quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

2016: um ano que não deixará saudades, mas que valeu a pena

Não sei se é o calor, que há anos vem-se apoderando da outrora cidade vergel, a principal causa do meu enfastio. Ou se são as notícias de afugentar sono, de todas as origens, tanto indígenas quanto alienígenas. Ou se é, na verdade, o peso da idade, que vai me deixando mais sensível, ao contrário do que muitos pensam, sobretudo os jovens, que só mais adiante, na maturidade, darão valor à vida que gratuitamente esbanjam. A idade, leitor, não torna o velho mais cascudo.

Tento desfiar, um por um, argumentos convincentes (que existem, não sou um parvo!) para explicar aos meus nove netos (de 27, 25, 23, 23, 22, 21, 18, 18 e 11 anos) que vale a pena permanecer em nossa terra e trabalhar para transformar nosso enorme território num país e, finalmente, numa nação. Pedro, o de 11, resiste, com seus argumentos.

No melhor estilo jornalístico, em 1989, o escritor e jornalista Zuenir Ventura, em seu mais festejado livro, “1968: O Ano Que Não Terminou”, retratou acontecimentos, no Brasil e no mundo, que o marcaram para sempre, sobretudo em nosso país. Na época, padecíamos sob férrea ditadura civil-militar, mas havia gente convencida de que residiam nesse regime soluções para nossos inúmeros e cada vez mais complexos problemas. Vinte anos mais tarde, depois de vivermos a decepção de não termos eleições diretas; de saudarmos a vitória de Tancredo Neves nas eleições indiretas pelo Congresso Nacional; e de passarmos pelo pusilânime governo Sarney, com o advento da Constituição Federal de 1988, começamos a respirar, de novo, os ares do bem mais precioso do ser humano – a liberdade, cujo preço, para mantê-lo, continua hoje o mesmo, “a sua eterna vigilância”.

Digo sempre aos filhos e netos: basta uma rápida olhada no que já passou para concluir que outros anos também nos deixaram a impressão de que não terminaram. Esse 2016, por exemplo, é só a amostra mais recente. Um ano horroroso para você, leitor, para mim, para todos os brasileiros, e que, por enquanto, não sentimos, na prática, a melhora (prometida pelo governo Temer) que viveríamos logo depois do impeachment de Dilma Rousseff. Um ano que ainda teve, quase em seu final, a presença trágica de uma brasileira: Françoise Amiridis, casada com o embaixador grego Kyriakos Amiridis há 15 anos, mãe de uma filha de 11 anos, teria sido coautora ou mandante (ou incentivadora) do covarde assassinato do marido, que contou – como não poderia deixar de ser – com a ajuda de um soldado da Polícia Militar do Rio de Janeiro.

Confesso que jamais esperei que, na despedida de 2016, fôssemos nos deparar, em Campinas, com uma barbárie fora de qualquer previsão, cometida por Sidnei Araújo, que matou, além de sua ex-mulher e de seu filho de 8 anos, mais dez pessoas. Sidnei, 46, técnico de laboratório, disputava a guarda do filho e suicidou-se.

Como se não bastassem os horrores que vêm por aí, oriundos da operação Lava Jato, 2017 nos brinda com a matança de 56 presos, no presídio Anísio Jobim, em Manaus, consequência inegável, sem dúvida nenhuma, da omissão criminosa de nossos representantes.

Se você não é um ególatra, e se não tem condições de se escudar na esperança, leitor, jamais aceitará declamar, apenas por declamar, sequer este verso do poeta Ferreira Gullar: “Sei que a vida vale a pena”, para depois concluir: “Como um tempo de alegria/ Por trás do terror me acena/ E a noite carrega o dia/ No seu colo de açucena”.

Fico com o poeta. Ele sempre tem razão.
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Como será 2017? Responda que puder

Na virada do ano milhões de brasileiros jogaram flores a Iemanjá, consultaram os búzios ou cartas de tarô, pediram para a cigana ler as suas mãos. Tudo para saber o que o destino reserva para 2017, se as suas vidas passarão pelo mesmo sufoco de 2016 ou se há sinais de que vai melhorar.

Nunca as divindades foram tão consultadas como agora, tal o mar de incertezas sobre o ano que se inicia.

As previsões vão do apocalipse da “dilmização de Temer” ao otimismo cauteloso, segundo o qual, apesar dos raios, trovões, tempestades e terremotos, ao final do ano Michel Temer ainda residirá no Palácio da Alvorada em um ambiente mais favorável na economia e na política.


A singularidade de 2017 é ser um ano-sanduiche. De um lado, dá continuidade a 2016, com toda a sua pauta negativa, de outro, está imprensado pela agenda de 2018, com as forças políticas agindo para ocupar posições para a sucessão presidencial.

Ou, em outras palavras, é o ano da transição da transição, se essa for entendida como a construção das bases necessárias para o Brasil passar de um país desestruturado pela era lulopetista para o advento de um novo modelo de bases mais sólidas, institucional e economicamente. A consolidação de tal modelo será uma missão dos pós 2018.

