quarta-feira, 7 de maio de 2025

Pensamento do Dia

 


Pilares maltrapilhos


Os quatro pilares ideológicos, jurídicos e morais do alto capitalismo - constituições, contratos, cidadania e sociedade civil - são, hoje, vadios maltrapilhos, mas sempre lavados, barbeados e vestidos com roupas novas para esconder sua verdadeira situação de penúria.

Fredric Jameson, “A Cultura do Dinheiro”

A diversidade indecente

Em excelente artigo publicado no Correio Braziliense, o ex-ministro Raul Jungmann apresenta sua visão sobre a importância moral e a necessidade social de combater preconceitos e promover a diversidade — respeito e aceitação do outro, pela cor da pele, orientação sexual, religião ou gênero. Apesar da qualidade e relevância, o artigo manteve a tradição de ignorar o "rendismo": a discriminação ao acesso a bens e serviços essenciais conforme a renda da pessoa (comida, educação, saúde). Tampouco menciona que, aplicado à educação, esse preconceito é a principal causa dos outros preconceitos.


O respeito à diversidade nasce do que for ensinado nas escolas: na formação da mente e na definição de comportamentos. Ser ou não ser racista, homofóbico, machista, depende do que é ensinado nas famílias e nas salas de aula. Cada vez menos nas famílias e mais nas escolas. Apesar da percepção, no Brasil, o acesso à escola de qualidade com permanência até o final da educação básica com qualidade depende de um preconceito disfarçado: a renda da criança. Jungmann lembra que a abolição foi um gesto de respeito à diversidade, ao determinar que legalmente ninguém era mais escravo no Brasil.

Mas o sistema escolar mantém até hoje "escolas senzala", para pobres, "descendentes sociais" dos escravos, e "escolas casa grande", frequentadas pelos "descendentes sociais" dos escravocratas, que podem pagar as altas mensalidades em instituições privadas ou que conseguem vaga em alguma das raras boas escolas públicas, quase todas federais. Pela abolição, brancos e negros tornaram-se iguais perante a lei, mas ricos e pobres continuam a ter direitos diferenciados, graças ao acesso desigual à educação plena e de qualidade.

Para ser plenamente alfabetizado hoje, é preciso saber ler, escrever e criticar em português, ser fluente em pelo menos um idioma estrangeiro; aprender a deslumbrar-se com as artes, ter competência e gosto para o debate sobre os temas de filosofia, política, antropologia e sociologia; indignar-se com a permanência da pobreza, desigualdade social, autoritarismo, corrupção e preconceitos contra as minorias.

Saber usar as ferramentas digitais para usufruir e trabalhar com elas; formar-se em pelo menos um ofício que permita emprego e renda; adquirir noções e gosto pela prática de solidariedade com vizinhos, compatriotas e toda a humanidade: respeitar os patrimônios cultural e natural e sua diversidade; querer participar da construção de sociedades pacíficas, com desenvolvimento sustentável, democrático e justo; ser capaz de obter educação continuada ao longo da vida nestes tempos de limites, incertezas, revoluções tecnológicas e conceituais e transformações geopolíticas; garantir a todos que desejarem, a base para concorrer à vaga nas universidades e nos cursos mais disputados. Essa educação necessária não é oferecida à maior parte dos brasileiros, discriminados pelo rendismo.

Essa discriminação é executada pela falta de um Sistema Único Público de Educação Básica com máxima qualidade, permanência e equidade. Como consequência, o destino de cada brasileiro é definido desde o nascimento conforme a renda. Apesar de um negro rico poder frequentar a mesma escola que um rico branco, a pobreza tem cor preta porque a maior parte da população pobre é excluída da educação de qualidade devido ao rendismo.

O preconceito racial persiste porque a negação de escola de qualidade discrimina a população afrodescendente que, por falta de renda, tem suas crianças fora da escola de qualidade. As análises sobre preconceito e diversidade se mantêm no paradigma tradicional: não denunciam o rendismo na promoção educacional, na compra de anos de vida e de saúde e até mesmo no direito à liberdade — em função do poder de compra dos serviços jurídicos.

Por milênios, houve discriminação racial, mas a palavra racismo só nasceu durante o nazismo alemão para definir a discriminação contra os judeus. Depois, se expandiu para os outros tipos de preconceito racial. Mas, até hoje, a palavra rendismo não é aceita para definir o preconceito de renda que determina a negação do acesso aos bens e serviços essenciais — comida, saúde, escolaridade. O mesmo padrão moral aplicado à desigualdade na qualidade da educação é aplicado à desigualdade no acesso a bens e serviços supérfluos e suntuários. Além de imoral, essa visão é também estúpida, porque não é percebida como a causa de todos os demais preconceitos: a diversidade indecente determinada pela renda, impede o respeito às diversidades decentes.

