quinta-feira, 22 de julho de 2021

A volta dos que não partiram


A democracia brasileira é alvo de uma gravíssima ameaça, agora revelada. Ameaça armada, tentativa de amedrontar pelo terror
Renan Calheiros. senador (MDB-AL)

Militares golpistas em postos-chave têm tentado amedrontar o país

Os sinais de que um grupo de oficiais generais com ideias antidemocráticas se instalou em postos-chave no governo Bolsonaro aumentam a cada dia. É uma sequência de eventos. Só neste mês de julho houve a nota do ministro da Defesa, Braga Netto, com os comandantes militares, no dia sete, ameaçando a CPI, a entrevista do comandante da Aeronáutica, ao GLOBO, no qual o brigadeiro Carlos Almeida ameaçou claramente o Congresso e o país no dia oito. O comandante da Marinha o apoiou nas redes, no mesmo dia. E o presidente Bolsonaro, também no dia 8, afirmou que “ou vai ter eleição auditável ou não vai ter eleição”. 

É nesse contexto que é publicada nesta quinta-feira, 22, pelo "Estadão" a notícia de que o ministro Braga Netto, no mesmo dia 8, acompanhado dos comandantes militares, mandou um recado ao presidente da Câmara, Arthur Lira. "A quem interessar, diga que, se não tiver eleição auditável, não terá eleições.” Lira teria reagido indo ao próprio presidente para dizer que estaria com ele até o fim, mas que não contasse com ele nos planos de ruptura institucional. A informação das jornalistas Andreza Matais e Vera Rosa sacode o país hoje.

É claro que já preparam as notas de desmentido. O ministro Braga Neto, ao entrar agora de manhã no ministério da Defesa, disse: “é mentira, é invenção”, gritou de longe aos repórteres. Era previsível que diria isso. Mas é típico esse método: primeiro ameaçam, depois negam que o fizeram e repetem que estarão dentro das “quatro linhas da Constituição”. Hoje é o dia de falarem das quatro linhas. O problema é que esse grupo acha que está escrito nas quatro linhas que eles são o poder moderador. Não são. Como todas as instituições estão submetidos à Constituição.

Isso tudo é manobra para amedrontar o país e fazer com que as instituições recuem dando espaço para o bolsonarismo dominar inclusive as Forças Armadas. Há muitos que discordam de tudo isso dentro das Forças Armadas, mas quem está no comando foi colocado lá porque concorda com o projeto de Jair Bolsonaro que nunca foi, e jamais será, democrático. O caminho da venezuelização do Brasil fica mais claro a cada dia.

Só não entende os sinais quem desconhece a História do Brasil. Aqui houve duas longas ditaduras no século 20. A de Vargas foi garantida pelos militares, a outra foi feita pelos próprios militares que governaram o país por 21 anos rasgando a Constituição. É um caminho perigoso para as próprias Forças Armadas que deveriam conter os seus radicais que estão hoje dando o tom dos recados ameaçadores para o país. As instituições não podem subestimar os recados, os sinais, as notas, os tuítes, a tentativa de mais uma vez tutelar o poder civil no país.

O silêncio dos inocentes úteis baixou sobre os bolsonaristas de raiz

Os mais conhecidos devotos do presidente Jair Bolsonaro, aqueles donos de mandatos em Brasília e fora de lá, recolheram-se ao silêncio tão logo ficaram sabendo da troca do general Luiz Eduardo Ramos pelo senador Ciro Nogueira (PP-PI) na chefia da Casa Civil da presidência da República.


Nas redes sociais, entre bolsonaristas dos demais escalões, o silêncio também baixou. Deu-se por conta da perplexidade geral e, naturalmente, de falta de orientação sobre o que poderiam ou deveriam dizer, algo a ser corrigido nas próximas horas ou nos próximos dias. A orientação já está sendo elaborada.

O único devoto com mandato que se arriscou a dizer alguma coisa foi o deputado federal Bibo Nunes (PSL-RS) que, à Folha de São Paulo, dissertou sobre a dinâmica da política, as condições do tempo, a necessidade que Bolsonaro tem de apoio, e sua certeza de que o Centrão não comandará o governo federal.

