segunda-feira, 25 de novembro de 2024

Semeando ódio


As guerras são como as estações do ano: ficam suspensas, a amadurecer no ódio da gente miúda
Mia Couto

Golpe e castigo no Brasil em transe

O inquérito sobre os atos antidemocráticos, a trama de golpe de Estado e o uso da desinformação como estratégia de desestabilização da democracia chegou aos estágios finais, após dois anos de investigação. A Polícia Federal indiciou formalmente Jair Bolsonaro, toda a cúpula militar da Presidência, o delegado Alexandre Ramagem, da Polícia Federal, ex-chefe da Abin, e o presidente do PL, Valdemar da Costa Neto, por tentativa de golpe de estado, tentativa de abolição violenta do estado democrático de direito e por organização criminosa. Foram 36 indiciados, entre eles 24 militares, além de Bolsonaro. A única exceção entre os oficiais palacianos foi o ex-secretário-geral da Presidência, general Luiz Eduardo Ramos.

Os golpistas foram reunidos em seis núcleos diferentes: desinformação, jurídico, operacional, inteligência, oficiais de alta patente e responsável por incitar militares a apoiar o golpe. A Procuradoria-Geral da República deve oferecer denúncia contra todos. Muitos dos oficiais de alta patente eram do grupo de elite do Exército, as Forças Especiais, os "kid pretos".

O grande ausente é o general Ramos, também da cúpula militar palaciana. Não é crível que um general saído do comando do 2º Exército em São Paulo para ocupar a Secretaria de Governo e depois a Secretaria-Geral, tendo como seu "vice" o general "kid preto" Mário Fernandes, principal idealizador do plano "Punhal Verde-Amarelo", não saber, nem ter participado da conspiração pelo golpe. O general Fernandes, em mensagem a ele, que era seu superior imediato, trata do golpe e o chama de "kid preto".

Esse foi um golpe estimulado, idealizado, tramado e planejado por toda a cúpula militar da Presidência da República, no governo Bolsonaro. Ele foi o chefe político e comandante supremo desses oficiais superiores em cargos estratégicos. Após o julgamento na Suprema Corte civil, os militares devem ser julgados, também, no Superior Tribunal Militar. Será a primeira vez que oficiais responderão a IPMs por crime político. Espera-se que os golpistas sejam punidos de forma exemplar e, com agravantes por serem de alta patente, estarem em funções de grande responsabilidade, vários deles em posições cujo mandato incluía a obrigação de defender a integridade do Estado Democrático de Direito.

Foi um golpe inacabado e é precisamente porque não se consumou que pôde ser investigado e será julgado. Golpes consumados cancelam o Estado Democrático de Direito e se asseguram a imunidade. Como fizeram os militares de 1964, que forçaram um Congresso sitiado a incluí-los na anistia a suas vítimas, em troca de uma abertura política negociada. O tipo penal é tentativa de golpe de Estado, isto é, tentar depor o governo legalmente constituído, com emprego de violência ou grave ameaça. O outro tipo penal é tentar abolir o Estado Democrático de Direito, com emprego de violência ou grave ameaça, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais. As penas são leves diante da gravidade dos crimes, no máximo 12 anos de prisão, para cada crime.

Mesmo a pena agravada em um terço por ocupar os mais altos postos de comando não guarda proporção com a seriedade dos crimes e a oportunidade que um golpe desse tipo abre para crimes hediondos, como tortura e execução de adversários. O organograma do Gabinete de Crise previsto para logo após a deposição e morte de Lula, Alckmin e Moraes, que seria comandado pelos generais agora indiciados, Heleno Augusto e Braga Netto, previa uma "Assessoria de Inteligência" encarregada de ações de "inteligência e contrainteligência, nos níveis federal, estadual e municipal". Quem viveu os anos de chumbo, sabe no que se tornaram esses aparatos de "inteligência e contrainteligência" das Forças e do SNI.

Pelo menos se todos os envolvidos no plano de golpe e abolição do estado democrático de direito, mentores, financiadores e operadores, forem condenados pela pena máxima, acrescida de seus agravantes, passarão uma boa temporada encarcerados. Seria o fim da impunidade crônica que caracterizou o tratamento judicial de crimes políticos no Brasil e da leniência com as tramas golpistas, inclusive, aquela que terminou nos 21 anos de ditadura militar e abusos aos direitos humanos em seus porões. O inquérito do golpe não estará completo até que toda a cúpula de responsáveis por seu planejamento, custeio e operação sejam punidos, inclusive, aqueles que escaparam ao indiciamento no primeiro relatório. Esperemos por outros.

