro. Passemos para o que declarou Gilmar Mendes, que fez parte do mesmo julgamento. Na mesma segunda-feira, em entrevista à jornalista Mônica Bergamo, do jornal Folha de S.Paulo, Mendes emitiu um enunciado análogo ao de Fux, mas com o propósito oposto (para ele, Dilma e Temer são inocentes e, graças a seu voto, de desempate, a chapa terminou absolvida):
– Queriam que o tribunal decidisse essa questão política, lançando o país em um quadro de incógnita.
Não precisamos de nenhuma hermenêutica mais mirabolante para verificar que os dois magistrados, Luiz Fux e Gilmar Mendes, alegam ter pensado no bem do Brasil, mas há uma diferença entre eles. O primeiro acredita que condenar a chapa Dilma-
Temer seria o melhor para o Brasil. O segundo alega que esse veredicto lançaria o Brasil “em um quadro de incógnita”.
Notemos como é pitoresca nossa triste situação. Os dois ministros dizem praticamente a mesma coisa, mas os dois dizem coisas antagônicas. Dizem a mesma coisa porque os dois parecem estar convencidos de que a função do juiz é “fazer o que é melhor para o país”, ou, em outros termos, proteger o Brasil porque, sem a proteção das mais altas autoridades do Poder Judiciário, o pobre Brasil pode ser “lançado num quadro de incógnita”. E dizem o oposto um do outro porque, para um, Luiz Fux, a cassação de Dilma Rousseff e de Michel Temer seria o melhor para o Brasil, enquanto para o outro, Gilmar Mendes, a absolvição de Dilma Rousseff e de Michel Temer é que é ótimo para o país. Entendeu bem agora como são paradoxais os desígnios da Justiça?
Em tempo, juízes fazem, sim, justiça – desde que apliquem a lei com sabedoria. Fora isso, algum juiz se lembrou de dizer que, numa democracia, quem resolve o que é melhor para o país são os eleitores e que tribunais não são palanques? Data venia, Excelências, data a máxima venia.
Enquanto Rio privatiza, por que Paris, Berlim e outras 265 cidades reestatizaram saneamento?
Enquanto iniciativas para privatizar sistemas de saneamento avançam no Brasil, um estudo indica que esforços para fazer exatamente o inverso - devolver a gestão do tratamento e fornecimento de água às mãos públicas - continua a ser uma tendência global crescente.
De acordo com um mapeamento feito por onze organizações majoritariamente europeias, da virada do milênio para cá foram registrados 267 casos de "remunicipalização", ou reestatização, de sistemas de água e esgoto. No ano 2000, de acordo com o estudo, só se conheciam três casos.
Satoko Kishimoto, uma das autoras da pesquisa publicada nesta sexta-feira, afirma que a reversão vem sendo impulsionada por um leque de problemas reincidentes, entre eles serviços inflacionados, ineficientes e com investimentos insuficientes. Ela é coordenadora para políticas públicas alternativas no Instituto Transnacional (TNI), centro de pesquisas com sede na Holanda.
"Em geral, observamos que as cidades estão voltando atrás porque constatam que as privatizações ou parcerias público-privadas (PPPs) acarretam tarifas muito altas, não cumprem promessas feitas inicialmente e operam com falta de transparência, entre uma série de problemas que vimos caso a caso", explica Satoko à BBC Brasil.
O estudo detalha experiências de cidades que recorreram a privatizações de seus sistemas de água e saneamento nas últimas décadas, mas decidiram voltar atrás - uma longa lista que inclui lugares como Berlim, Paris, Budapeste, Bamako (Mali), Buenos Aires, Maputo (Moçambique) e La Paz.
A tendência, vista com força sobretudo na Europa, vai no caminho contrário ao movimento que vem sendo feito no Brasil para promover a concessão de sistemas de esgoto para a iniciativa privada.
O BNDES vem incentivando a atuação do setor privado na área de saneamento, e, no fim do ano passado, lançou um edital visando a privatização de empresas estatais, a concessão de serviços ou a criação de parcerias público-privadas.
À época, o banco anunciou que 18 Estados haviam decidido aderir ao programa de concessão de companhias de água e esgoto - do Acre a Santa Catarina.
O Rio de Janeiro foi o primeiro se posicionar pela privatização. A venda da Companhia Estadual de Água e Esgoto (Cedae) é uma das condições impostas pelo governo federal para o pacote de socorro à crise financeira do Estado.