Os filhos do presidente também emudeceram, até mesmo Eduardo, que na convenção do PSL de 2018, quando seu pai foi lançado candidato a presidente, provocou:

“Eu queria tirar foto de cada um dos senhores aqui, para saber se em 2019, quando o couro comer pra valer, vocês vão se deixar seduzir pelo discurso do Centrão ou se vão se manter firmes e fortes com Bolsonaro”.

A declaração de Eduardo envelheceu. A dicotomia Bolsonaro-Centrão deixou de existir.

Pensamento do Dia

 


O roteirista bêbado

O enredo do governo do presidente Bolsonaro parece ter sido escrito por um roteirista bêbado que, farto de ganhar a vida com trabalhos medíocres, resolveu, no meio do caminho, ter um ataque de sincericídio e reescrever a história como ela é, e não como a encomendaram.

Quando colocou com destaque aquele que seria um dos principais ministros do governo, o general Augusto Heleno, cantando “se gritar pega Centrão, não fica um, meu irmão”, sabia que era mentira, mas engoliu. Do meio para o fim, contou a verdade, e o senador Ciro Nogueira acabou nomeado ministro-chefe da Casa Civil, o ponto nevrálgico de um governo.

O general desapareceu do mapa, talvez envergonhado pelo papel que desempenhou na campanha presidencial. A Casa Civil, aliás, já era ocupada por um general da reserva, Luiz Eduardo Ramos, que também assumiu o governo para acabar com as negociatas políticas e terminou sendo responsável por elas.

Não devia ser tão flexível quanto a relação com o Centrão exige, pois não seria desembarcado do governo sem a menor complacência por Bolsonaro. Soube pelos jornais que sairia da Casa Civil e sentiu-se “atropelado por um trem”. Mas, como “um manda, e o outro obedece”, deve se satisfazer com uma sobra qualquer no governo.

O ministro Onyx Lorenzoni, depois do vexame que passou na televisão afirmando, dramaticamente, apelando até a Deus, que o documento apresentado pelo deputado Luis Miranda era falso, também não se envergonha de pular de ministério em ministério, desde que mantenha uma aparência de poder. Mesmo que essa aparência já não resista aos fatos.

Já foi ministro da Casa Civil, ministro da Cidadania e ministro da Secretaria-Geral da Presidência da República. Agora, recriarão o Ministério do Emprego e Previdência só para ele, uma vingança bolada pelo roteirista bêbado, que havia anunciado no início do governo que seriam apenas 15 ministérios.

Os superministros também se foram. O ex-juiz Sergio Moro, da Justiça e Segurança Pública, foi defenestrado justamente por causa do combate à corrupção que alegadamente o levou ao ministério. O czar da economia, o liberal Paulo Guedes, engole sapos imensos para permanecer no governo. Compreensivo, topa até gastar mais em ano eleitoral, para reeleger seu chefe.

O roteirista está tentando dar o troco, colocando Moro de volta à cena política como possível presidenciável, o nome da terceira via. Mas não sei se conseguirá dar ares de credibilidade a uma mudança tão drástica, que já fez com que Moro fosse considerado “suspeito” por um Supremo Tribunal Federal que muda de posição da noite para o dia e festeja a chegada de um futuro ministro, André Mendonça, que abre processos antidemocráticos contra os adversários do presidente.

A prisão em segunda instância já foi bandeira de Bolsonaro, mas agora ser contra ela virou ponto positivo para o indicado. Essas mudanças já provocaram consequências graves, como a absolvição, soltura ou anulação de vários processos envolvendo políticos apanhados na Lava-Jato, e não sei se o roteirista conseguirá revertê-las a tempo.

Um deles, Ciro Nogueira, já chegou ao topo do governo que iria prendê-lo, e o roteirista imaginou um advogado exibicionista, suposto defensor das liberdades públicas, mas que se especializou em soltar ladrões, dizendo que os vários processos a que Nogueira responde não o impedem de assumir um dos cargos mais importantes da República. Mas aí já seria imaginação demais.

