domingo, 27 de setembro de 2020

Quem se levanta?

Se eu não me levanto,
Se você não se levanta,
Se ele não se levanta,
Quem brandirá uma tocha de esperança nas trevas?

Atiq Rahimi, "As mil casas do sonho e do terror"

A nova política caducou

A tira que ilustra esta coluna, do talentoso quadrinista brasileiro Pietro Soldi, é a mais perfeita tradução do que a autodenominada “nova política”, que nunca teve nada de novo e em menos de dois anos se encontra em avançado estado de necrose, legou ao País.

Brasileiros de Norte a Sul elegeram para o Executivo e o Legislativo vários espécimes de jumentos vendados, achando que revolucionariam a forma de fazer política. Mas o resultado é que estamos ensopados de café quente e sem muito sinal de que vamos conseguir reerguer a mesa que tombou e colar a louça que foi feita em cacos.

Olhemos a situação do Rio de Janeiro e de Santa Catarina. O primeiro vinha de uma sucessão de larápios que só não roubaram as pedras do calçadão de Copacabana. O segundo tinha alguns dos melhores indicadores econômicos do País e saúde fiscal relativamente boa.



Mas os eleitores dos dois Estados acharam por bem eleger completos desconhecidos, que entraram na política pela porta fácil do discurso anticorrupção, atrelados ao bolsonarismo e surfando na onda lavajatista.

Resultado: menos de dois anos depois, Wilson Witzel, cujo nome 90% dos fluminenses não sabiam nem pronunciar quando nele votaram, e Carlos Moisés, cuja foto até hoje eu não saberia reconhecer, estão a caminho do impeachment.

De Bolsonaro não é preciso falar. Já mencionei seu discurso na ONU, mais uma exibição que não deixou nada a dever à tirinha do Pietro.

E nos Parlamentos e na vida partidária, qual o saldo da tal nova política? Não muito superior. Há, sim, excelentes novos parlamentares, da esquerda à direita.

Os movimentos não partidários, como Agora, Livres, Renova BR e Acredito, aliás, contribuíram de forma mais significativa para isso que os partidos, pois enfrentaram a necessidade de formação desses jovens líderes.

Quanto às siglas, seguem perdidas na geleia geral ideológica e programática, inclusive as novas. Basta ver o episódio Novo versus Filipe Sabará. O candidato passou no tal processo seletivo, mas em seguida seu currículo acadêmico foi desmentido, se descobriu uma diferença de nada menos que R$ 3.985.000 em sua declaração de bens, e o barraco começou. Diante de tantas inconsistências, Sabará recorreu à seguinte explicação: a “ala esquerdista” (!) do Novo, representada por João Amoêdo (!!), o estaria perseguindo. Seria até engraçado, se não fosse patético. Dá-lhe coice com olhos vendados!

A divisão interna do Novo é mais um sinal claro de que não se mudam as práticas políticas apenas com slogans, sapatênis e ideias naive – como a de que não usar Fundo Partidário é sinal de virtude por si só.

Renovação política se faz com projetos claros, definição de políticas públicas e compreensão dos problemas do Brasil e dos Estados e de que legisladores têm mais a fazer que filminhos ridículos no TikTok ou Instagram.

Que 2020 comece a corrigir 2018 e que tiremos a venda do jumento e elejamos bons políticos para fazer política. Olha só que ideia disruptiva!

O código da fome

Dá para imaginar o que é isso? Ficar dias e dias com o estômago a ronco, aquela dor aguda, lancinante, enganada às vezes a caldo de folha ou na maisena insossa de farinha com água e nada mais? Nem aroma para consolo? Sentado no declive do chão de pedra, proximidade do teto de palha, parede de barro e pau, que ameaça todo dia cair, no castigo do sol e da chuva, com o odor incessante de esgoto a céu aberto, em um ambiente onde a miséria espreita como sina, dividir a parca ração do dia é quase um privilégio de poucos ali — cenário mais extenso e predominante Brasil afora do que imaginam os benfejados pela sorte.

Quem não está lá nem desconfia da sinopse de angústias desses humildes desvalidos, o contingente populacional classificado por institutos oficiais na condição de carência alimentar extrema, consumidos pela privação, cujas vidas são uma experiência de risco em alta cadência, rotineiramente. As crianças desnutridas, que mais sofrem, com seus corpos miúdos, pernas mirradas, braços de tão magros estendidos como asas sem serventia, remela nos olhos entre insetos, reclamam no choro instintivo (manhã, tarde e noite) por um prato de alimento sólido. Uma refeição honesta, quem sabe! No amplo universo dos desesperados sociais brasileiros, viver com fome é realidade constante.

