quarta-feira, 2 de fevereiro de 2022

Pensamento do Dia

 


Silêncio. Atenção. Roda. Em cartaz, Bolsonaro, um homem do povo

No curto período de 72 horas, Bolsonaro deu-se ao luxo de protagonizar dois episódios desastrosos para sua imagem. O primeiro aconteceu no último domingo.

Um vídeo de menos de um minuto, postado nas redes sociais mal acabara de ser rodado, mostra Bolsonaro sentado numa cadeira à beira de uma calçada, em Brasília, a empanturrar-se de frango e farofa comidos com as mãos. A ideia era apresentar o presidente da República como um autêntico “homem do povo”, mas acabou servindo para popularizar a hashtag #BolsonaroPorco.

Quem disse que o brasileiro pobre aprecia comer com as mãos e em locais públicos? Só o faz quando não tem talheres, nem espaço adequado, nem tempo para alimentar-se. A comida é tão racionada que ele evita o desperdício. Enquanto arrancava nacos de carne dos ossos do frango com os dentes, a farofa escorria pelo corpo de Bolsonaro, sujando seu casaco, suas calças e botas. O pior, porém, foi quando começou a circular outro vídeo que registrou os bastidores do primeiro.


Sob o comando do vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ), o filho Zero Dois do presidente, uma equipe de cinegrafistas e de assessores cuidava para que tudo desse certo, enquanto Bolsonaro procedia com a naturalidade exigida de um bom ator. Ele foi filmado de vários ângulos, ora em uma mesa próxima do balcão de comidas, ora em outra separada. A peça de propaganda saiu barata. Os que se envolveram com ela são pagos com dinheiro público.

Corta! Menos de 48 horas depois. Bolsonaro está em São Paulo. Foi sobrevoar municípios atingidos por fortes chuvas. Em dezembro último, preferiu tirar férias e passear de jet sky a sobrevoar municípios baianos e mineiros onde as chuvas matavam e desabrigavam milhares de pessoas. Pegou muito mal para ele que não quis incorrer no mesmo erro desta vez – escolheu outro, como se saberá adiante. De resto, São Paulo é o maior colégio eleitoral do país, que em 2018 lhe deu 60% dos seus votos no segundo turno. Hoje, ali, segundo pesquisas, ele está atrás de Lula.

Encerrado o sobrevoo, Bolsonaro concedeu uma entrevista coletiva à imprensa, prometeu recursos aos prefeitos que lhe pedirem diretamente, negou um pedido de recursos encaminhado pelo governador João Doria (PSDB), seu desafeto, e… Bolsonaro não seria o que é se não tivesse dito alguma coisa que o prejudicasse. Disse que “faltou visão de futuro” às pessoas que construíram suas casas em áreas de risco, sujeitas a deslizamentos de encostas. Em seguida, tentou corrigir-se: “Muitas vezes constroem a sua residência por necessidade”. Mas era tarde. O estrago estava feito.

Quem, podendo construir sua casa em lugar seguro, escolhe construí-la onde ela pode desabar se chover muito? Por que cidades de grande e médio porte estão repletas de favelas onde moram milhões de pessoas e onde a presença do Estado é praticamente nenhuma? Rico ou remediado não mora em favela, quem mora é pobre, que não pode ser culpado por suas desgraças. A malsucedida viagem de Bolsonaro a São Paulo foi também pretexto para que ele fugisse da sessão de reabertura do Supremo Tribunal Federal, onde responde a vários processos.

Assim funciona

Estou cansado de ouvir dizer que a democracia não funciona. Claro que não funciona. Presume-se que somos nós quem a faz funcionar
Alexander Woolcott

Milionários patrióticos

“Hoje, nós, os milionários e bilionários que assinam esta carta, pedimos aos nossos governos que aumentem nossos impostos. Imediatamente. Substancialmente. Permanentemente”. Logo após o término do confinamento contra a Covid-19 no primeiro semestre de 2020, cerca de 90 pessoas sortudas com sua riqueza fizeram essa demanda veemente dos políticos. Desde então, pouco se moveu no campo tributário; apenas um acordo mínimo para estabelecer uma alíquota global de 15% no imposto sobre o lucro das empresas, que ainda deve entrar em vigor no próximo ano.