Nem tanto, pois mandar um vice-presidente da República, ainda por cima general, ir a Angola para, como missão oficial, defender a Igreja Universal das acusações de corrupção naquele país é além de qualquer criatividade. Acho que o roteirista quis se vingar e agora está perdido em seu roteiro bêbado.

Até colocar o ex-presidente Lula e o atual presidente Bolsonaro criticando ao mesmo tempo, como se tivessem combinado, a possibilidade de haver uma terceira via para o eleitorado brasileiro, ele colocou. Fica tão óbvio que os dois querem a mesma coisa, um contra o outro no segundo turno, que acho que o roteirista exagerou na dose.

Quem precisa ir ao espaço?

Acompanhei os recentes passeios ao espaço sem entusiasmo. O primeiro motivo é apenas umbiguismo da minha parte. Não entendo a pressa nessa corrida quando ainda não podemos ir até a esquina sem medo de morrer de Covid.

O que mais me chamou a atenção realmente foi o momento inapropriado. Quando o mundo tem coisas urgentes, como resolver a pandemia em curso e encarar a desigualdade, que piorou justamente nos últimos anos, entrar num foguete e dar um rolê de alguns minutos parece uma versão mais sofisticada das motociatas promovidas por Jair Bolsonaro.

Ok que foi sem o mau gosto e a cafonice do bolsonarismo e, importante, sem o uso do dinheiro público do contribuinte brasileiro, mas uma demonstração de que, muitas vezes, a diferença entre meninos e homens é o preço do brinquedo. O leitor vai dizer que estou de má vontade e que deveria buscar informações sobre a importância dos programas espaciais. Tudo bem. Meu marido, ao ler este meu texto, não gostou.


Estou ciente de que, graças às explorações, temos novas tecnologias, que vão do GPS a previsões meteorológicas acuradas. Inúmeras pesquisas são conduzidas no espaço, aprendemos mais sobre asteróides e cometas, tentamos achar outro lugar para viver se as coisas desandarem de vez na Terra. E, claro, o ser humano tem o DNA de explorador.

Mas o fato é que, antes de pensar em ir ao espaço, eu queria poder abraçar as pessoas. Há anos planejo mostrar os Lençóis Maranhenses ao meu conje, um lugar tão inusitado e esplendoroso que parece outro planeta. Quero ir ao Samba do Trabalhador, um evento que não conheço, apesar de já morar há nove anos no Rio. Nunca estive em Ilha Grande... Acho que passear de foguete pode esperar. Daí o meu desdém.

Entendo que esse pulinho ao espaço pode ser mais um grande passo para a humanidade, mas por agora só gostaria de ir ao meu boteco de estimação sem usar máscara.

Guerra política na igreja da paz

São 8h da manhã de domingo, 18 de julho. Do lado de dentro da Paróquia da Paz ―uma igreja católica instalada no coração de uma ilha bolsonarista de Fortaleza―, os bancos de madeira vão sendo ocupados por pessoas vestindo camisas verde-amarelas, algumas delas com o nome do presidente Jair Bolsonaro estampado nas costas. O dress code pouco usual para uma celebração religiosa e divulgado em vários vídeos nas redes sociais tinha uma razão: mostrar a articulação de um grupo de aproximadamente 20 pessoas, formado majoritariamente por militares reformados e empresários, contra o credo progressista do padre italiano Lino Allegri, de 82 anos, que algumas vezes por mês celebra missas naquela paróquia.

Adepto da Teologia da Libertação e leal à visão de que é papel da igreja adaptar o Evangelho à realidade atual em defesa dos pobres, Allegri viu formar-se contra si uma espécie de patrulha aos seus sermões depois de fazer críticas, no início do mês, ao descaso de Bolsonaro na crise sanitária e dizer que o presidente também tem responsabilidade pelos mais de 544.000 mortos registrados no país. O grupo, apelidado pejorativamente pelos outros frequentadores de “pijamas patriotas”, achou que a missa daquele domingo seria celebrada por Allegri e compareceu em peso. Todos prontos para reagir caso ele voltasse a criticar o Governo. Do lado de fora, policiais militares vigiavam para evitar que a situação saísse do controle.