Ao menos 10,3 milhões deles estão no momento sem nada para comer, segundo a mais recente Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) do IBGE, divulgada semana passada. Uma barbaridade! Número que tende a piorar com a pandemia, depois de um incremento recente de mais de 3,1 milhões de necessitados na mesma condição, agravando um quadro que já é vergonhoso e inaceitável no País que se autoproclama “celeiro do mundo”, detentor do maior cinturão verde planetário, onde tudo que planta dá, com área cultivável de dimensões continentais.



A verdade do evento trágico é deveras pior. Atualmente, segundo o levantamento, 36,7% dos lares brasileiros — isso mesmo! — têm dificuldade para garantir qualidade e quantidade de alimentos a todos os integrantes da família. Atente para o drama: está se falando de mais de um terço, quase a metade das casas no País, onde falta comida suficiente para seus membros. É suportável aceitar tamanha indigência? Talvez até para não chocar em demasia uma sociedade acostumada ao descaso, os famintos são, eufemisticamente, enquadrados em três níveis de “insegurança alimentar” — todas elas abomináveis, mas que tendem a abrandar o choque de quem não compreende a dimensão do desastre social, de proporções épicas, agora em curso.

Na escala, existem as famílias que não podem comprar o suficiente para sustento e passam aperto. No pelotão intermediário é considerado restrição alimentar “moderada” o constrangedor estratagema de pular refeições. E no grau extremo, não há mesmo nada o que comer, muitas vezes por dias, e a mendicância, apelando nas ruas, segue como -ultimo subterfúgio. É desolador aceitar, mas a fome por aqui adquire rosto e move um Brasil mais comum do que muitos imaginam.

Por que falhamos em providências essenciais e prementes para boa parte da população? Como pudemos chegar a esse grau de desamparo? A face mais arrasadora e ultrajante da calamidade alimentar está no contraste da consciência de líderes, senhores do Estado, que negam o destino comum a tantos brasileiros. O mandatário Jair Bolsonaro, por exemplo, é o primeiro a desdenhar do infortúnio: “Falar que se passa fome no Brasil é uma grande mentira”, disse recentemente, desconsiderando as evidências e até chacoteando dos desvalidos. “Você não vê gente, mesmo pobre, pelas ruas, com físico esquelético”. Provavelmente, o parvo chefe da Nação não está frequentando as ruas que devia na condição que o cargo lhe exigiria.

Todos sabem, sanha corrente, Bolsonaro não desperdiça uma chance de errar, como confirmam as baboseiras lançadas em qualquer direção. Foi agraciado pelo Congresso com uma política de transferência de renda de R$ 600, que não era seu intento e acabou encampando como ideia sua para fins eleitoreiros, capaz de, na esteira do isolamento, conter em parte a extenuante procissão de miséria dos pés-descalços, descamisados, desabrigados indolentes da paisagem nacional.

Mas agora se depara na encruzilhada de como resolver um problema em crescente avanço. Após enterrar, espetaculosamente, o “Renda Brasil”, maquina alternativas, nem todas claras, que passam pelo resgate da famigerada CPMF para fazer brotar verba suficiente. É bom desconfiar da produção de gambiarras no Planalto Central.

Quando o capitão Bolsonaro tem uma ideia, convém trancá-lo no banheiro e esperar que passe. O vendaval de aflitos não pode esperar muito tempo, na crueza da escassez, para saciar suas necessidades.

Na calada da noite, nos barracos construídos ilegalmente ou na cobertura de papelão cercada por pneus velhos, debaixo do viaduto, em palafitas rudimentares, tentando sobreviver por meios insanos, são seres humanos, cidadãos, favelados ou não, invasores de terras e de imóveis abandonados, “pobres e paupérrimos” — na lembrança, essa sim providencial, do presidente — que acalentam e esperam diariamente resposta para a fome. João, Genésia, José, Francisca, são tantos os nomes e rostos dessa tragédia que machuca até encará-los. O pequeno Gerson, da comunidade paulista de Paraisópolis, deitado no chão, numa miserável confraternização com seu vira-lata, é todo dia engabelado pela mãe para sair às brincadeiras, tentando driblar a fome. É dor que não passa assistir à cena.

Qualquer um, no mínimo de discernimento humanitário, vergaria lágrimas. A miséria mostra seu código de necessidade mais evidente na fome. Ela atinge e faz vítimas em escala bíblica no Norte e no Nordeste, que abrigam a parcela prevalente dos domicílios com privação alimentar. As carências, no caso, são mais sentidas em áreas rurais, regiões ribeirinhas, lares chefiados por mulheres, por negros ou pessoas autodeclaradas pardas.