Esse caráter do ano em curso aparece com nitidez na área econômica, onde fatores positivos e negativos se combinam. Ao final do ano, o crescimento será raquítico, o desemprego continuará sendo um tormento na vida dos brasileiros e a dívida bruta chegará a 76,2% do PIB.

Mas é preciso levar em conta a movimentação das placas tectônicas da economia. A política macroeconômica pode começar a dar resultados. A inflação de 2016 ficará no teto da meta. Sua tendência aponta para uma aproximação para o centro da meta, em 2017. Ou seja, estarão dadas as condições para uma queda consistente da taxa básica de juros.

As medidas microeconômicas adotadas em dezembro podem surtir efeito no médio prazo, principalmente se Temer conseguir destravar as privatizações e se a recuperação em marcha dos preços das commodities tiver continuidade.

Vista em estado neutro, a tendência é de uma melhoria do ambiente e de um horizonte no qual o Brasil rompa o círculo de ferro do baixo crescimento com inflação e juros altos.

Como a economia não é um estado neutro e sofre a incidência do mundo da política, o presidente vai precisar de muita reza brava, banho de cheiro e proteção dos orixás para se livrar das duas espadas de Dâmocles que pairam sobre a sua cabeça; o julgamento das contas de Dilma e Michel Temer pelo TSE e o maracanã de delações da Odebrecht, que podem provocar um abalo sísmico no mundo da política formal e no seu governo.

José Dirceu dá de barato que 2017 será o ano do juízo final de Michel Temer, razão pela qual expediu uma carta conclamando a militância para ir às ruas e “justiça para todos, a renúncia de Temer et caterva, eleições gerais, Constituinte”.

Em campo oposto, Ronaldo Caiado vai quase na mesma direção, propondo a antecipação das eleições de 2018, e Miro Teixeira engrossa o caldo com sua emenda das diretas, como se fosse o Dante Oliveira redivivo.

A história, porém, não se repete, a não ser como farsa. Nada indica que as massas que foram às ruas pelo impeachment junte seu grito à voz cavernosa do lulopetismo ou de quem está atrás de quinze minutos de glória.

O fim do mundo de Temer pode não acontecer. Aliás, o mais provável é que não aconteça. Sua margem de manobra não se esgotou.

No dia dois de fevereiro, quando os baianos vão ao Rio Vermelho festejar Iemanjá, dará início à sua reforma ministerial, que pode servir tanto para acomodar insatisfações latentes em sua base de sustentação como para lhe dar condições de fazer política também para as ruas; como, apropriadamente, reivindica o governador de Pernambuco, Paulo Câmara.

Por falar na terra do frevo e do maracatu, os profetas do apocalipse deveriam ler a entrevista do sociólogo Marcus Melo sobre o equívoco da tese da “dilmização de Temer”.

O Congresso é hoje a grande casamata do presidente. Até por uma questão de sobrevivência, Executivo e Legislativo devem atuar em dobradinha em torno de uma agenda positiva, o que, indiretamente, favorecerá o ambiente econômico, com a aprovação das reformas da Previdência e outras medidas.

A cigana pode ter enganado quem aposta em 2017 como o ano do inferno astral dos brasileiros. Os astros podem nos ajudar.

Portanto, desde já, um bom ano novo a todos.

Equação difícil: Como recuperar serviços cortando recursos públicos?

Esta equação reflete bem, creio, o grande desafio que está colocado sobre a mesa dos prefeitos que assumiram os cargos agora e também para os governos estaduais, como o do Rio de Janeiro que têm grandes dívidas a resgatar. O passivo existente, como se está vendo todos os dias, tem origem em desregramentos financeiros, mas seus efeitos não se esgotam nesse ponto.

Os serviços médicos, saneamento, segurança e até de limpeza urbana vivem uma calamidade que coloca diretamente em risco a saúde da população que paga pelos efeitos nocivos de fatos que não cometeram e que deram origem a eles. Ontem, por exemplo, para citar o Rio de Janeiro, em municípios da Baixada Fluminense quantidades enormes de lixo se acumularam nas ruas, exigindo providências imediatas.

Os prefeitos de modo geral assumiram com base no compromisso de melhorar os serviços públicos expandindo-os ao nível que a realidade exige. Mas ao mesmo tempo sentaram-se à mesa do poder prometendo cortes de verbas. Não quero dizer que cortes não sejam necessários. Desejo apenas frisar a dificuldade entre as duas fontes da questão tanto administrativa quanto social.
Os cortes necessários não eliminam todos os focos da questão. Pois é preciso que sejam eles acompanhados pelo aumento da receita pública, uma vez que as prefeituras, a exemplo de governos estaduais, encontram-se com grandes débitos acumulados. São contas atrasadas para as quais a explicação lógica torna-se difícil.

