Imagino que muitas pessoas doentes resistam até o final do ano por pura teimosia, como atletas exaustos, na maratona, com os olhos fixos na meta que se aproxima. Alcançada esta, deixam-se cair.
Evidentemente, não existe proteção possível contra a crueldade natural de certos meses. Não há nada a fazer. Então, sigo o exemplo das avestruzes e tento enfiar a cabeça na areia. Evito assistir a noticiários. Passo os olhos, rapidamente, pelas capas dos jornais, concentrando-me nas pequenas notícias perdidas nas páginas interiores. Ainda assim, sou atingido, de surpresa, pela morte de George Michael. Não tenho tempo de me recuperar pois logo a seguir morre Carrie Fisher. No dia seguinte, Debbie Reynolds, por sinal mãe de Carrie. Recuso-me a saber os pormenores e é então que encontro uma pequena nota sobre um cientista chinês que dedicou vários anos ao estudo dos stradivarius. Segundo Hwan-Ching Tai, da Universidade Nacional de Taiwan, o som único dos stradivarius originais resulta não apenas das particularidades de construção dos violinos, e da madeira com que foram construídos, mas também dos produtos químicos utilizados, há mais de três séculos, no combate aos insetos que os poderiam destruir. A nota agrada-me porque me parece uma belíssima alegoria já pronta. O que Hwan-Ching Tai nos está a dizer é que o essencial, nesse caso o som único dos stradivarius, depende de algo que ninguém até agora havia sido capaz de ver nem de valorizar. Ou seja, o essencial busca amparo em irrelevâncias. Agradam-me igualmente os pequenos erros que resultam, por puro acidente, em grandes acertos, como esse veneno que se revela capaz de dar à voz dos stradivarius a sua luz soberba.
Esta minúscula descoberta ajuda-me a retornar ao tema do fim e a estes dois meses que atravessamos entre o luto e a festa. Acontece que, enquanto lia o artigo sobre os stradivarius, me ocorria que luto e festa são parte de um mesmo processo. No meu país, em Angola, como em vários outros países africanos, o luto faz-se em festa, uma festa — o kombaritokwê — durante a qual os amigos do falecido se juntam para o lembrar e festejar, comendo, dançando e divertindo-se. A morte, ou a ilusão da morte, é que nos permite intuir a grandeza da vida.
O Natal cristão recuperou, como se sabe, festividades pagãs muito antigas, relacionadas com o culto do sol. Festejando o nascimento de Cristo estamos, mesmo sem nos darmos conta disso, a celebrar o sol. Ou Horus, o velho deus egípcio, filho de Osíris e de Ísis, com um olho que era o sol e o outro a lua. Horus foi concebido estando Osíris já morto. Ísis terá engravidado ao pousar, na forma de um pássaro, sobre a múmia do esposo. Nas suas mãos, Horus carrega as chaves da vida, da morte e da fertilidade. Mais tarde, Horus mata o seu irmão, Set, o deus da escuridão, da violência, da traição, do ciúme, da inveja, das serpentes, dos desertos e da guerra.
Portanto, Horus nasceu e está em expansão. Por ora, pode parecer-nos que é Set quem está a ganhar. Sim, o mês de janeiro de 2017, que estamos estreando, vem sombrio e violento. Há mortos. Há guerra. Há desertos que crescem, e serpentes e ciúme e inveja e traição. Porém, no fim, Horus triunfa. Ao que diz a lenda, cego de um olho. Mas triunfa.
José Eduardo Agualusa
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