Mas Allegri não celebrou a missa na Igreja da Paz naquele dia por “orientação” de seus superiores, que argumentavam questões de segurança. O padre acatou. Já havia sido intimidado logo que acabou a missa de 4 de julho, o fatídico dia em que fez críticas à política bolsonarista frente a uma das maiores tragédias sanitárias do país. O culto transcorreu normalmente, mas após a missa um grupo de cerca de oito pessoas entrou na sacristia aos gritos. “O senhor deveria rezar pelo presidente, que é um exemplo de cristão”, ouviu. Tentou dialogar sobre o que significava ser um bom cristão, sem sucesso. “O senhor deveria voltar para a Itália. Nós não precisamos do senhor aqui”, bradou outro fiel bolsonarista, segundo fontes ouvidas pelo EL PAÍS.

Na missa do domingo seguinte, uma nota da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e outra de várias entidades foram lidas em solidariedade ao padre Lino Allegri, que não estava presente. Uma das entidades apoiadoras era o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST). Foi o suficiente para que um coronel reformado do Exército levantasse e desse gritos em protesto. “Este padre transformou o altar em um palanque político”, bradou. Acabou deixando a igreja após alguns fiéis gritarem “respeito”. O militar passou então a organizar, com outros bolsonaristas, uma presença massiva à igreja em protesto ao que considera “comunismo”. No último domingo, 18, eles comemoravam o sucesso do boicote em áudios que circulavam pelo Whatsapp. “Estava cheio de general, coronel, foram tudo de verde-amarelo. Não apareceu um dos vermelhos. Os padres pediram arrego, perdão. ʽAqui é pra rezarʼ... Já afastaram o padre lá. (...) Foi uma beleza a missa com a nossa presença”, diz um integrante do grupo. “Botamos os comunistas pra correr”, emenda no mesmo áudio. Allegri diz que cancelou uma celebração após ser aconselhado por superiores, mas espera voltar para a Igreja da Paz em breve.

“Foi uma intimidação”, define o padre italiano em entrevista ao EL PAÍS, com uma voz tão baixa quanto assertiva. “O presidente criou uma situação de antagonismo e ódio”, acrescenta ele, que teme que a situação piore com as eleições do ano que vem. Há semanas ele sofre ameaças e xingamentos pelo Whatsapp e pelas redes sociais. O vocabulário usado contra ele e o padre Oliveira Braga Rodrigues ―pároco oficial da Igreja da Paz, que passou a sofrer represálias por lhe dar espaço― é vasto: “comunista safado”, “picareta”, “imbecil”, “desagregador”, “comunista com a batina de padre” e por aí vai. Em alguns áudios, militantes bolsonaristas afirmam que a polícia destacada pelo governador petista Camilo Santana “será pouca” para o que preparam, sem dar detalhes. Santana mandou instaurar um inquérito para apurar as ameaças à segurança do padre.

“A tolerância precisa ser recíproca, mas eles não querem dialogar. Me chamam de comunista e esquerdista. Essas palavras não me ofendem”, diz Allegri. Ele não minimiza a gravidade da intolerância política que nos últimos anos vem ganhando mais espaço nas igrejas. Instado pela Defensoria Pública, aceitou se inscrever no programa estadual de proteção aos defensores de direitos humanos por precaução. Mesmo assim, o padre diz que ainda não perdeu o sono pela patrulha dos autointitulados patriotas.

A trajetória de mais de meio século no sacerdócio ajuda a entender a postura do italiano. Filho de operários, Lino Allegri foi ordenado padre na Itália em 1965. Tentou atuar em seu país como padre-operário, um missionário que atua em ambientes de trabalhadores, mas recebeu negativa de seus superiores na igreja. “Naquele tempo eu era bastante obediente”, ri. Poucos anos depois, na década de 1970, conseguiu ser enviado ao Brasil. Movido por uma forma diferente de viver a religião e ancorado nos resultados do Concílio Vaticano II ―uma série de conferências realizadas entre 1962 e 1965 para modernizar o catolicismo―, Allegri queria mergulhar na vertente da igreja latinoamericana cuja missão extrapola os muros dos templos, pois parte da premissa de que o Evangelho exige a opção preferencial pelos pobres.