É a fome reforçando o preconceito. Perceba, também, o tamanho da frequência do drama enfrentado pelo rebento Gerson, acima citado: metade das crianças com menos de cinco anos (6,5 milhões ao todo no País) cresce em residências com algum grau de insegurança alimentar. O que tamanha chaga representa no desenvolvimento do País a maioria desconfia. A alimentação adequada é condição “sine qua non” para o aprendizado e desempenho escolar. Parte majoritária do público de pequeninos encontrava o que comer nas escolas e entidades de ensino.

Com o fechamento dos estabelecimentos, em meio à quarentena, nem isso. A merenda de crianças e adolescentes sumiu da rotina e a leitura lógica sinaliza que a pandemia intensificou a vulnerabilidade dos que não comem, numa escalada sensivelmente agravada pelo aumento conjuntural dos preços dos alimentos. Na pororoca de situações inesperadas, todas conspirando para o mal, o desperdício de bilhões de sacas de grãos, frutas e vegetais — que se deixam cair nos transportes de safra, nos equívocos de escoamento ou de armazenamento indevido — parece inconcebível e poderia reparar ao menos parte do drama.

Restam ainda a autoestima e esperança dos desvalidos e o caminho da solidariedade, capaz de fazer milagres. Há ainda um Brasil capaz de oferecer um prato a mais para uma boca a mais. Não apenas por meio das entidades filantrópicas e mutirões assistenciais. Cada um pode e deve fazer a sua parte, começando ontem, para legitimar a erradicação dessa doença da fome, que teimou em maltratar logo o povo habitante do celeiro do mundo.

No desgoverno do Brasil só cabe a agenda eleitoral

Deus fez chover em Mato Grosso um dia depois da visita do presidente Jair Bolsonaro, festejou o general Luiz Eduardo Ramos, ministro da Secretaria de Governo. “Deus está com nosso presidente e continuará a abençoar o Brasil”, acrescentou. Os incêndios na Amazônia e no Pantanal são fenômenos naturais e nenhuma ação humana pode evitá-los, garantiu outro general, Augusto Heleno, ministro do Gabinete de Segurança Institucional. As críticas à política ambiental brasileira, segundo ele, são ligadas a um “evidente” movimento internacional para derrubar o governo. O chefe dos generais, presidente do país abençoado, também cuidou do fogo, pouco depois, em discurso na Assembleia-Geral da ONU. Na Amazônia só índios e caboclos fazem queimadas, mas na mata úmida nenhum incêndio se propaga, assegurou.



É isso mesmo o Executivo brasileiro? É mais que isso – e muito menos que um governo. É preciso acabar com a erotização das crianças e com a discussão de gênero nas escolas, disse o ministro da Educação, Milton Ribeiro, em entrevista ao Estado. Mais sociável que Abraham Weintraub, o novo ministro reafirma prioridades de seu antecessor e também os valores e o padrão – por assim dizer – cultural de seu líder comum, o presidente da República. Nenhuma surpresa, portanto, quando o novo ministro se refere a homossexuais como produtos de famílias desajustadas e descreve a desigualdade como “problema do Brasil”, fora da responsabilidade de sua pasta.

Educação, igualdade e liberdade são temas correlacionados há mais de dois séculos, como comprovam as Cinco Memórias sobre a Instrução Pública, de Condorcet. Um tratamento recente do assunto aparece no livro Capital et Idéologie, de Thomas Piketty, publicado em 2019. A difusão de conhecimentos e o acesso às qualificações são apontados por ele como fatores primordiais, em longo prazo, para a redução das desigualdades em cada país e em âmbito internacional (páginas 622-623). Condorcet abre seu livro, editado no fim do século 18, atribuindo à sociedade o dever de proporcionar instrução ao povo “como meio de tornar real a igualdade de direitos”.

Mas desigualdade, segundo o ministro da Educação, é problema do Brasil. Não envolvam seu ministério nessa história. Ideia estranha? Nem tanto, para quem acompanha as ações do grupo chefiado, em Brasília, pelo presidente Jair Bolsonaro. Problemas do Brasil – ou da maior parte dos brasileiros – nunca foram incluídos na agenda normal do Palácio do Planalto, desde janeiro de 2019. De fato, nem mesmo houve mais que uma pauta de interesses bolsonarianos.

O combate à pandemia, tem repetido o presidente, foi delegado a governadores e prefeitos pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Isso é falso, como se observou muitas vezes. Decisões sobre isolamento e etapas de abertura foram atribuídas aos poderes estaduais e municipais, mas o Judiciário apontou a “competência concorrente” dos três níveis, sem isentar de responsabilidade a administração federal.