Diante desse quadro, é indispensável que as Prefeituras tomem a iniciativa de cobrar o que empresas lhe devem, porque sem isso dificilmente poderão enfrentar o desafio triplo de pagar salários em atraso, melhorar os serviços e recuperar a credibilidade que a população exige de todos aqueles que chegaram ao poder político com base no voto popular.

Não há mágica possível para ultrapassar esse desafio e superar a equação na qual residem as esperanças de populações cansadas de, pelo menos esperar ver cumpridos seus legítimos direitos. Esta é a questão essencial.

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Angel Boligan

A primeira crônica do ano

No velho bar do Soares e no último dia de 2016, encontrei minha turma. Um mal-encarado Mario Batalha repetiu o chavão:

— Interminável...

— A cerveja que ainda não tomamos?

A lourinha gelada, servida pelo sempre bem-humorado Soarezinho, chegou com o resto do grupo.

— Brindemos a mais um ano novo. Que ele não seja campeão absoluto em tudo de que um país não precisa: desonestidade, mendacidade, roubalheira e vergonha — começou o Mendonça, levantando o copo. — E o intelectual e cronista, o que nos diz?

Olharam para mim. Sorvi um largo gole do meu Joãozinho Andarilho e pensei para fora.
— Essas épocas de Boas Festas me deixam saudoso. Eramos seis irmãos: a vida levou a metade. Gostaria de voltar a acreditar em Papai Noel, no Brasil, no mundo, no progresso e no futuro. Mas perdi minha inocência.

— Fomos treinados para isso — disse o sociólogo Fuldêncio. — A solução estaria em algum lugar do futuro, mas eu vejo que ele está no presente, porque o futuro encolhe a cada dia. O desastre ecológico sintoniza o fim do amanhã e do próprio planeta. Teria falhado a teoria evolucionista?

— Com essa chamada “civilização” que confunde avanço tecnológico com superioridade moral, sem dúvida — respondi.

— É triste pressentir que o futuro nos escapa e se transforma numa “pós-verdade”. Aliás, moda é inventar novos rótulos para velhas garrafas. “Melhor idade” para velhice, “disfunção erétil” para broxada e “pós-verdade” para mentira e ignorância. Isso que a internet, infelizmente, também dissemina. Ao contrário do que se dizia, quem muito se comunica se trumbica! — falou o Levy, com a segurança dos comentaristas políticos.
Alguns riram e pensaram no Chacrinha. Continuei:

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— O futuro era tudo para nós, meninos parcialmente educados pelo cinema americano. Um dia donos de automóveis e namorados daquelas louras de cabelos esvoaçantes que não tinham pai, mãe ou parentes. Moravam sozinhas...

O ano novo leva ao passado, e eu recordei como víamos o nosso futuro nos quadrinhos do Flash Gordon, o herói interplanetário.

— E lutava contra o imperador Ming do planeta Mong — lembrou meu tio Mário.

— Acho que era o oposto: contra o Mong do planeta Ming! — soltou, sorrindo, tio Silvio...

— E que mundo imenso era aquele — falou o engenheiro Naninho, com a juventude dos seus 82 anos. — Lembra, Roberto, o dia em que pegamos um mapa para localizar a tribo de Muviro, o amigo africano de Tarzan? E quando discutimos se as cidades perdidas de Castrum Mare e Castrum Sanguinare representavam Atenas e Esparta transplantadas para o universo de Edgar Rice Burroughs?

— Tempos de Papai Noel...

— Você vai escrever sobre o quê? — perguntou o professor de Línguas Mortas Mario Roberto.

— Não sei. Talvez meu tema seja sobre o começo, pois vai ser a primeira crônica do ano. O inaugurar, o abrir, o começar... Inícios e genêses, prefácios e prólogos, a primeira letra do alfabeto sempre são bons para escrever. O tempo dissolve tudo, mas sempre haverá um primeiro banho de mar na Praia das Flechas.

— Eu choro quando a vejo — disse o nosso militar reformado Celso, triste, consolando-se com mais uma cerveja.

— Sem dúvida, vou falar do começo, mas não posso deixar de pensar no fim. Porque um dia ele virá... É curioso — continuei. — No Ocidente, o futuro sempre foi maior do que o presente. Preocupar-se com o presente, o aqui e agora, era a missão dos revolucionários que rejeitavam um paraíso no outro mundo. Já nas sociedades que tenho estudado, as tais “tribos primitivas”, passado, presente e futuro são, de um ponto de vista cósmico, uma mesma coia. Como disse Lévi-Strauss, as sociedades tribais são fieis a si mesmas. Nós, ao contrário, pensamos em ir para Marte sem termos nos resolvido aqui na Terra.

— Que está sendo destruída — disse o Mauricio, o nosso fazendeiro falido pelo agronegócio.

— Acho que o segredo da vida está em como construir um espaço entre a primeira e a última vez...

O sexo da esquerda

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Diferentemente dos anjos e dos partidos de direita, a esquerda tem um sexo. Declara-se feminista, como o PSOE espanhol desde a liderança de José Luis Zapatero; ou quer feminizar a política, como o Podemos, partido fundado na Espanha em 2014. A esquerda ganhou rótulos. Além de socialista, é ecologista, feminista e defensora das minorias. Essa diversidade oferece oportunidades, mas também riscos.