A privatização da Cedae foi aprovada em fevereiro deste ano pela Alerj, gerando controvérsia e protestos no Estado. De acordo com a lei aprovada, o Rio tem um ano para definir como será feita a privatização. Semana passada, o governador Luiz Fernando Pezão assinou um acordo com o BNDES para realizar estudos de modelagem.
Satoko e sua equipe começaram a mapear as ocorrências em 2007, o que levou à criação de um "mapa das remunicipalizações" em parceria com o Observatório Corporativo Europeu.
O site monitora casos de remunicipalização - que podem ocorrer de maneiras variadas, desde privatizações desfeitas com o poder público comprando o controle que detinha "de volta", a interrupção do contrato de concessão ou o resgate da gestão pública após o fim de um período de concessão.
A análise das informações coletadas ao longo dos anos deu margem ao estudo. De acordo com a primeira edição, entre 2000 e 2015 foram identificados 235 casos de remunicipalização de sistemas de água, abrangendo 37 países e afetando mais de 100 milhões de pessoas.
Nos últimos dois anos, foram listados 32 casos a mais na área hídrica, mas o estudo foi expandido para observar a tendência de reestatização em outras áreas - fornecimento de energia elétrica, coleta de lixo, transporte, educação, saúde e serviços sociais, somando um total de sete áreas diferentes.
Em todas esses setores, foram identificados 835 casos de remunicipalização entre o ano de 2000 e janeiro de 2017 - em cidades grandes e capitais, em áreas rurais ou grandes centros urbanos. A grande maioria dos casos ocorreu de 2009 para cá, 693 ao todo - indicando um incremento na tendência.
O resgate ou a criação de novos sistemas geridos por municípios na área de energia liderou a lista, com 311 casos - 90% deles na Alemanha.
A retomada da gestão pública da água ficou em segundo lugar. Dos 267 casos, 106 - a grande maioria - foram observados na França, país que foi pioneiro nas privatizações no setor e é sede das multinacionais Suez e Veolia, líderes globais na área.
O domínio da narrativa e a democracia tutelada
Desde que a maré mudou para os lados do PT, seus seguidores se vêm queixando da implantação de um Estado de exceção. Estado de exceção é geralmente invocado por aqueles que se julgam vítimas de uma violação sistemática de seus interesses, sejam tais queixas legal ou moralmente fundadas ou não.
O que pretendo discutir neste artigo não é a validade ou não da narrativa lulista, mas o que chamarei de Estado de exceções, condição sine qua non dos regimes autoritários. E das democracias em risco. Democracia em risco é aquela em que o Estado Democrático de Direito se encontra perfurado por um número tão grande e tão disseminado de exceções que estas já não servem para confirmar, mas, sim, para se contraporem à regra.
Existe um limite, entretanto, para que a democracia representativa, que adotamos em todas as Constituições, desde a origem da República, sobreviva a esse risco. O limite é ultrapassado quando o arbítrio vai além das instituições republicanas e atinge a vida privada dos cidadãos, sua liberdade, seus bens e sua honra.
Recentemente a empresa de um amigo foi acusada de ação criminosa por um membro de uma dessas grandes empresas globais, chefiadas por famílias de criminosos confessos, cevados e elevados à grandeza com o dinheiro dos nossos impostos. Seu advogado o alertou que, se estivéssemos num Estado de Direito, a documentação que reunira evitaria que qualquer ação contra a empresa prosperasse, mas, nas atuais circunstâncias, nada pode ser garantido.
Quando, a exemplo da “loucura” de Hamlet, esses golpes têm método, isto é, seguem uma linha sistemática, o risco de colapso do Estado de Direito sofre um “salto qualitativo” e passa de uma democracia representativa para uma democracia tutelada. Creio ser possível demonstrar o método que orienta essas brechas abertas no devido processo legal e comprovar como a nossa democracia representativa está correndo o risco de se tornar uma democracia tutelada.
Quanto ao método, está estampado nos ataques sistemáticos à letra e ao espírito da Constituição, que ora deve ser alterada a bel-prazer, ora deve ser simplesmente esquecida. Ataques também são feitos contra o governo representativo enquanto forma de governo e à política em geral como ação organizada legítima nas sociedades livres. A ideia, repetida à exaustão, de que a letra da lei deve ser distorcida ao sabor do desejo de supostas maiorias e de que a “hermenêutica” dos magistrados não pode ser limitada pela literalidade da lei. A ideia de que os “políticos” são todos iguais e igualmente criminosos e que, portanto, a ação política é inerentemente delituosa. A ideia de que o Legislativo é ilegítimo e, portanto, não tem o direito de legislar contra a opinião douta da magistratura ou das corporações investigativas.