Evitar essa responsabilidade combina com a negação do problema. Depois de qualificar a covid-19 como gripezinha, o presidente se opôs ao isolamento e classificou como inútil o uso da máscara, objeto de piada em sua transmissão da última quinta-feira, em que aparece ao lado do ministro do Meio Ambiente. No fim, os dois tentam ridicularizar o toque de cotovelos como cumprimento.

Covid-19 é assunto dos outros. Devastação ambiental é história inventada por inimigos do Brasil. Isso inclui brasileiros a serviço de interesses estrangeiros, como dirigentes dos maiores bancos privados nacionais, cientistas famosos, membros de organizações ambientalistas e líderes da ala mais moderna e mais produtiva do agronegócio.

Dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e estudos do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) são apontados como contrários ao discurso oficial. Mas nada disso importa. Gente empenhada em cobrar ações de quem exerce o poder só atrapalha.

Por mais de um ano o presidente desprezou a economia, deixando o assunto para o “posto Ipiranga”, o ministro Paulo Guedes. O impacto da pandemia nos negócios forçou a revisão de padrões. Foi preciso pensar nas pequenas empresas, nos assalariados e até nos muito pobres. Antes, nenhuma dessas categorias havia estado entre as prioridades. Sem operações de socorro, no entanto, nem os empresários fiéis a Bolsonaro ficariam livres de grandes perdas.

Essas operações, semelhantes às implantadas em dezenas de países, atenuaram a crise e tornaram o presidente mais popular até no Nordeste, região dominada, até aí, por seus adversários. A ajuda aos pobres virou parte da estratégia da reeleição, item número um da pauta presidencial. Por que não criar uma Bolsa Família com marca própria? Melhor ainda se um congressista, como o relator do Orçamento, cuidar do assunto, assumindo o custo de mexer em verbas muito apertadas.

Teria o presidente chegado até aí se tivesse perdido tempo governando? Brasil acima de tudo, Deus acima de todos e reeleição em primeiro lugar.

Pensamento do Dia

 


O grito desaparecido

Faz semanas que o louco não passa na avenida. Não à hora em que passava, no meio da madrugada, se valendo do silêncio do bairro para redobrar o alcance do seu grito. Não morreu de frio, isso é certo, porque, nas noites mais severas de inverno, ele ainda passava, sensivelmente mais louco, mais desesperado, nos amaldiçoando um por um. Então, uma noite, ele não veio. Outra noite e nenhum sinal dele. E daí para uma semana, duas semanas, três. Tem isso relação com as sirenes de polícia no lugar dos gritos? Ou tem a ver com uma pandemia desacreditada, o vírus correndo solto? Ou será que, num dos seus surtos circulantes, o louco topou com um desses neo-nazis de rua, caçadores de pretextos? O fato é que, depois de desaparecer, ele ressurgiu apenas uma vez, e à luz do dia, abafado pelo trânsito da avenida. Desde então se faz notar por sua falta. É sua falta que grita. Como se tivesse levado com ele, com seu berro animal, a urgência de uma revolta onde cabe tudo o que dói até o ponto do insuportável, uma revolta que não espera ocasião nem negociação: rebenta, revolta-se. Como se tivesse deixado conosco uma paz estranhíssima e imerecida, que fica ainda mais absurda quando cantam os passarinhos. Todos os sons da indignidade escamoteados, os sons da violência bem-sucedida escondidos. À falta do louco, nós do bairro temos essa quase alucinação coletiva de uma calma com passarinhos. Que ele volte, o nosso louco, o nosso bode-expiatório, para nos amaldiçoar como merecemos, e também para drenar os nossos gritos, e fazê-los circular pela cidade, como prévia dos jornais do dia, todo dia.

Mariana Ianelli

Chauvinismo e xenofobia

Nicolas Chauvin foi um soldado francês condecorado por Napoleão Bonaparte por sobreviver a vários combates, severamente mutilado, depois de ser ferido 17 vezes. Tornou-se uma lenda para os franceses, até que as comédias escrachadas de vaudeville começaram a ridicularizar sua ingenuidade e fanatismo, dando origem ao termo que hoje é muito utilizado para caracterizar o sentimento ultranacionalista que leva os indivíduos a odiar as minorias e perseguir os estrangeiros. Na década de 1970, as feministas dos Womens`s Lib deram uma conotação mais abrangente ao termo, ao chamar os machistas de “porcos chauvinistas”.