Por um lado, a esquerda se adaptou às mudanças sociais que dizimaram seu eleitorado clássico, os trabalhadores homens. Não se pode viver da nostalgia e, no século XXI, a defesa da igualdade deve incorporar considerações culturais, de gênero e de orientação sexual. A esquerda faz bem em propor medidas contra a discriminação de qualquer grupo em qualquer frente: escola, trabalho ou esfera privada.

Mas tudo o que há de bom nessas políticas integradoras há de mau no discurso político que as acompanha. Esse é o tendão de Aquiles da esquerda contemporânea. À custa de insistir nos direitos de alguns grupos, a esquerda deixou de ser vista como representante da sociedade em seu conjunto. Caiu no que Bo Rothstein, em relação à Europa, e Mark Lilla, em relação aos Estados Unidos, denunciam como a política da identidade. A esquerda enfatiza mais as diferenças entre os distintos grupos sociais do que as semelhanças entre todos os cidadãos.

A falida campanha de Hillary Clinton é uma séria advertência para os progressistas de todo o mundo. Hillary substituiu uma visão geral para o país por menções a grupos concretos: afro-americanos, latinos, LGTBI e, sobretudo, mulheres. Em princípio, parecia ser um bom marketing político. Particularize seu produto. Coloque nome e sobrenome, sexo e etnia em seus potenciais clientes. Mas a política não é como a moda. Quando você tenta atrair um grupo concreto, aliena outro. Nesse caso, o homem branco.

A esquerda em muitos países corre o perigo de escorregar na mesma ladeira: quando a defesa de políticas para os mais desfavorecidos desemboca em um conflito de identidade. Para evitar isso, os progressistas têm que ser como os anjos: inteligentes e assexuados.

Um mito e um clássico

Massacre de Manaus mostra que o país não é civilizado, mas ainda ha esperanças

Nascido em 1903, o londrino Kenneth McKenzie Clark foi um dos mais conhecidos intelectuais de sua geração. Escritor e especialista em História da Arte, estudou na Universidade de Oxford e aos 30 anos já era diretor da National Gallery, e no ano seguinte, superintendente da Royal Collection. Professor em Oxford e chanceler na Universidade de York, aos 35 anos foi ordenado cavaleiro, depois a Rainha Elizabeth lhe outorgou o título de barão Clark de Saltwood, no Condado de Kent. Provocador, costumava ironizar o estágio da evolução social em meados do século passado. Dizia: “Civilização? Jamais conheci nenhuma. Mas sei que, se algum encontrar alguma civilização, saberei reconhecê-la”.

Lord Kenneth Clark morreu em 1983 sem ter conseguido encontrar uma verdadeira civilização na face da Terra. Mas agora, 35 anos depois, algumas sociedades evoluíram bastante e o grande pensador britânico certamente já poderia vislumbrar a existência de uma quase civilização nos países nórdicos e na Suíça, embora ainda deixem a desejar em vários aspectos.


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Se avaliasse o Brasil neste início do Terceiro Milênio, Clark constataria que o país nada tem de civilização, mas nada mesmo. Pelo contrário, vive em meio à barbárie, provocada pela insistência suicida de tentar fazer com que a riqueza total possa conviver com a miséria absoluta. E qualquer idiota percebe que isso jamais dará certo.

Mesmo sob a barbárie, que transmite ao exterior a imagem de uma sociedade violenta e corrupta, ainda assim o Brasil tem muitos atrativos e continua a receber turistas do mundo inteiro. Mas verdade seja dita, a maioria dos estrangeiros vem atrás de alegria, para participar das grandes festas, como Réveillon e Carnaval, e grande parte dos turistas busca mais especificamente o turismo sexual, que inclui até mesmo pedofilia, sejamos francos.

Nossa imagem no exterior está péssima, massacrada pela insegurança pública nas grandes cidades e pelas mortes de estrangeiros em pontos turísticos. Mesmo assim, as atrações do Brasil são tantas que eles não resistem, e aí está Leonardo DiCaprio que não nos deixa mentir. As celebridades vivem por aqui e quase sempre chegam dissimuladamente. Certa vez, eu e meu filho entramos no elevador no Aeroporto do Galeão e demos de cara com Alec Baldwin e Kim Bassinger, que estavam de passagem, rumo ao Amazonas. Aliás, se fosse bem trabalhada, a Amazônia seria o maior pólo turístico do mundo. Um dia será. Mas agora esse importante polo turístico sofreu um baque, com o massacre no presídio privatizado.


O fato concreto é que o Brasil está glauberianamente em transe. É um país maravilhoso e sinistro, ao mesmo tempo. Quinto maior do mundo em extensão e número de habitantes, a oitava economia do mundo, tem um clima ideal para curtir a natureza e viver à vontade, ao ar livre. Mas o Brasil está dividido e desgovernado. Precisa ser passado a limpo, para começar de novo e se tornar o país do futuro de Stefan Zweig, e isso tem de acontecer o mais rápido possível.