Ramsés II, o coração, a pena e a sustentabilidade do planeta

No Egito antigo, no tempo de Ramsés II, a preocupação com a vida após a morte direcionou ações das mais variadas, como construções, práticas de embalsamento e abordagem religiosa politeísta em que a proteção era o lugar comum no relacionamento com as divindades e o paraíso era uma ambição. Uma coisa interessante é que a morte era tratada de maneira parcelada em termos da eliminação do corpo. Após o falecimento, vários órgãos eram descartados, exceto o coração, e o embalsamento tinha o seu rito.

Na crença da época, o falecido enfrentava uma avaliação, conhecida como sala de Maat, em que o coração era “pesado” a partir de 42 negações que se referiam a questões éticas e religiosas, como não ter matado, não ter roubado etc. Com isso, era possível comparar o peso do coração com uma pena. Se no conjunto da avaliação o coração fosse mais pesado do que a pena, uma fera comia o coração, e o sonho do paraíso era extinto para sempre. Se fosse mais leve, seria aprovado e liberado para o paraíso. Era a crença de uma prova com chance única levando em conta toda a trajetória da vida terrena. Ou ia para o paraíso para continuidade de sua vida ou… Parece aquela final do campeonato com jogo único, bem ao estilo Elvis (Is now or never).


Uma das coisas importantes traduzidas para a nossa realidade era que o rio Nilo era incluído no teste do peso do coração, como elemento da natureza a ser protegido e não deteriorado. Uma das condições do julgamento da sala de Maat era a confissão número 35, que consistia em dizer “Não interrompi (ou não obstruí) a corrente d’água”. Interromper a corrente de água significava, literalmente bloquear canais de irrigação, prejudicando plantações alheias, reter água para benefício próprio, em detrimento da comunidade, ou modificar o curso natural do Nilo, algo visto como um ato contra a ordem divina (Maat). Num país onde o Nilo era a fonte da vida, manipular o fluxo da água injustamente era visto como um crime grave, tão sério quanto roubar ou matar, pois podia significar sofrimento e morte para outras pessoas. Era a confluência entre individual e coletivo.

Segundo Zakaria Adeeb Abdelsayed, egiptólogo formado pela Universidade de Assuã, no Egito a lógica era de defesa do Nilo. Não tendo o avanço da sociedade sobre a natureza, o problema não era encontrar latinha de cerveja, sacos plásticos, esgotos clandestinos, pneus ou mesmo sofás boiando, mas algo sobre defender o Nilo pela forma como a natureza teria oferecido. O Nilo era e ainda é a forma mais clara e decisiva na sustentabilidade da região já que, de uma forma muita simplificada, geograficamente, o Egito é um deserto que contém um presente da natureza que permite a vida. A vida foi se desenvolvendo ao longo do rio.

A relação causal entre a existência do Nilo e a vida nesse caso é muito evidente, clara, prática, individual e coletiva. Passa a ser coletiva quando essa clareza se torna homogeneamente prioritária. De forma geral, isso falta à sociedade atualmente. Quando ocorrem as catástrofes a sensibilidade surge, mas se esvai com muita facilidade, em parte por causa do overload de informações e passamos para a página seguinte, deixando de filtrar informações pelas prioridades, mas sim pela atualidade. Vale mais gastar neurônios naquilo que hoje as mídias divulgaram do que algo que mexe com a vida, mas não é tão recente, indicando que a importância do novo supera a lógica do impacto do que se trata. A novidade atrai e ocupa mais o espaço de interesse do que o crítico e estratégico.

Essa consciência da importância da natureza, mais de três mil anos depois, ainda está imperfeita. Na verdade, muito distante do real impacto. Afinal, as mudanças climáticas estão no nosso dia a dia, cada vez mais próximas da nossa vida. Enquanto os fenômenos afetam quem está longe fisicamente, não gastamos tempo e energia. A realidade do aquecimento, enchentes, destruição da natureza traz a dimensão da sustentabilidade para outro patamar, mostrando que o tema é cada vez mais presente e urgente: não é para hoje ou amanhã, mas para ontem.