Por causa de seu discurso de ontem na Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), o presidente Jair Bolsonaro entrou para o rol dos líderes políticos chauvinistas da atualidade, o que não é bom para nenhum chefe de Estado nem para o Brasil, em particular. Seu discurso nacionalista não chegou a ser histriônico, mas fugiu à verdade e ignorou a realidade, sendo muito contestado interna e externamente. Além do chauvinismo, Bolsonaro revelou certa xenofobia, ao culpar os caboclos e índios pelos incêndios na Amazônia e Pantanal.

Xenofobia é outra palavra muito feia. Refere-se ao sentimento de hostilidade e ódio manifestado contra pessoas por elas serem estrangeiras ou serem enxergadas como estrangeiras. Trata-se de um preconceito social muito comum no mundo por causa do fluxo de migrações. Árabes e muçulmanos sofrem com isso na Europa, mexicanos e latinos nos Estados Unidos. Geralmente, a xenofobia está associada ao racismo. A forma como Bolsonaro trata os índios no Brasil sempre teve essa conotação xenófoba; a novidade é o preconceito que revelou na ONU em relação aos caboclos brasileiros.


Certos fenômenos da vida brasileira não se explicam pela sociologia ou pela ciência política, somente podem ser compreendidos quando nos socorremos da antropologia. A eleição de Bolsonaro, por exemplo, sua capacidade de se amalgamar aos evangélicos e capturar o sentimento de preservação da família unicelular patriarcal nas camadas mais pobres da população, ameaçada pelas dificuldades econômicas e as mudanças de costumes. Em contrapartida, Bolsonaro não consegue entender o nosso sincretismo religioso e o peso da miscigenação na formação da identidade brasileira. Se entendesse, não trataria com tanto preconceito os indígenas e os caboclos da Amazônia.

O caboclo tem uma cultura de selva adquirida dos índios. Porém, manteve a língua, a religiosidade e certos costumes dos portugueses, ao longo de secular abandono. É um comportamento semelhante ao do moçambicano branco, mas muito diferente do bôer sul-africano, que renegou as origens, inventou uma nova língua e se considera a grande tribo branca da África. Todos ficaram insulados após a expulsão dos holandeses do Nordeste brasileiro. Explico: quando os holandeses chegaram ao Recife, em 1630, para controlar o açúcar, perceberam que o que dava dinheiro não era só plantar cana e produzir açúcar, mas também vender africanos para os senhores de engenho. Saíram do Recife em 1641 para atacar Angola e dominar o tráfico negreiro para o Brasil. Quando começou a guerra de guerrilhas em Pernambuco para expulsá-los, Salvador de Sá organizou uma expedição do Rio de Janeiro para expulsar os holandeses de Angola, em 1648. Cerca de 2 mil portugueses, porém, ficaram largados na Amazônia, para onde haviam sido enviados em 1637, para explorar o cacau e a castanha, produtos de grande valor comercial.

Apesar dos esforços portugueses para manter o controle da região, notadamente do Marquês de Pombal, após o Tratado de Madri (1750), por meio da fortificação de suas fronteiras — Belém, Gurupá, Manaus, Santarém, Almeirim, Óbidos, Tabatinga, São Gabriel da Cachoeira, Guaporé, Macapá e outros —, a integração à economia nacional somente veio a ocorrer no século XIX, com o Ciclo da Borracha (1870-1912), quando aproximadamente 300 mil nordestinos migraram para seus seringais. Mas a cultura amazônida do caboclo já estava dada.

Além do preconceito étnico, há um viés de intolerância religiosa muito forte na fala de Bolsonaro, porque o caboclo é uma “entidade” do sincretismo religioso entre africanos e índios. Nas religiões ou seitas afro-brasileiras, é a designação genérica dos espíritos de ancestrais indígenas brasileiros que supostamente surgem nas cerimônias rituais e que foram idealizados, já no século XX, segundo os modelos de orixás da teogonia jeje-nagô e do indianismo literário romântico. Na Umbanda, são guerreiros enérgicos, procurados pelos conselhos sensatos e passes poderosos. Bolsonaro mexeu com Ubirajara, Tupiara, Cobra Coral, Pena Branca, Sete Flechas, Águia Dourada, Sete Espadas, Espada Flamejante, Sete Lanças, Tabajara, Tamoio, Sete Ondas, Sete Matas, Caboclo Pantera Negra, Tupuruplata, Rompe-Mato, Caboclo Apeiara, Araribóia, Rompe-Ferro, Pena Vermelha, Beira Mar, Caiçara e Sete Caminhos.