A nova geração de delegados federais, procuradores da República, juízes federais e auditores da Receita está mostrando que isso é possível, apesar do claro boicote que sofrem das cúpulas dos três Poderes. O trabalho desses jovens na Lava Jato tem uma força descomunal, está destinado a servir de exemplo nos Estados e Municípios, e esse bendito fenômeno é irrepreensível, jamais será vencido por articulações de bastidores na calada da noite. Essas manobras que ainda são tentadas no Planalto, no Congresso e no Supremo chegam a ser patéticas e ridículas. Este país vai mudar, porque nós queremos mudar. E isso já está acontecendo. Agora, é só uma questão de tempo.

Tudo passa, quase nada fica

As nuvens que estão ali agasalhadas numa quase baixa altura um pouco acima do sol nascente devem ser as vencedoras de alguma olimpíada que a noite distraída encomendou.

Vencedoras da corrida e por isso, só por uma madrugada, amancebadas com o sol, as nuvens agora se banham em raios dourados que refletem sobre as águas do lago realçando o branco das garças, o verde das arvores e o cinza dos prédios ao longe em derredor.

Isso tudo e mais o enorme azul que se esparrama pelo céu denunciando os arquipélagos das nuvens fracas, sem brilho.

Penso no Eclesiastes 4/1 –“ Depois, voltei-me e atentei para todas as opressões que se fazem debaixo do sol; e eis que vi as lagrimas dos que foram oprimidos e dos que não tem consolador, e a força estava do lado dos seus opressores; mas eles os oprimidos, não tinham consolador.”

É terrível viver sob a opressão e não ter em quem confiar. Não que faltem profetas. Há profusão deles. Não que a indiferença campeie sufocando os clamores nas cidades e nos campos, inclusive os rumores das selvas seculares.

São incontáveis os que se digladiam querendo a confiança dos oprimidos. A diferença, contudo, é enorme entre obter a confiança e se manter confiável para vencer as refregas em favor dos oprimidos. A história dos que padecem de fome de direitos e de sede de justiça tem páginas e mais páginas manchadas pelas tintas da decepção popular.

Os que não se desgarram da verdade tem dificuldades enormes para obterem a confiança dos oprimidos, o que é compreensível porque as pessoas que sofrem a opressão têm pressa, querem estar livres dos que lhes aperreiam o quanto antes.

Quem é comprometido com a verdade não transige com a mentira. Sabe que concretamente nada é possível de uma hora para a outra. As coisas devem ser feitas com eficácia duradoura. Nada de arremedos.

O líder de verdade não cede à ilusão das promessas miríficas, aliás, não cede a ilusão nenhuma. Pode despertar esperanças? Sim. Afinal, agarrar-se a uma esperança não é agarrar-se a uma ilusão.

A mentira que move os falsos profetas, e eles são tantos e até incontáveis, é pródiga nas miríades, convincente nas promessas inalcançáveis que eles inventam e despertam. Compreensível que os oprimidos mais se inclinem em confiança aos falsos profetas.

A multidão condenada à opressão das desigualdades sociais, à tirania dos seus direitos, à sonegação da sua dignidade, à cegueira da desinformação pela falta total de instrução escolar, é presa fácil da demagogia, a qual nem existiria se o seu oxigênio não fosse a mentira.

Demagogo é o especialista em dizer às pessoas aquilo que elas estão exatamente querendo ouvir. Não lhe interessa se o que diz é viável, se tem alguma aparência de verdade ou se é descarada mentira. Interessa, sim, atrair a confiança da multidão ou de uma só pessoa para depois então vitima-la, lhe frustrando a esperança não sem antes usufruir tudo nos dividendos que a eventual liderança possa arrecadar.

Penso no Eclesiastes – “depois me voltei e atentei para todas as opressões que se fazem debaixo do sol”. Os oprimidos nem sempre tem ao seu lado quem verdadeiramente os represente e os console.

As nuvens que amanheceram hoje agasalhadas sob o sol já se banharam com os raios dourados e já flutuam no azul, vestidas de algodão. Amanhã serão outras.

Edson Vidigal

Paisagem brasileira

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Itapuã (1954), Georges Wambach (1902 – 1965)

O triunfo da tolice

A cada início de ano o futuro desponta como indagação. A expectativa é o grande componente da vida e ansiamos por oráculos, mesmo sem confiar neles. Não visitamos videntes ou cartomantes e similares, mas o longo amanhã ainda nos perturba.

Não podemos recorrer ao sabichão Dr. Google, que guia o planeta, pois sabe apenas do presente e do passado. E nem é preciso. No Brasil, basta analisar, medir e pesar os fatos do cotidiano para vislumbrar como será o amanhã.

Nosso país se intitula República mas, em verdade, vivemos no Reino da Malandragem, sob gigantesca monarquia de tons absolutistas (como as da Idade Média) que, a cada dia, aperfeiçoa os métodos de governança em proveito pessoal dos governantes.