Tudo indica que o meticuloso desmonte das instituições da democracia representativa movido por Lula, quando tratou o Legislativo como um bando de picaretas, o Judiciário como uma corporação corrupta e inimiga do progresso, o Executivo como uma ação entre amigos e a imprensa como inimiga do povo, deu certo e corrompeu o próprio sentimento democrático da maioria da sociedade.
Quanto à tutela, ela ocorre quando uma instância não eleita – geralmente uma casta – tem a última palavra, acima da representação eleita e, portanto, acima da Constituição. Os casos mais evidentes de democracia tutelada são as democracias com qualificativo, como, por exemplo, as democracias “populares”. As eleições permanecem, as instituições tradicionais existem e funcionam, porém sob a tutela da instância revolucionária, partidária ou religiosa. A tutela consiste em que, toda vez que as instituições funcionam a contrapelo da narrativa correta, ainda que com o suporte da ordem legal, a instância tutelar revoga as dissonâncias e repõe tudo nos eixos.
No Brasil, vivemos décadas sob a tutela da espada. A Constituição tornou-se, então, um mero apêndice outorgado pelo governo militar. Na República Islâmica do Irã, a democracia também funciona, desde a revolução dos aiatolás, consagrada na Constituição de 1979, mas é tutelada, não pela espada, mas pela toga. O “guia supremo” tem sempre a última palavra, acima de todo o sistema político, porque tem o domínio da narrativa, a exemplo dos irmãos Castro, dos dirigentes supremos do partido/Estado chinês. Ele, e apenas ele, interpreta, em última instância, alguma palavra sagrada, seja da revolução, seja da profecia, seja da revelação.
A casta que detém o segredo da “hermenêutica”, a única interpretação autorizada da lei, tem o “domínio da narrativa”. Quem domina a narrativa prescinde de fatos e argumentos e se coloca acima dos direitos constitucionais básicos de todos os cidadãos. Mesmo que se mantenham eleições, e que representantes sejam eleitos para governar e legislar, a tutela prevalece sempre que, com apenas uma canetada, guias iluminados possam revogar ou ignorar os atos e decisões dos representantes eleitos.
Se quisermos evitar que nossa democracia representativa bascule definitivamente para uma democracia tutelada, é preciso resistir. E resistir, em primeiro lugar, a qualquer solução rápida e fácil que contrarie a letra da lei.
O que pretendo discutir neste artigo não é a validade ou não da narrativa lulista, mas o que chamarei de Estado de exceções, condição sine qua non dos regimes autoritários. E das democracias em risco. Democracia em risco é aquela em que o Estado Democrático de Direito se encontra perfurado por um número tão grande e tão disseminado de exceções que estas já não servem para confirmar, mas, sim, para se contraporem à regra.
Existe um limite, entretanto, para que a democracia representativa, que adotamos em todas as Constituições, desde a origem da República, sobreviva a esse risco. O limite é ultrapassado quando o arbítrio vai além das instituições republicanas e atinge a vida privada dos cidadãos, sua liberdade, seus bens e sua honra.
Pois bem, no Estado de Direito a Constituição se cumpre e se faz cumprir pelo Executivo, sendo resguardada pelo Judiciário. Grandes ou pequenas, as exceções à regra constitucional desferem outros tantos grandes e pequenos golpes contra a teia de direitos e deveres que garante a convivência pacífica nas sociedades políticas organizadas. Quando ocorrem ao acaso das paixões humanas, esses golpes podem ser corrigidos, mas não sem custos, difíceis de “precificar”.
Quando, a exemplo da “loucura” de Hamlet, esses golpes têm método, isto é, seguem uma linha sistemática, o risco de colapso do Estado de Direito sofre um “salto qualitativo” e passa de uma democracia representativa para uma democracia tutelada. Creio ser possível demonstrar o método que orienta essas brechas abertas no devido processo legal e comprovar como a nossa democracia representativa está correndo o risco de se tornar uma democracia tutelada.