Chegou ao país em plena ditadura militar, durante o duro Governo Médici (1969-1974), quando padres considerados subversivos eram presos e reprimidos. Mesmo assim, sempre direcionou sua atuação religiosa para além das paredes da igreja. Trabalhou na Paraíba com comunidades de base, braço da igreja que atua em locais mais pobres. Depois, já no interior da Bahia, viu-se no centro das ameaças de grileiros e fazendeiros a agricultores que lutavam pelo direito à terra. Recebia tantas ameaças de morte ao apoiar os mais pobres que precisou buscar o Ministério da Justiça por proteção. “Eu sabia que não era brincadeira”, diz.

Somente nos anos 1990, Allegri seguiu em missão para Fortaleza, onde abraçou trabalhos sociais especialmente nas comunidades carentes, com apoio a menores em vulnerabilidade e à população em situação de rua. Coordena atualmente a Pastoral do Povo da Rua e, já aposentado, tornou-se também padre auxiliar da Paróquia da Paz, onde faz celebrações pontuais e agendadas a cada início do mês. Seu interesse é trabalhar nas “ilhas de pobreza” como as comunidades das Quadras e Trilhos do Senhor, que resistem na “área nobre” da capital cearense. “Não queria ser pároco nem vigário. Sempre trabalhei nas pastorais sociais”, conta.

Seu perfil progressista, porém, pode soar como um contraste ao perfil conservador e elitista da comunidade que cerca aquela igreja, localizada no bairro de maior IDH (índice de desenvolvimento humano) e com um dos mais caros metros quadrados de Fortaleza, o Meireles. A Igreja da Paz também está a poucos metros do maior palco da direita e da ultradireita fortalezense: a Praça Portugal. É lá que bolsonaristas costumam se reunir para protestar. Já houve manifestações em favor do presidente, contra o Supremo e o Congresso e até em prol da ditadura militar. Curiosamente, o bairro da igreja está na 3ª Zona Eleitoral, a única da capital cearense em que Bolsonaro venceu no primeiro turno das eleições de 2018, desbancando até mesmo o então candidato local, Ciro Gomes.

Padre Lino Allegri conta que, especialmente nos últimos anos, vinha percebendo que parte das pessoas que frequentam aquela paróquia não estava afinada às suas pregações, mas sempre considerou normal que nem todos concordassem com ele. “O jeito que falo e o que prego é igual para ricos e para pobres. O que eu faço é juntar a palavra de Deus com a vida das pessoas. Me sinto mais confortável nas comunidades, mas não agrado a todos lá. Haver discordâncias é normal, mas chegar a este ponto é uma violência e um desrespeito”, afirma.

Ele diz que acredita na igreja que exalta um Evangelho “pé no chão” e que não se fecha apenas às celebrações e ao culto a Deus. Seu papel, aponta, é também trazer reflexões sobre os ensinamentos de Jesus Cristo. “Quando há injustiça social, a gente toma uma posição”, defende. É por isso que, em uma de suas missas, trouxe à tona o assassinato da travesti Dandara dos Santos, linchada por ao menos dez pessoas no Ceará em 2017. “Vocês acham que Deus estava com Dandara ou com os homofóbicos?”, questionou aos fiéis. E deu sua própria visão: “Eu tenho certeza que Deus estava com a Dandara”.
“Há assuntos que não se pode tocar na igreja”

Allegri conta que reações a comentários como este no sermão tornaram-se mais enérgicas nos últimos dois anos, durante o Governo Bolsonaro. O presidente coleciona uma série de declarações machistas, racistas e de ódio a minorias que, nas palavras dele, devem “se curvar às maiorias” ou serão “esmagadas”. “Não quero um Deus como o dele [Bolsonaro] acima de todos. Quero seguir o que Jesus Cristo nos ensinou. Se for para ter um Deus como o dele, prefiro ser ateu. Bolsonaro contraria tudo o que Jesus nos ensinou”, declara o padre, em alusão ao lema bolsonarista “Brasil acima de tudo. Deus acima de todos”. Vários ativistas sociais alertam, desde o início do mandato, que as declarações controversas do presidente têm potencial em estimular a cultura do ódio. “Há assuntos que não se pode tocar. Não se pode usar a palavra pobre na igreja. A Teologia da Libertação é como se fosse o capeta. E eu tenho orgulho de ser da Teologia da Libertação”, segue Allegri, referindo-se à corrente teológica cristã latinoamericana.