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Felix Nussbaum
Nós, os governados, ficamos de fora. Para disfarçar, Suas Majestades (no plural, pois vários são os reis e as reinações) encobrem o crime atirando sobre nós as migalhas do banquete. Ou não foi esse o presente de Natal com que o presidente Temer “estimulou a economia” ao “liberar” a retirada das contas inativas do FGTS?

Dias antes, o presidente (junto a seu círculo íntimo) aparecera citado entre os grandes beneficiários da corrupção desvendada pela Operação Lava Jato. As delações premiadas dos antigos diretores da Odebrecht revelaram a engrenagem profunda do conluio entre políticos e o setor empresarial. Com detalhes, mostraram algo que nem a mais fantasiosa pitonisa ousaria apontar como possível – os políticos atuavam como serviçais das grandes empresas, cumprindo à risca o que elas mandavam.

Cláudio Melo Filho, então diretor do departamento de subornos da Odebrecht, foi categórico: “Para fazer chegar a Michel Temer os meus pleitos eu me valia de Eliseu Padilha ou Moreira Franco, que o representavam. Era via de mão dupla, pois o atual presidente da República também utilizava seus prepostos para atingir interesses pessoais, como no caso de pagamentos de que participei, operacionalizados via Eliseu Padilha”.

Para evitar erros de interpretação, explicou como funcionava a engrenagem: “O propósito da empresa era manter uma relação frequente de concessões financeiras e pedidos de apoio com esses políticos, em típica situação de privatização indevida de agentes políticos em favor de interesses empresariais nem sempre republicanos”.

A delação premiada foi adiante: na orgia dos subornos apareceram muitos dos chamados “grandes nomes” dos grandes partidos – do PMDB ao PT, do PSDB ao PP e ao DEM – e dos nanicos da “base alugada”. Era início de dezembro e a modorra de fim de ano fez esquecer quase tudo. Até mesmo a reação de Temer, que culpou a “ilegítima divulgação” do conteúdo das delações pelo “clima de desconfiança e incerteza” na economia...

Pouco antes havíamos visto o presidente da República descer da majestade do seu posto e intervir na disputa em que seu velho amigo, o então ministro e articulador político Geddel Vieira Lima, exigia (para mero deleite pessoal) que o ministro da Cultura burlasse a lei, o bom gosto e o bom senso. Em seis meses de governo foi o quinto escândalo envolvendo ministros, três deles da intimidade presidencial.

A monarquia da malandragem tem reinações surpreendentes e, ao mesmo tempo, perigosas. A série de delações premiadas recorda a bomba atômica sobre Hiroshima. Talvez desnude a corrupção por inteiro e leve a vencer a guerra. Todos festejaremos, então, mas sob o impacto do medo, pois talvez não sobre ninguém sem mácula ou sem culpa na área política. Como na radiação nuclear, vestígios imperceptíveis ficarão no ar, poluindo ainda mais o tosco ambiente político e transformando a chusma reles num monturo de messias.

A Alemanha que abriu caminho ao Hitler messiânico era uma balbúrdia financeira, mas sem corrupção. Os aventureiros, porém, são encantadores de serpente e guiam o fanático escondido em nosso ego.

Aqui, cada nova investigação aprofunda mais o horror. Agora atuam também promotores da Suíça e do Departamento de Justiça dos EUA. Os suíços constataram que, de dezembro de 2005 a junho de 2014, mais de 440 milhões de francos (1 bilhão e 400 mil reais) da Odebrecht passaram por bancos de Genebra e Zurique, destinados a políticos e altos funcionários. Cada dólar de propina significava um lucro de quatro vezes mais em sobre preço. Os norte-americanos afirmam que, de 2003 a 2006, mais de R$ 1,1 bilhão foram pagos em propina.

Nada, porém, supera o tragicômico do horror da mais recente descoberta da Polícia Federal envolvendo a “LILS Palestras e Eventos”. A empresa, cuja sigla são as iniciais de Luiz Inácio Lula da Silva, de 2011 a 2016 recebeu R$ 28 milhões das empreiteiras Andrade Gutierrez, Camargo Corrêa, UTC, Odebrecht e de outras boas companhias às quais o ex-presidente prestou serviços.

A Cervejaria Petrópolis pagou R$ 1,5 milhão por três discursos em que Lula – tal qual garoto-propaganda – recomendou “beber a cerveja Itaipava”, ostensiva e abertamente. Em novembro de 2013, em mensagem a Paulo Okamotto, presidente do Instituto Lula, o dono da cervejaria, Walter Faria, apontou até o que ex-presidente devia dizer ao inaugurar nova fábrica na Bahia: “... dizer que ‘a Itaipava é a cerveja preferida por ser 100% brasileira’ e também, como ele já disse em Atibaia – ‘não bebo muita cerveja, mas quando bebo é Itaipava’, seria ideal”.

E Lula discorreu longamente sobre os sabores e benefícios da cerveja!