Quanto ao método, está estampado nos ataques sistemáticos à letra e ao espírito da Constituição, que ora deve ser alterada a bel-prazer, ora deve ser simplesmente esquecida. Ataques também são feitos contra o governo representativo enquanto forma de governo e à política em geral como ação organizada legítima nas sociedades livres. A ideia, repetida à exaustão, de que a letra da lei deve ser distorcida ao sabor do desejo de supostas maiorias e de que a “hermenêutica” dos magistrados não pode ser limitada pela literalidade da lei. A ideia de que os “políticos” são todos iguais e igualmente criminosos e que, portanto, a ação política é inerentemente delituosa. A ideia de que o Legislativo é ilegítimo e, portanto, não tem o direito de legislar contra a opinião douta da magistratura ou das corporações investigativas.
Tudo indica que o meticuloso desmonte das instituições da democracia representativa movido por Lula, quando tratou o Legislativo como um bando de picaretas, o Judiciário como uma corporação corrupta e inimiga do progresso, o Executivo como uma ação entre amigos e a imprensa como inimiga do povo, deu certo e corrompeu o próprio sentimento democrático da maioria da sociedade.
Quanto à tutela, ela ocorre quando uma instância não eleita – geralmente uma casta – tem a última palavra, acima da representação eleita e, portanto, acima da Constituição. Os casos mais evidentes de democracia tutelada são as democracias com qualificativo, como, por exemplo, as democracias “populares”. As eleições permanecem, as instituições tradicionais existem e funcionam, porém sob a tutela da instância revolucionária, partidária ou religiosa. A tutela consiste em que, toda vez que as instituições funcionam a contrapelo da narrativa correta, ainda que com o suporte da ordem legal, a instância tutelar revoga as dissonâncias e repõe tudo nos eixos.
No Brasil, vivemos décadas sob a tutela da espada. A Constituição tornou-se, então, um mero apêndice outorgado pelo governo militar. Na República Islâmica do Irã, a democracia também funciona, desde a revolução dos aiatolás, consagrada na Constituição de 1979, mas é tutelada, não pela espada, mas pela toga. O “guia supremo” tem sempre a última palavra, acima de todo o sistema político, porque tem o domínio da narrativa, a exemplo dos irmãos Castro, dos dirigentes supremos do partido/Estado chinês. Ele, e apenas ele, interpreta, em última instância, alguma palavra sagrada, seja da revolução, seja da profecia, seja da revelação.
A casta que detém o segredo da “hermenêutica”, a única interpretação autorizada da lei, tem o “domínio da narrativa”. Quem domina a narrativa prescinde de fatos e argumentos e se coloca acima dos direitos constitucionais básicos de todos os cidadãos. Mesmo que se mantenham eleições, e que representantes sejam eleitos para governar e legislar, a tutela prevalece sempre que, com apenas uma canetada, guias iluminados possam revogar ou ignorar os atos e decisões dos representantes eleitos.
Se quisermos evitar que nossa democracia representativa bascule definitivamente para uma democracia tutelada, é preciso resistir. E resistir, em primeiro lugar, a qualquer solução rápida e fácil que contrarie a letra da lei.
O Brasil vai emergir da escuridão muito melhor
As descobertas da Lava Jato transformaram em casos de polícia o presidente Michel Temer e quatro dos cinco antecessores vivos. Só Fernando Henrique Cardoso ficou fora do pântano onde chapinham Lula, Dilma Rousseff, Fernando Collor e José Sarney, além de mais de 30 ministros ou ex-ministros de Estado, mais de dez governadores, quase 30 senadores, mais de 60 deputados federais e centenas de vigaristas coadjuvantes. Se o Supremo Tribunal Federal cumprir o seu dever com menos lentidão, a turma do foro privilegiado não demorará a engordar a população carcerária.
Já não são poucos os figurões da política transformados em vizinhos de cela de empresários especialistas em bandalheiras. Antonio Palocci, ex-ministro da Fazenda e ex-chefe da Casa Civil, tem tempo de sobra para trocar ideias com Marcelo Odebrecht, ex-presidente da usina de propinas milionárias, e João Vaccari, ex-tesoureiro nacional do PT. Perdeu recentemente a companhia de José Dirceu, libertado pela 2ª Turma do STF. Mas não demorará a rever o primeiro chefe da Casa Civil do governo Lula. Também seguem continuam encarcerados os ex-presidentes da Câmara Eduardo Cunha e Henrique Alves, o ex-governador do Rio Sérgio Cabral e vários destaques da Turma do Guardanapo.