Nornalização da barbárie

É como se tivessem se acostumado com a barbárie. Essa normalização diminui a pressão em órgãos que deveriam estar fiscalizando. Uma sociedade anestesiada diante desse cenário acaba não fazendo pressão para que essa tendência do desmatamento e queimadas mude

Banco Mundial aponta crescimento da pobreza e desigualdade no Brasil

Os brasileiros na faixa dos 40% mais pobres, população equivalente a 85 milhões de pessoas, começaram este ano de pandemia da covid-19 sem terem recuperado a renda que tinham antes da recessão iniciada em 2014, no final do governo Dilma Rousseff. O mesmo não ocorreu com a outra parcela da população, que no início do ano já recebia uma renda superior à do período pré-crise.

Os cálculos são de estudo do Banco Mundial realizado a partir de dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD). A parte mais pobre da população teve alívio temporário ao longo de 2020 com a renda emergencial, mas muitos voltarão à situação anterior após o fim do benefício, em dezembro.

De 2014 a 2019, a renda dos 40% mais pobres caiu, em média, 1,4% por ano. No mesmo período, a renda média dos brasileiros como um todo cresceu 0,3% ao ano. Se a evolução da renda nesse período tivesse beneficiado igualmente todas as faixas da população, haveria no começo deste ano 13 milhões de brasileiros a menos vivendo em pobreza e 9 milhões a menos na pobreza extrema. O Banco Mundial considera que quem tem uma renda per capita menor que 499 reais por mês vive na pobreza, e a pobreza extrema atinge quem tem menos de 178 reais per capita por mês.

Como consequência da recuperação desigual, houve aumento da desigualdade de renda. Medida pelo índice de Gini, ela estava em 0,525 em 2015 — a menor da história do país — e alcançou 0,550 em 2018. No ano seguinte, houve uma leve queda, para 0,547. Quando mais próximo de 1, mais desigual é a renda.


O principal motivo para a perda de renda dos 40% mais pobres nesse período foi a queda da renda do trabalho dos homens, responsáveis pela maior parte da renda na maioria dos lares brasileiros. Esse fator foi responsável por três quartos da alta da pobreza e da pobreza extrema e por três quartos da alta da desigualdade de 2014 a 2019.

"Os empregos perdidos na crise se recuperaram de forma muita lenta, e a uma velocidade ainda menor para quem está na base da pirâmide. Além disso, a renda de quem conseguiu retomar o trabalho em muitos casos não voltou ao nível anterior da crise", afirma à DW Brasil Gabriel Ibarra, economista sênior do Banco Mundial especialista em pobreza no Brasil.

A distribuição desigual da recuperação, que penaliza duplamente os mais pobres, está relacionada à natureza do trabalho que essa faixa da população desempenha, em geral informal e exposto a vulnerabilidades.

"O tipo de trabalho normalmente disponível para quem está na base da distribuição são os trabalhos informais, com menos proteção, mais voláteis. É diverso dos trabalhos disponíveis para as parcelas mais ricas e mais educadas, que têm acesso a empregos formais e mais conectados à economia, comparado a quando você é um autônomo que trabalha vendendo algo na informalidade", afirma Ibarra.

O Banco Mundial desenvolveu um quadro comparativo da evolução da pobreza extrema, da pobreza e da desigualdade entre os países da América Latina no período de 2014 a 2018, fazendo ajustes nas pesquisas nacionais de cada um deles.

Apesar de o fim do super-ciclo de commodities de 2011 ter afetado todos os países da região, o Brasil foi um dos poucos que viu sua pobreza e desigualdade crescerem nesse período. E, entre os que tiveram essa reversão, o Brasil lidera nos três índices.

Além do Brasil, apenas Honduras e Equador também tiveram aumento de desigualdade no período; Argentina e Equador registraram aumento da pobreza; e Argentina, Equador e Honduras tiveram alta da pobreza extrema — todos em menor grau do que o Brasil.

Esse cenário trágico é resultado, segundo Ibarra, de uma conjunção de fatores, como o nível de endividamento das famílias, a mudança excessivamente abrupta de uma política fiscal expansionista para contracionista no segundo governo Dilma, a queda geral do consumo e a fuga de divisas após o país perder o selo de bom pagador, conhecido como grau de investimento, em 2015.

O relatório também aponta outros motivos "que estavam acumulando problemas para o futuro", como baixo ganho de produtividade, custo crescente do trabalho, demanda baseada mais em consumo do que investimento e alta constante dos gastos correntes do governo, em especial na Previdência Social.

Como resultado, a crise fez o Brasil perder parte dos ganhos sociais obtidos de 2001 a 2013, quando 24,6 milhões de seus habitantes deixaram a pobreza — cerca de 50% da redução da pobreza em toda a América Latina e Caribe nesse período.