Essa ridícula mercantilização da figura política não foi superada sequer pelas compras de alimentos e bebidas para o avião de Temer, no total de R$ 1,74 milhão, suspensas depois que a imprensa divulgou o edital com preços duas vezes além dos usuais. Além de “finesses”, iam comprar 600 rolos de papel higiênico e gastar R$ 42 mil em gelo.

O triunfo da tolice seria apenas anedótico e hilariante se não envolvesse aqueles que foram ou são nossos governantes. Vindo deles, é afrontoso.

Banalização da violência

Ao lado da crise política e econômica que se abateu sobre o Brasil, outra tragédia maior se destaca no ano que se inicia. A banalização da morte provocada pela violência. A leitura dos jornais diários, com suas informações sobre o país selvagem em que nos tornamos, é um verdadeiro soco no estômago. Assistir ao noticiário da televisão rouba o sono de qualquer pessoa com um mínimo de noção de civilidade. Dois jovens espancando até a morte, no metrô de São Paulo, um ambulante que tentou defender homosexuais , é das cenas mais dantescas dos últimos tempos. Cada pancada, cada pontapé na cabeça do homem já caído no chão ressoa na consciência dos que ainda preservam lucidez.

Mas não se ouve uma voz oficial sobre o ocorrido. É como se esse tipo de crime fosse completamente aceitável no nosso dia a dia, não havendo razão para providências capazes de impedi-lo, ou ao menos dificultá-lo. Nenhuma reflexão por parte das nossas lideranças políticas sobre as razões para o crescimento desse tipo de violência. Estão todos muito ocupados com a próxima eleição dos Presidentes da Câmara e do Senado e no loteamento dos cargos das suas mesas diretoras. Os dois assassinos foram detidos, é verdade, mas com certeza logo estarão nas ruas novamente. Há também os casos patológicos, como o homem que assassinou 12 pessoas da mesma família, incluindo um filho de oito anos e a ex-esposa. Parece que ninguém fica mais chocado com essas mortes brutais. Anestesia geral. Pelo menos, enquanto não forem atingidos pessoalmente.

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Cerca de 60 presos foram mortos numa penitenciária de Manaus. Logo invocadas as repetidas explicações creditando a carnificina à disputas de quadrilhas ligadas ao tráficos. Uma cadeia com capacidade para apenas 580 pessoas encerrava amontoadas, no momento da tragédia, cerca de1800. Mas a culpa é dos traficantes ali detidos e não da falta de interesse dos nossos dirigentes em resolver os graves problemas das penitenciárias brasileiras e todos os demais que interessam à maioria da população. Não é de hoje que pessoas mais responsáveis e especialistas no assunto denunciam esses fatos, mas somente quanto ocorre a repetição de um novo Carandiru, noticiado pela imprensa, é que as autoridade se manifestam Afinal,precisam dizer qualquer coisa aos jornalistas.

O Ministro da Justiça se dispõe até a enviar forças especiais e a aceitar a transferência de alguns dos delinqüentes para prisões federais. Não é caso para rir, mas ele até vai lá. É claro que não será isso que vai resolver o problema, mas como a autoridade não quer ficar mal na fotografia, é preciso marcar presença, com toda certeza amplamente divulgada pela assessoria de imprensa do Ministério. Mas esse assunto, que logo será esquecido, não interessa aos nossos dirigentes e políticos, ocupados que estão com questões que consideram mais importantes para sua sobrevivência eleitoral.

Em meio a quase 3000 mil acidentes nas rodovias brasileiras, nesse final de ano, cerca de 10% resultaram em mortes, mas isso também virou nota de rodapé. Mais grave é que estamos todos ficando acostumados com a violência, assassinatos brutais, mortes torpes, atrocidades e o estado de barbárie que se implantou no Brasil. Este é um dos mais acentuados sinais do abismo onde caímos. E que mais uma vez expõe o país à critica da imprensa internacional por tão insólitos e macabros acontecimentos. Aos quais se soma o assassinato do Embaixador da Grécia, em circunstâncias que chocaram o mundo civilizado.

É possível apontar dezenas de causas e explicações para esse estado de coisas, mas, entre elas, destaca-se a desigualdade social que tornou o Brasil um local onde sentimos medo,insegurança,desamparo e falta de perspectiva. A desigualdade social é altamente corrosiva e alimenta mais violência. A desigualdade apodrece a sociedade internamente. A repercussão da alta concentração de riqueza no país levou algum tempo para se desnudar. Mas já não é possível deixar de enxergar suas terríveis conseqüências.

Cada vez mais os poucos que detém o máximo de riqueza experimentam uma crescente sensação de superioridade, proporcional aos seus bens materiais. Indiferentes e obstruindo iniciativas capazes de reverter essa situação, prosseguem na sua trajetória egoísta como se fosse impossível construir um mundo melhor e mais justo. Cristalizam-se os preconceitos contra os mais pobres, agravando todas as formas de violência contra o ser humano. A herança da criação desregulada da riqueza é atualmente nosso maior legado.

