quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

Sobre o fim e o recomeço

Tenho medo de dezembro e de janeiro. Suspeito de que nesses dois meses morre mais gente do que nos outros. Não consegui estatísticas globais que confirmassem ou desmentissem tal suspeita. Descobri, todavia, que nos países com invernos bem marcados morrem realmente mais pessoas no início dessa estação. Em Portugal, por exemplo, o dia 3 de janeiro é aquele que concentra o maior número de mortes. É como se Dona Morte tivesse uma cota a cumprir. Por vezes preguiça ao longo do ano, adormece, relaxa, e então chega dezembro e ela lembra-se de que ainda tem muitos milhares de cabeças para cortar: levanta-se, pega na grande foice e lá vai, aos tropeções, cortando aqui, cortando acolá. Chega janeiro e o novo ano e a Dona Morte, de tão excitada, continua a ceifar vidas. Só sossega quando surge fevereiro.

Imagino que muitas pessoas doentes resistam até o final do ano por pura teimosia, como atletas exaustos, na maratona, com os olhos fixos na meta que se aproxima. Alcançada esta, deixam-se cair.

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No fundo, as pessoas tenderiam a morrer mais em dezembro porque esse mês carrega a ideia de fim. Acontece, no entanto, que também morre muita gente em dezembro e janeiro vítima de desastres naturais e não me parece provável que os cataclismos consultem o calendário. Por exemplo, o dia em que terão morrido mais pessoas na história da Humanidade, em consequência de um único evento, terá sido a 23 de janeiro de 1556, quando um terremoto devastador atingiu a província de Shaanxi, na China. Calcula-se que nesse dia desapareceram mais de 800 mil pessoas.

Evidentemente, não existe proteção possível contra a crueldade natural de certos meses. Não há nada a fazer. Então, sigo o exemplo das avestruzes e tento enfiar a cabeça na areia. Evito assistir a noticiários. Passo os olhos, rapidamente, pelas capas dos jornais, concentrando-me nas pequenas notícias perdidas nas páginas interiores. Ainda assim, sou atingido, de surpresa, pela morte de George Michael. Não tenho tempo de me recuperar pois logo a seguir morre Carrie Fisher. No dia seguinte, Debbie Reynolds, por sinal mãe de Carrie. Recuso-me a saber os pormenores e é então que encontro uma pequena nota sobre um cientista chinês que dedicou vários anos ao estudo dos stradivarius. Segundo Hwan-Ching Tai, da Universidade Nacional de Taiwan, o som único dos stradivarius originais resulta não apenas das particularidades de construção dos violinos, e da madeira com que foram construídos, mas também dos produtos químicos utilizados, há mais de três séculos, no combate aos insetos que os poderiam destruir. A nota agrada-me porque me parece uma belíssima alegoria já pronta. O que Hwan-Ching Tai nos está a dizer é que o essencial, nesse caso o som único dos stradivarius, depende de algo que ninguém até agora havia sido capaz de ver nem de valorizar. Ou seja, o essencial busca amparo em irrelevâncias. Agradam-me igualmente os pequenos erros que resultam, por puro acidente, em grandes acertos, como esse veneno que se revela capaz de dar à voz dos stradivarius a sua luz soberba.

Esta minúscula descoberta ajuda-me a retornar ao tema do fim e a estes dois meses que atravessamos entre o luto e a festa. Acontece que, enquanto lia o artigo sobre os stradivarius, me ocorria que luto e festa são parte de um mesmo processo. No meu país, em Angola, como em vários outros países africanos, o luto faz-se em festa, uma festa — o kombaritokwê — durante a qual os amigos do falecido se juntam para o lembrar e festejar, comendo, dançando e divertindo-se. A morte, ou a ilusão da morte, é que nos permite intuir a grandeza da vida.

O Natal cristão recuperou, como se sabe, festividades pagãs muito antigas, relacionadas com o culto do sol. Festejando o nascimento de Cristo estamos, mesmo sem nos darmos conta disso, a celebrar o sol. Ou Horus, o velho deus egípcio, filho de Osíris e de Ísis, com um olho que era o sol e o outro a lua. Horus foi concebido estando Osíris já morto. Ísis terá engravidado ao pousar, na forma de um pássaro, sobre a múmia do esposo. Nas suas mãos, Horus carrega as chaves da vida, da morte e da fertilidade. Mais tarde, Horus mata o seu irmão, Set, o deus da escuridão, da violência, da traição, do ciúme, da inveja, das serpentes, dos desertos e da guerra.

Portanto, Horus nasceu e está em expansão. Por ora, pode parecer-nos que é Set quem está a ganhar. Sim, o mês de janeiro de 2017, que estamos estreando, vem sombrio e violento. Há mortos. Há guerra. Há desertos que crescem, e serpentes e ciúme e inveja e traição. Porém, no fim, Horus triunfa. Ao que diz a lenda, cego de um olho. Mas triunfa
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José Eduardo Agualusa

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