O Bolsa Família, sistema de proteção social que é, segundo Ibarra, reconhecido internacionalmente pela flexibilidade e capacidade de focalização dos recursos em quem mais precisa, não foi capaz de amortecer a crise para os mais miseráveis. De 2014 a 2017, mais de 4,6 milhões brasileiros caíram para a pobreza extrema.

Algumas pesquisas já apontaram as deficiências do Bolsa Família nessa fase, como represamento de pedidos para receber as transferências, redução das equipes que fazem a busca ativa de possíveis beneficiários e a ausência de reajustes anuais do benefício para repor a inflação.

"Durante e após a crise de 2014, não vimos a resposta [do sistema de proteção social] como houve em outros momentos, o que teve implicações para a pobreza e a desigualdade", diz o economista do Banco Mundial.
O impacto da renda emergencial

Neste ano, o impacto da pandemia na economia foi reduzido para as faixas mais pobres devido ao auxílio emergencial. O benefício de 600 reais, que chega a 1,2 mil reais para mães solteiras, começou a ser pago em abril para um período inicial de três meses. A partir de outubro, será reduzido à metade, e a última parcela será paga em dezembro.

Por ter um valor muito superior ao Bolsa Família, cujo benefício médio é de 190 reais, em alguns casos a renda emergencial superou a perda provocada pela pandemia, retirando famílias da pobreza.

"Esse programa foi tão amplo que há evidências sugerindo que ele reverteu, e não apenas mitigou, alguns dos efeitos monetários da pandemia. E não é uma surpresa que essas transferências possam ter mais que compensado o impacto para alguns grupos", afirma Ibarra.

Questionado sobre qual será o impacto do fim do auxílio emergencial na pobreza a partir do ano que vem, ele afirma que isso dependerá de eventuais reformas dos programas sociais, do desempenho da economia no último trimestre deste ano e do comportamento do mercado de trabalho.

'O vírus é uma desculpa para um enredo de proporções totalitárias'

“O jogo acabou, Bill. As pessoas não são cegas.” Isto foi o que Dejan Lovren, um dos mais conhecidos futebolistas internacionais croatas, resolveu escrever nas redes sociais, como comentário a uma imagem que mostrava o criador da Microsoft a segurar um cartaz em que agradecia aos trabalhadores da saúde o extenuante e perigoso tratamento de doentes com Covid-19. Lovren é fã do profissional das teorias da conspiração David Icke e, no seu Instagram, o futebolista partilha acusações tão insólitas como a de o coronavírus estar a ser disseminado através da rede 5G de telemóvel, ou a de que qualquer vacina para cessar o contágio conterá “microchips de nanotecnologia” destinados a controlar o cérebro de quem a tomar. E se Bill Gates, por via da fundação que detém com a mulher, Melinda, é um dos principais financiadores de investigações científicas para desenvolver uma vacina contra o SARS-CoV 2, o tal “jogo” revela-se cristalino na cabeça de Lovren.



Imagina-se que Lovren exultou com a manifestação que no início deste mês juntou milhares de pessoas na capital do seu país, Zagreb, num protesto contra as medidas impostas pelas autoridades para combater a propagação do novo coronavírus. “A Covid-19 é uma mentira, não somos todos ‘covidotes’”, ou “Tirem a máscara, apaguem a televisão, vivam plenamente a vossa vida”, lia-se em alguns dos cartazes exibidos pelos participantes, apesar de uma segunda vaga da pandemia ser já, na altura, equacionada na Europa. Dir-se-ia, até, que a satisfação de Lovren chegou ao júbilo: os manifestantes antimáscaras, antidistanciamento e, sobretudo, antivacinas que convergiram de toda a Croácia para Zagreb talvez só tenham sido superados em número pelos cerca de 20 mil correligionários que num domingo de agosto se concentraram para o mesmo protesto em Berlim, organizado pela extrema-direita, que lhe chamou “Dia da Liberdade”, título do filme sobre a Wehrmacht (o exército alemão), de 1935, dirigido por Leni Riefenstahl, a cineasta que trabalhou ao serviço do aparelho de propaganda de Hitler. Ou seja, os manifestantes croatas terão ganho aos colegas de Paris, Madrid, Zurique, Londres e Roma. Na concentração na capital italiana, e só na aparência deslocados, alguns participantes empunhavam bandeiras de apoio a Trump. E, por sinal, uma sondagem feita pela Gallup nos EUA, em julho/agosto, assinalou que 35% dos inquiridos responderam que não tomariam a vacina contra o SARS-CoV 2, mesmo que estivesse aprovada pela FDA (Food and Drug Administration) e fosse gratuita. Aquela percentagem corresponde a mais de 100 milhões de habitantes do país…