Sobre o fim e o recomeço

Tenho medo de dezembro e de janeiro. Suspeito de que nesses dois meses morre mais gente do que nos outros. Não consegui estatísticas globais que confirmassem ou desmentissem tal suspeita. Descobri, todavia, que nos países com invernos bem marcados morrem realmente mais pessoas no início dessa estação. Em Portugal, por exemplo, o dia 3 de janeiro é aquele que concentra o maior número de mortes. É como se Dona Morte tivesse uma cota a cumprir. Por vezes preguiça ao longo do ano, adormece, relaxa, e então chega dezembro e ela lembra-se de que ainda tem muitos milhares de cabeças para cortar: levanta-se, pega na grande foice e lá vai, aos tropeções, cortando aqui, cortando acolá. Chega janeiro e o novo ano e a Dona Morte, de tão excitada, continua a ceifar vidas. Só sossega quando surge fevereiro.

Imagino que muitas pessoas doentes resistam até o final do ano por pura teimosia, como atletas exaustos, na maratona, com os olhos fixos na meta que se aproxima. Alcançada esta, deixam-se cair.

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No fundo, as pessoas tenderiam a morrer mais em dezembro porque esse mês carrega a ideia de fim. Acontece, no entanto, que também morre muita gente em dezembro e janeiro vítima de desastres naturais e não me parece provável que os cataclismos consultem o calendário. Por exemplo, o dia em que terão morrido mais pessoas na história da Humanidade, em consequência de um único evento, terá sido a 23 de janeiro de 1556, quando um terremoto devastador atingiu a província de Shaanxi, na China. Calcula-se que nesse dia desapareceram mais de 800 mil pessoas.

Evidentemente, não existe proteção possível contra a crueldade natural de certos meses. Não há nada a fazer. Então, sigo o exemplo das avestruzes e tento enfiar a cabeça na areia. Evito assistir a noticiários. Passo os olhos, rapidamente, pelas capas dos jornais, concentrando-me nas pequenas notícias perdidas nas páginas interiores. Ainda assim, sou atingido, de surpresa, pela morte de George Michael. Não tenho tempo de me recuperar pois logo a seguir morre Carrie Fisher. No dia seguinte, Debbie Reynolds, por sinal mãe de Carrie. Recuso-me a saber os pormenores e é então que encontro uma pequena nota sobre um cientista chinês que dedicou vários anos ao estudo dos stradivarius. Segundo Hwan-Ching Tai, da Universidade Nacional de Taiwan, o som único dos stradivarius originais resulta não apenas das particularidades de construção dos violinos, e da madeira com que foram construídos, mas também dos produtos químicos utilizados, há mais de três séculos, no combate aos insetos que os poderiam destruir. A nota agrada-me porque me parece uma belíssima alegoria já pronta. O que Hwan-Ching Tai nos está a dizer é que o essencial, nesse caso o som único dos stradivarius, depende de algo que ninguém até agora havia sido capaz de ver nem de valorizar. Ou seja, o essencial busca amparo em irrelevâncias. Agradam-me igualmente os pequenos erros que resultam, por puro acidente, em grandes acertos, como esse veneno que se revela capaz de dar à voz dos stradivarius a sua luz soberba.

Esta minúscula descoberta ajuda-me a retornar ao tema do fim e a estes dois meses que atravessamos entre o luto e a festa. Acontece que, enquanto lia o artigo sobre os stradivarius, me ocorria que luto e festa são parte de um mesmo processo. No meu país, em Angola, como em vários outros países africanos, o luto faz-se em festa, uma festa — o kombaritokwê — durante a qual os amigos do falecido se juntam para o lembrar e festejar, comendo, dançando e divertindo-se. A morte, ou a ilusão da morte, é que nos permite intuir a grandeza da vida.

O Natal cristão recuperou, como se sabe, festividades pagãs muito antigas, relacionadas com o culto do sol. Festejando o nascimento de Cristo estamos, mesmo sem nos darmos conta disso, a celebrar o sol. Ou Horus, o velho deus egípcio, filho de Osíris e de Ísis, com um olho que era o sol e o outro a lua. Horus foi concebido estando Osíris já morto. Ísis terá engravidado ao pousar, na forma de um pássaro, sobre a múmia do esposo. Nas suas mãos, Horus carrega as chaves da vida, da morte e da fertilidade. Mais tarde, Horus mata o seu irmão, Set, o deus da escuridão, da violência, da traição, do ciúme, da inveja, das serpentes, dos desertos e da guerra.

Portanto, Horus nasceu e está em expansão. Por ora, pode parecer-nos que é Set quem está a ganhar. Sim, o mês de janeiro de 2017, que estamos estreando, vem sombrio e violento. Há mortos. Há guerra. Há desertos que crescem, e serpentes e ciúme e inveja e traição. Porém, no fim, Horus triunfa. Ao que diz a lenda, cego de um olho. Mas triunfa
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José Eduardo Agualusa