Embora a questão econômica sempre apareça como forma de desvio das soluções, ela mudaria de perspectiva se fosse percebida sob a lógica de não apenas curto prazo. Quando a gente não consegue ver alguma coisa ocorrer no curto prazo, o estímulo para se preocupar se reduz. Nesse sentido a sustentabilidade, fatiada nos seus vários temas, é um tema de longo prazo como proposta de solução, mas é algo de curtíssimo prazo quando se pensa nos desafios, crises e desastres, alimentado diuturnamente.

Existem vários motivos para a não percepção de urgência, isso, com dependência de múltiplos stakeholders com interlocuções. O tema valorização de ações que tratem a sustentabilidade passa pela lógica de mudança de hábitos e a sensibilização da sociedade deveria se mostrar presente. Temos camadas diferentes de percepções, em que um dado grupo não precisa ler este artigo por se posicionar com evidências e consciência do problema e de algumas soluções; do outro lado extremo, uma camada que não percebe a questão como um problema.

Especialmente no que se refere ao segundo grupo descrito, algumas reflexões podem ser oferecidas sobre o tema sustentabilidade com a inspiração do Nilo.

Nossas ações a favor (tornando o coração leve) e contra a natureza (aumentando o peso do coração) estão sendo “medidas”, não como julgamento da sala de Maat, mas como consequências reais sobre a humanidade, de diversas formas, como aquecimento, enchentes, desequilíbrios que afetam a geração de alimentos e consequências negativas nas vidas das pessoas. Alguns desses fenômenos sempre ocorreram, mas estão se tornando mais críticos e abrangentes, e, infelizmente, nos acostumamos com os problemas. Take for grant, ou seja, “é a vida”. Um grande problema é que quem age contra a natureza, não necessariamente é quem sofre as consequências.

O “Nilo” enquanto metáfora contemporânea se mostra de diversas formas, como o bioma amazônico, o Aquífero Guarani, a Mata Atlântica urbana, por exemplo. A dimensão temporal entre não proteção ao sustentável e os danos não é casada, o que torna difícil a evidenciação causal e mesmo a responsabilização de algumas ações, ou mesmo não-ações. Quando pensamos numa dimensão mais localizada, qual é o “Nilo” que garante a vida na sua cidade ou o seu bairro? E o que você faz por ele?

Podemos trabalhar a ideia de que o julgamento egípcio era individual, mas a salvação sustentável era coletiva. Não podemos perder esse direcionamento, e a educação pode, e deve, transformar catástrofes em gatilhos permanentes de consciência, não apenas em manchetes de ocasião. Educação nesse sentido começa na intimidade dos valores das famílias, da forma como são, com a percepção da importância da sustentabilidade que o núcleo tem.
A escola, nos seus vários níveis e áreas, também têm papel importante, o que proporciona força para a consciência coletiva, independentemente dos direcionamentos governamentais e seus humores nem sempre consistentes, principalmente pelo cruzamento do individual com o coletivo político.

O “efeito novidade” nas mídias tem muita força quando comparado com os temas de priorização estratégica. Os impactos de estiagem do Nilo eram concretos e de curto prazo, o que favorecia a priorização e foco, algo que não é percebido como concreto hoje e deixa de sensibilizar as pessoas. Afinal temos muito tempo para corrigir coisas. Na verdade, não temos, e as correções dificilmente reporão a qualidade da natureza do passado. Temos tantas coisas para priorizar que o “efeito novidade” acaba ganhando mais força do que é realmente relevante e que deveria ser ressaltado pelas nossas lideranças. Afinal, você não se pergunta:“Por que nos mobilizamos mais por uma celebridade da internet que foi presa do que por um bioma queimando por vários dias?”. Provavelmente o “Nilo” não foi percebido. O individual pode afetar o coletivo se for sensibilizado.

Como levar a lógica do “Nilo” até para quem nunca viu água limpa sair da torneira? A heterogeneidade de percepção, tanto do risco como do benefício é enorme, independentemente de camada social e região geográfica, implicando em estruturação de diferentes diálogos. Em outras palavras como dialogar com quem já entendeu e posiciona com compromissos, e como alcançar quem ainda não percebe o risco?

Os rituais egípcios, como a construção de pirâmides e locais para os mortos, eram longos e previamente deliberados. A mudança de hábitos também requer ritos de passagem, paciência, repetição. A tese é que a lógica de pensar na sustentabilidade como ingrediente permanente na cultura das pessoas não se impõe, se cultiva. O esforço no sentido de defender a visão de sustentabilidade existe desde longa data mas precisa ser substancialmente ampliado. Se o planeta estivesse fazendo o papel de Maat, quais perguntas ele faria para decidir se ainda nos quer como hóspede?