O médico João Júlio Cerqueira, criador do projeto SCIMED-Ciência Baseada na Evidência, considera, em declarações à VISÃO, que estamos a assistir a uma “fusão de paranoias” em que “os proponentes de terapias alternativas e de bem-estar se juntam aos apoiantes da extrema-direita” na oposição às medidas oficiais para conter a pandemia. Há “dezenas de estudos” que “demonstram que os doentes seguidos por terapeutas alternativos têm muito maior desconfiança relativamente à vacinação”, acrescenta. E a “fusão de paranoias”, deteta o médico, funciona sob a mesma mensagem: “O vírus é uma desculpa para um enredo de proporções totalitárias, projetado para acabar com a liberdade de movimento, reunião, expressão e – para o horror de alguns na indústria do bem-estar – impor um programa de vacinação em massa.” Estes grupos, resume João Júlio Cerqueira, “são um poço de desinformação” e vão causar estragos na contenção da pandemia.

“É compreensível o receio face a uma ‘vacina feita à pressa’”, diz João Júlio Cerqueira. “Ao contrário de um medicamento, uma vacina é dada a pessoas sem qualquer doença, pelo que a segurança é, de facto, o fator mais relevante”, acrescenta. E a vacina russa alardeada por Putin em nada ajuda. “Foram realizados apenas os ensaios mais precoces – fase 1 e fase 2 -, com uma amostra bastante pequena e usando maioritariamente pessoas jovens, pelo que não sabemos qual será o efeito em outros grupos demográficos e numa amostra de maior dimensão”, explica o criador do SCIMED-Ciência Baseada na Evidência. E o grande perigo é o de, caso corra mal, “a experiência russa colocar em causa a credibilidade das restantes vacinas”.De outra ordem são os receios relativos aos efeitos secundários e à eficácia da vacina para o SARS-CoV 2, que pode vir a estar disponível no final deste ano. E não faltam sondagens recentes a refletir aquelas apreensões. Em agosto foi divulgada uma pesquisa feita pela Ipsos em 27 países (Portugal não incluído), por encomenda do Fórum Económico Mundial, em que 74% dos inquiridos responderam que tomariam a vacina contra o novo coronavírus, se já existisse, mas em que, entre quem disse que não a inocularia, 54% aludiram a receios sobre os efeitos secundários e 29% a dúvidas acerca da sua eficácia. Quanto a um estudo que incluiu Portugal, publicado em junho no European Journal of Health Economics, 21% dos inquiridos mostraram-se indecisos pelas mesmas razões.

A boa notícia, por outro lado, é que “a criação de uma nova vacina começa a ser cada vez menos difícil, graças ao ‘know-how’ e à inovação tecnológica”, diz o médico. Significa isto “não só a criação da vacina em tempo menor, como iniciar os testes com relativa rapidez”. É isso que “está a acontecer com as mais de 100 vacinas que competem entre si para chegar ao mercado, e dar resposta à pandemia do SARS-CoV 2”, verifica o clínico.

Mas há que colocar a hipótese de a vacina falhar ou de demorar demasiado a chegar. Aí, “dificilmente teremos outra hipótese que não passe pela imunidade de grupo”, diz João Júlio Cerqueira. E, nesse campo, “começam a existir alguns sinais que podem ser positivos”, embora com características “preliminares”, nota o médico. Por exemplo, “há pessoas que parecem ser imunes ao SARS-CoV 2 graças ao contacto com outros coronavírus”. E mesmo havendo indivíduos que não produzem anticorpos protetores contra o SARS-CoV 2, após exposição ao coronavírus, “essas pessoas podem ser imunes graças à memória das células T”, que atacam congéneres infetadas por vírus, levando à sua destruição e cessando os processos de replicação viral, “algo que não é estudado nos testes serológicos”, diz o criador do SCIMED-Ciência Baseada na Evidência.

Pensa-se que a imunidade de grupo se estabelece numa baliza percentual situada entre 60% e 85% de uma população. Mas também há quem defenda que aquelas percentagens podem ser mais baixas. E existe aqui um forte caso para apresentar: depois de brutalmente afetada pela pandemia, a cidade brasileira de Manaus regista agora uma redução significativa e “inexplicável” do número de infeções, ao mesmo tempo que atingiu uma “imunidade na ordem dos 20%”, anota João Júlio Cerqueira.

Ao contrário do que diz o futebolista internacional croata Lovren, que acredita em vacinas com “microchips de nanotecnologia” para controlar o nosso comportamento, o “jogo” não acabou. E ainda bem.