Essa epístola foi caracterizada por uma urgência agonizante. É oportuno reproduzir alguns de seus parágrafos sem qualquer glosa: “Não estamos conduzindo as ambulâncias que levam os doentes aos hospitais, nem reabastecendo as prateleiras dos supermercados, nem entregando comida de porta em porta (…). Mas temos dinheiro, muito dinheiro, que é desesperadamente necessário agora.” Esses super-ricos se autodenominavam milionários patrióticos e reapareceram um ano e meio depois – com mais vinte adesões ao grupo – no Fórum de Davos, convocado sob o slogan politicamente correto de “Acionistas por um mundo mais coeso e sustentável”.


A maioria desses milionários são americanos: os 0,1% mais ricos dos americanos agora controlam mais dinheiro do que em qualquer momento desde 1929. E eles também agora usaram o método de carta aberta sob o lema repetido de “Tax us rich people and do it now”. Eles não são marxistas desclassificados, mas pessoas que tiveram muito sucesso no sistema e querem salvar o capitalismo de seus excessos mais extremos. Suas demandas giram, em geral, em torno do aumento do imposto sobre a riqueza, da revisão das brechas fiscais por meio das quais os impostos são evadidos legalmente e até mesmo da exigência de aumento do salário mínimo.

O medo de ser uma extravagância certamente está presente nesse apelo desesperado por impostos mais altos. A principal crítica a Davos geralmente se concentra no vazio das palavras que ali são invocadas, ano após ano, e no cinismo de muitos de seus oradores aparentemente mais críticos. Milionários patrióticos também cobram de alguns empresários da moda como Elon Musk ou Jeff Bezos, quando acreditam que a confiança não se constrói em espaços fechados que só podem ser acessados pelos mais ricos e poderosos: “[A confiança] não é construída por viajantes espaciais bilionários que fazem uma fortuna com uma pandemia, mas não pagam quase nada em impostos.” Para esses milionários, o sistema tributário internacional “foi projetado deliberadamente para enriquecer ainda mais os ricos”, e a pandemia de covid-19 serviu para multiplicar sua posição de poder: embora o mundo tenha passado por um imenso sofrimento nos últimos dois anos, eles aumentaram sua riqueza, mas “poucos, se houver, podem dizer honestamente que pagamos nossa parte justa de impostos”.

Este diagnóstico coincide com o relatório apresentado em Davos pela Oxfam Intermón, intitulado “Desigualdades matam”. Com esta frase, a desigualdade mata, o sociólogo sueco Göran Therborn iniciou seu livro de referência The Death Camps of Inequality (Fund for Economic Culture). De acordo com esse relatório, durante a pandemia, os 10 homens mais ricos do mundo dobraram sua fortuna pessoal, passando de 700.000 para 1,5 trilhão de dólares (a uma taxa de 1,3 bilhão por dia), enquanto no outro extremo da escala caíram 160 milhões de pessoas. ao nível de pobreza (com menos de 5,5 dólares por dia) em relação ao período anterior ao coronavírus. Um dos representantes da Oxfam resumiu bem a situação: está sendo uma pandemia de luxo; Enquanto os bancos centrais e governos dos países ricos injetaram trilhões de dólares para salvar a economia, grande parte parece ter ido parar nos bolsos dos mais ricos, que aproveitaram o boom das bolsas e outros ativos. O resultado, mais riqueza para alguns e mais dívida pública para todos.

Tempos eleitoreiros

Em tempos eleitorais, tempos de mudanças inversas ou reversas, de ajustes de contradições e permanência disfarçada; tempos nos quais mudamos nomes e inventamos partidos, mas não pensamos nisso como um costume destinado a não transformar os jeitinhos, os assassinatos de caráter, as notícias mentirosas, falsas, fantasiosas, caluniosas, criminosas — enfim, tudo que cabe na noção de fake surge como um sol de verão.