***

A sociedade precisa de algo para ter a percepção que o Nilo produz para o Egito, significando nada mais, nada menos do que a chance de ter vida para hoje, amanhã e depois de amanhã. É isso que deveríamos pensar quando surge o tema sustentabilidade. Nada mais, nada menos.

Prestem atenção ao que mencionei no início deste texto: para pesar o coração eram formulados 42 questionamentos sobre o comportamento das pessoas ao longo das suas vidas. Com isso posso imaginar que Ramsés II, se estivesse por aqui hoje, iria considerar que acesso ao paraíso de antigamente era mais desafiador do que o de hoje. Quem sabe possamos nos encontrar no paraíso?

Por que bacharéis?

Um dos meus mestres, o professor Luiz de Castro Faria, chamava a atenção para o “bacharelismo” brasileiro no intuito de definir nosso legalismo — o ideal de ordenar juridicamente a realidade social.

Bacharel é alguém diplomado numa faculdade de Direito, mas é também o “bem-falante” ou o “tagarela” capaz de invocar uma regra para tudo. O termo nasce pelos anos 1400 para designar o aspirante a um diploma universitário. Quando o Brasil era um “país de analfabetos”, seria impensável ocupar certos cargos sem o título de bacharel. Isso explica o fato de o Brasil ser o país com mais faculdades de Direito do planeta. Era esse formalismo que nosso professor apontava.


Todo mundo que “se lava” ou aspira ao bacharelato social busca ser “branco”, ter “boa aparência”, ser “limpo”, simpático e, por fim, mas jamais por último, ser “bem relacionado” — pertencer à turma ou ao partido certo. Ser, como adverte Manuel Bandeira, amigo do Rei, tendo as prerrogativas, os privilégios e as vantagens dos “grandes” e mandões. Dos donos do poder, como dizia Raymundo Faoro.

Eis uma aristocratização que estou rouco de repetir nesta coluna. Nobreza mal mascarada porque são justamente os “bacharéis”, esse povo que escreve em jornais, tem curso superior, que mais falam em democracia e, dependendo da pessoa ou contexto, desdenham a universalidade da meritocracia e, inapelavelmente, usam particularismos para “vencer na vida”. Um vencer que se traduz em “enriquecer” ou “subir”, tendo certeza das anistias e anulações, como estamos fartos de engolir.

São essas singularidades bacharelescas que justificam o “você sabe com quem está falando?” por mim analisado, que surpreende pela ausência de discussão porque é justamente o particularismo que estrutura o campo cultural brasileiro. Campo dinamizado por uma competição entre solidariedades devidas aos companheiros e as regras do Estado Democrático de Direito que formalizam a democracia liberal.

Liberal porque nós, humanos, substituímos instintos por uma consciência que é, fundamentalmente, libertária e nos faculta e nos condena a escolhas que nos individualizam e, ao mesmo tempo, conduzem à solidariedade.

Em nossa vida pública, chama a atenção a recorrência de crimes cometidos por administradores públicos e o fato de os criminosos serem ancorados por laços de amizade, ideologia ou prerrogativas jurídicas. Espanta verificar que os meliantes sejam nomeados por governantes eleitos por partidos políticos furiosamente voltados para o bem público. A marca do que chamamos de “corrupção” é justamente o absurdo da legitimidade burocrática, ao lado do apoio hoje desmontado pelos instrumentos digitais, de companheirismo ideológico. Esse traço, acentuo, vale tanto para a direita cavernária e burra quanto para esquerda iluminada.

Trata-se do permanente confronto de costumes contra leis; de relacionamentos contra as isenções e isolamentos exigidos pelos cargos públicos num sistema democrático. Isenções ou insulamentos sistematicamente suspensos pelas “considerações” jurídicas do companheirismo ideológico. Nesse sistema, não existe conflito de interesse porque ele é no fundo guiado somente por interesses. Aí está a raiz do patrimonialismo de Antônio Paim e Raymundo Faoro.

Na descoberta do conflito, quem arbitra para condenar ou anistiar é o bacharel que, como profeta, aplica os mandamentos, protegendo o lado que mais lhe fala tanto à cabeça quanto ao bom senso do velho coração.

Entre a casa (o Executivo) e a rua (o Legislativo), surge intemerato o Judiciário com seu bacharelismo que não conhece contradição ou, reitero, conflito de interesse. Donde as anistias e as decisões contraditórias. Esse oscilar entre leis e costumes, entre o impessoal e o pessoal, é a marca maior de um sistema avesso à igualdade.