Tantos números desoladores avisam que o Brasil vai ficar na UTI por muito tempo, certo? Errado: está cada vez mais saudável ─ graças à Lava Jato. A multidão de gatunos engaiolados ou na mira dos investigadores comprova que a Era da Canalhice está ferida de morte. Para que a nação devastada pelos poderosos patifes recuperasse a saúde, era preciso remover cirurgicamente o tumor da corrupção institucionalizada. O Código Penal agora vale para todos. São sempre escuras as horas que precedem a alvorada. O Brasil vai emergir da escuridão muito melhor.
Tantos números desoladores avisam que o Brasil vai ficar na UTI por muito tempo, certo? Errado: está cada vez mais saudável ─ graças à Lava Jato. A multidão de gatunos engaiolados ou na mira dos investigadores comprova que a Era da Canalhice está ferida de morte. Para que a nação devastada pelos poderosos patifes recuperasse a saúde, era preciso remover cirurgicamente o tumor da corrupção institucionalizada. O Código Penal agora vale para todos. São sempre escuras as horas que precedem a alvorada. O Brasil vai emergir da escuridão muito melhor.
Temor até da Noruega
PGR cogita moer Temer em suaves prestações
Num instante em que o governo prepara na Câmara o enterro da denúncia criminal que a Procuradoria fará contra Michel Temer, o procurador-geral da República Rodrigo Janot ameaça multiplicar o trabalho dos coveiros. Janot analisa a hipótese de protocolar no Supremo não uma, mas três denúncias contra o presidente da República. Significa dizer que, para salvar Temer, a Câmara terá de transformar o seu plenário num cemitério de denúncias.
Temer sempre se queixou da pressa de Janot. Diz que o procurador pisou no acelerador apenas para desmoralizá-lo. Reclama, por exemplo, da abertura de inquérito no Supremo antes mesmo que fosse periciado o áudio do diálogo que manteve com o delator Joesley Batista, no escurinho do Jaburu. Pois bem. Agora, Janot parece já não ter tanta pressa. O procurador fará uma denúncia na próxima semana. E pode fazer outras duas mais adiante.
Faz um mês que Temer vive atrás de um demônio para devolver a culpa pelos crimes que lhe são atribuídos. Janot tornou-se esse demônio de ocasião. Em resposta, o que o procurador-geral tenta fazer é demonstrar que Temer exerceu na plenitude o direito de escolher o seu próprio caminho para inferno. Confirmando-se a pretensão da Procuradoria, Temer será denunciado a prazo, em prestações nada suaves.
Faz um mês que Temer vive atrás de um demônio para devolver a culpa pelos crimes que lhe são atribuídos. Janot tornou-se esse demônio de ocasião. Em resposta, o que o procurador-geral tenta fazer é demonstrar que Temer exerceu na plenitude o direito de escolher o seu próprio caminho para inferno. Confirmando-se a pretensão da Procuradoria, Temer será denunciado a prazo, em prestações nada suaves.
''Com ou sem Temer, não há solução à vista para a crise'
O Brasil está parado devido à crise e, com ou sem o presidente Michel Temer, não há uma solução à vista, avalia o jurista alemão Jan Woischnik, diretor da Fundação Konrad Adenauer no Brasil.
Em entrevista à DW, Woischnik afirma que não vê nenhum nome que poderia substituir Temer. "Em eleições indiretas, os deputados e senadores poderiam acabar escolhendo um parlamentar num Congresso em que grande parte de seus membros é acusada de corrupção."
Em entrevista à DW, Woischnik afirma que não vê nenhum nome que poderia substituir Temer. "Em eleições indiretas, os deputados e senadores poderiam acabar escolhendo um parlamentar num Congresso em que grande parte de seus membros é acusada de corrupção."
O país está parado, como num bloqueio imposto a si mesmo. Os poderes Executivo e Legislativo se preocupam somente com si mesmos e em limitar os danos até agora sofridos pela Operação Lava Jato, enquanto o Judiciário se politiza – e esse círculo vicioso causa um prejuízo duradouro para a democracia brasileira. Está tudo parado por conta da grande crise que foi gerada com o início da Lava Jato. Esse bloqueio é muito perigoso, porque a crise não é algo pontual, mas já dura anos.Leia a entrevista
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