Sérgio Abranches

Macondo é aqui

As revoluções, ou suas respectivas tentativas, têm um aspecto ridículo que nunca deve ser desprezado. O realismo mágico existe, não é invenção de escritores do quilate de Gabriel Garcia Marques. Eles perceberam o fenômeno na política latino-americana. Nestas histórias, há sempre um general, cheio de medalhas no peito, a se proclamar o benefactor da Pátria, em nome da defesa das instituições, da moral e dos bons costumes, que baixa o cacete nos opositores. Às vezes em nome de Deus.

Não será surpresa se, dentro de alguns anos, tudo isso que a Polícia Federal descobriu seja esquecido ou considerado ilegal. Foi assim com a operação lava-jato, que encontrou uma roubalheira abissal nos negócios da Petrobrás. Apesar das confissões, feitas em juízo, de repente, todos foram inocentados. Aqui não há memória.

A Polícia Federal colocou o guiso no pescoço do gato. O capitão Bolsonaro utilizou todo o período de seu governo para tramar contra as instituições nacionais. Ele esqueceu ou não teve competência para governar. Não inaugurou uma única escola, não avançou um passo no sentido de colocar o país em posição melhor no contexto internacional. Frequentou colóquios internacionais como personagem exótico, que abandonava o local dos encontros de autoridades estrangeiras para fazer refeições em restaurantes de comida rápida. Vendeu as joias recebidas como presente em visitas de estado que fez, representando o Brasil. Frequentou os quarteis durante os quatro anos de seu mandato. E concedeu generosos aumentos de salário aos militares.



Roteiro muito semelhante ao trilhado por Nicolas Maduro, o homem forte da Venezuela, que nos últimos tempos passou a fazer críticas abertas ao presidente Lula, de quem era amigo íntimo. Ele quebrou a PDVSA, a petroleira venezuelana, entregou os melhores cargos para seus correligionários, fechou os olhos para o tráfico de drogas e colocou os garimpos de ouro à disposição dos militares.Encheu o peito de medalhas, o que lhe concedeu o direito de prender, torturar e matar opositores. De vez em quando conversa com o falecido Chaves por intermédio de passarinho que pousa na sua janela. Tudo em nome do pobre do Bolívar, que apenas comandou a independência das colônias espanholas na América do Sul. O libertador morreu tuberculoso. Sua mulher, Manuela Sáenz, chamada de la libertadora, viveu seus últimos anos vendendo pasteis em Guayaquil, Equador.

Esta é a nossa América do Sul. Não esquecer a paixão dosargentinos pelo cadáver de Evita Peron que perambulouinsepulto durante anos e viajou entre Espanha e Argentina. No caso brasileiro, o presidente ao invés de governar passou a tramar contra as instituições de seu país. Ele teve todos os instrumentos ao alcance da mão. Tinha a caneta, a polícia, a maioria dos parlamentares e apoio popular. Decidiu caminhar pelo lado escuro da política. Perdeu a eleição por incompetência e incumbiu militares de forças especiais do Exército de matar o presidente da República,o vice e o então presidente o Tribunal Superior Eleitoral. Coisa de amador. Como acontece na melhor literatura latino-americana sempre dá tudo errado, seja porquealguém falou demais, ficou bêbado ou chegou atrasado na hora fatal. Ou, ainda, sujou as calças.

Não havia o menor risco de dar certo. Eles fizeram o ensaio geral no dia da diplomação de Lula e Alckmin. Promoveram a maior baderna no centro de Brasília. Chegaram a tentar invadir a sede da Polícia Federal. A PMDF limitou-se a olhar. Mas o golpe, ou o que restou, dele, já estava em curso. Depois veio o oito de janeiro, que foi claramente conduzido por gente do ramo. A invasão do Congresso pelo teto, com apoio de uma escada de cordas, a utilização de água para reduzir o efeito do gáslacrimogêneo, denuncia a presença de especialistas. Os militares colocaram dois tanques de guerra para defender oenorme acampamento de manifestantes, onde eram servidas três refeições por dia. O pessoal tinha dinheiro.

Naquele dia, Lula estava em Araraquara, interior de São Paulo. Foi o secretário executivo do Ministério da Justiça, Ricardo Capelli, que teve a coragem de entrar no quartel general do Exército e determinar a retirada dos manifestantes da frente das instalações miliares. Todos foram presos. Agora a Polícia Federal chegou aos mandantes. Eles são herdeiros do falecido ministro da guerra, Sylvio Frota, de quem o general Augusto Heleno foi ajudante de ordens. Ele foi exonerado pelo presidente Ernesto Geisel, por ser contra a redemocratização do país

Se tivessem conseguido dar o golpe, além de prender, torturar, matar e censurar a imprensa, eles iriam brigar entre si. Jamais generais admitiriam bater continência paracapitão. Bolsonaro correria o risco de ser preso por seus amigos, em nome da defesa da ordem. Macondo não existe somente na literatura de Garcia Marques. Macondo é aqui.