Acreditar ser porta-voz de uma maioria silenciosa é porta aberta ao populismo

Há uma ilusão curiosa — e muito difundida — segundo a qual a maioria, ainda que silenciosamente, quer as mesmas políticas, valoriza os mesmos princípios, enxerga o país do mesmo jeito que a gente. Essa convicção subjetiva de que nossas ideias são majoritárias, mesmo quando não são, é bem conhecida na psicologia social e atende pelo nome de viés de falso consenso.

É um viés cognitivo, ou seja, uma tendência psicológica automática que faz com que projetemos nossas características e preferências sobre o coletivo. Progressistas tendem a superestimar a adesão da sociedade —ou da melhor parte dela— aos seus valores; conservadores estão convictos de que o Brasil profundo é conservador como eles.

A esquerda tem certeza de que a massa compartilha sua visão de mundo, seu conceito de justiça e sua ideia do papel do Estado; a direita tem certeza de que qualquer pessoa lúcida e bem informada não tem dúvida alguma sobre a superioridade da sua agenda e de suas políticas. Sim, a mente costuma nos pregar esta peça: a de que os outros é que são minoria —as pessoas sensatas pensam como nós.


Até aí, nada grave, certo? Certas ilusões respondem às nossas necessidades de obter validação social, e nada há de mais reconfortante e tranquilizador do que a convicção de que estamos com a maioria —mesmo que seja uma convicção falsa.

O problema é que, cedo ou tarde, indivíduos que sustentam opiniões que se creem majoritárias, mas não são, acabam se deparando com decisões políticas ou resultados eleitorais que não correspondem às suas próprias visões. Por não serem capazes de se entender como parte minoritária da sociedade, o resultado não é apenas frustração: é ressentimento. Como aceitar que uma maioria pense como eu e, ainda assim, as coisas continuem sendo decididas de outra maneira?

Um artigo deste ano dos pesquisadores alemães Steiner, Landwehr e Harms, na Political Psychology, mostra uma clara correlação entre a crença ilusória, por parte de minorias, de serem parte de uma maioria silenciosa, e o populismo de direita que por lá anda prosperando. Afinal, se os nossos interesses não encontram canais de expressão na política institucional, é porque a elite, corrupta e anti-povo, não ouve a maioria, bloqueia sua voz e passa por cima da vontade popular.

A essa altura, a crítica ao sistema político vira ressentimento contra "as elites" e, mais um passo adiante, a política se transforma em uma guerra moral entre "o povo" e "os corruptos". Nesse caso, sobra até para "a democracia que está aí", supostamente distorcida pela elite traidora e corrupta —e, portanto, passível de substituição.

Essa crença ilusória de que somos maioria está ligada não apenas à hostilidade contra as instituições, mas também à intolerância contra a simples discordância. Se a maioria pensa como eu, então é justo que minha opinião prevaleça e que a suposta minoria ponha-se em seu lugar. E se alguém ousa discordar, o problema não está na diferença entre visões, mas em uma falha no caráter de quem diverge.

Divergir da política pública predileta de cada grupo, portanto, não é expressão de uma diferença legítima, mas uma declaração de guerra moral. As cotas dos identitários, a defesa da família "como está na Bíblia" dos conservadores, a centralidade do enfrentamento da desigualdade da esquerda, a crença na superioridade da gestão privada da direita —tudo isso está fora de discussão.

É intocável, mesmo em nível argumentativo. E qualquer política pública em contrário será considerada uma abominação. Na raiz de tudo, está a certeza de que a maioria compartilha nossas convicções, de que a sociedade não está dividida ao meio e de que os minoritários são sempre os outros.

No fundo, essa convicção nos poupa do esforço de abrir espaço para buscar dados, escutar, revisar nossas certezas. Essa ilusão de consenso nos permite permanecer no conforto das nossas bolhas, certos de que representamos o bem, o povo e a verdade.

O outro lado vira ameaça; o pluralismo, um ruído incômodo; "essa democracia que está aí", um estorvo que atrapalha o cumprimento do destino moral do nosso grupo.

Talvez o maior desafio para a democracia hoje não seja apenas o ódio ou a desinformação, mas essa fé cega de que já vencemos o debate antes mesmo de ele começar. Acreditar que somos os porta-vozes da maioria silenciosa é uma tentação poderosa, mas perigosa, porque é uma porta aberta ao populismo, à intolerância e à incapacidade de lidar com a complexidade do mundo —ainda mais em sociedades polarizadas e radicalizadas.