Em tempos eleitorais, falamos de “candidatos” e postulantes. Dos que pretendem ser eleitos numa competição teoricamente igualitária. E tal princípio alheio à vida cotidiana produz uma multidão de discursos conjunturais, transformando-se numa verdadeira “economia política eleitoral”, na qual se produz uma matemática de relações. Uma álgebra que poderá revelar se A vai com X ou Y, e se o partido Z vai com G, T ou K. O campo político eleitoreiro vira uma crônica de Lima Barreto ou um manicômio de Machado de Assis. Nele, só não ficam loucos os pré-candidatos, perdidos numa competição cuja única regra é ganhar porque, conforme sabemos, “em política vale tudo”, até mesmo trair juramentos constitucionais, como é rotineiro em Bolsonaro. Dito isso, vale observar a ferocidade com a qual se tenta, neste jogo sujo, eliminar o “centro” bloqueador eventual de uma infame repetição.


Aliás, hoje, os jornais estão perdendo para as telas digitais dos iPhones, iMacs e iPods. Esses “eus” em rede que formam uma selva de ignorância e má-fé, numa mistura de péssimo alvitre entre a carta anônima e o trote telefônico...

Os argumentos mais complexos — a civilização sem o professor, o papel ou o livro que lhe dava concretude ou “peso”, como se dizia no meu tempo —passaram a ser ignorados e a ter que competir com uma superfície lisa, um vidro no qual algumas linhas ou um filmete conta uma piada, passa um segredo, uma “informação de cocheira” dada por um companheiro fanático que se apresenta como guru de uma seita. Com isso, a rede, em vez de abrir democraticamente os fatos, se fecha na sua ignorância.

Exageros e mentiras passam, entretanto, por verdade ou falsidade —por fake — e, com tamanha irresponsabilidade, tais “novidades” engordam ainda mais os polos como espaços exclusivos.

O chamado smartphone — que é telefone, confessionário, formulador de revolução e de opinião, dicionário, comediante, cinema pornô, Bíblia Sagrada, teoria política da mais alta e baixa qualidade, álbum de fotografia das pessoas que mais amamos — é de fato e de direito o espelho mais perfeito da nossa abominável pobreza e da nossa grata riqueza. Neste aparelho — que põe no nosso bolso toda a obra de Shakespeare, ao lado do canto forte de Elis, Ella e Billie; ao lado das sinfonias de Beethoven, das fugas de Bach, bem como os mapas do mundo — resume-se, repito, o nervo pós-moderno de nossas vidas.

Ele mostra o mínimo e o máximo, o plano e o redondo do planeta. Refletindo sobre ele, você entende por que a Terra é representada, para uma seita, como efetivamente plana, tesa e reta. A rejeição do esférico e do redondo é afim com a imobilidade e o absolutismo, pois a esfera, conforme sugere Thomas Mann, tem a “revolução” dela, é o movimento que irrita os autoritários paralisadores do mundo. Sem a esfera, não há dia e noite...

Democracias têm um dinamismo esférico, pois, girando sobre si mesmas, nelas sempre estamos por cima e por baixo. A esfera é alternadamente celestial e terrena. Não é por mero acaso que o bolsonarismo, como todo fanatismo lamentavelmente implantado no Brasil, adora a linha reta das grades de um cárcere.

A possibilidade de arredondamento de um sistema político achatado, com os superiores em cima e a “massa” e os negros em baixo, como dizia Anísio Teixeira, equivale a transformar uma pirâmide aristocrática numa bola democrática. No fundo, toda polarização não só é chata, mas deseja achatar!

Há um ponto final a ser mencionado. Não sou contra a digitalização ou as redes. Para mim, o computador, que uso desde 1986, é um instrumento indispensável. Mas isso não significa que tecnologias da comunicação não possam ser pervertidas como polos de um absolutismo desvairado, de negacionismo mútuo. De um brutal fanatismo.