Allegri prepara seus sermões com antecedência e, várias vezes, usa o ministério contra a homofobia, o racismo, a intolerância. Não costuma falar em candidatos a cargos públicos ou pedir votos. “Acho que eles têm o direito de votar em Bolsonaro. Vivemos em um Estado Democrático de Direito”, lembra. “Mas o respeito e a tolerância têm que ser recíprocos”, reforça ele. O padre toma muito cuidado ao falar sobre que tipo de política acredita caber dentro dos templos religiosos. “Não sei se essa palavra política é a mais adequada porque as pessoas entendem equivocadamente”, pondera. “A política que cabe na igreja é no sentido amplo, é a do bem comum. É a do Evangelho com os pés no chão. Não acredito que a religião seja apenas um culto a Deus, mas é aquela que deixa as pessoas mais humanas.'

“A fala de padre Lino na Igreja da Paz é como se fosse um corinthiano no meio da torcida do Palmeiras que gritou: Vai Corinthians!”, compara, com alguma dose de humor, o articulador paroquial da Igreja da Paz, Mário Fonseca. “É um público majoritariamente de classe média alta, politicamente ultraconservador e religiosamente pentecostal”, define. O episódio com o Padre Lino Allegri, analisa, não está restrito apenas à intolerância política, mas também ao embate de duas vertentes antagônicas da igreja: uma mais tradicional e focada nas celebrações dentro dos templos (pentecostal); e outra mais alinhada a um modelo defendido pelo Papa Francisco e pelo Movimento Igreja Em Saída, que pressupõe uma atuação fora dos templos e junto às comunidades.

O cientista político Ricardo Moura, que integra a Rede de Observatórios da Segurança e tem acompanhado as mensagens de ódio contra padres nas redes sociais, afirma que há um acirramento no discurso de confrontamento ideológico no país, e a igreja não está isenta de repercutir internamente este tipo de discurso. Os casos de hostilidade a religiosos de perfil mais progressista são vários. Também no Ceará, o frei Lorrane Clementino, da Ordem dos Frades Menores, vem sofrendo ataques pessoais e ameaças de morte por defender a população LGBTQIA+. Moura avalia que esses casos são ainda isolados e estão distantes de lideranças da política tradicional, mas têm potencial de repercutir em 2022.

“São padres que vivenciaram a ditadura, passaram por áreas bastante vulneráveis da cidade na luta por direitos básicos. Quando esta trajetória chega na atual fase, já octogenários, tendo que pedir proteção governamental para que possam exercer seu ministério, é um fato que preocupa. É um ponto de virada na degradação do nosso tecido social importante″, diz. O próprio Lino Allegri vê a hostilidade como um ensaio para as próximas eleições. “É um sinal do que virá no próximo ano, um acirramento violento”, prevê. “As religiões todas deveriam ajudar as pessoas a serem mais humanas.”

Propina e latrina são só rimas podres de vacina

“Geralmente, quando se fala em propina, é pelado e dentro da piscina”, disse o presidente Jair Bolsonaro à porta do hospital Vila Nova Star, em São Paulo, após passar quatro dias de folga, desfilando sem máscara pelos corredores, invadindo sem licença a intimidade de pacientes. E recebendo visitas da mulher, Michelle, e do maquiador dela. Como de hábito, é mentira: não há relação histórica ou factual entre corrupção, nudez e água.

A frase só se justifica pela rima, que não é rica nem pobre, mas podre, como a natureza escatológica das falcatruas. Contém a patranha de outras dez lorotas que lhe sucederam e lógica similar à frase em que o ignorante (de parca inteligência) e ignorantista (quem nega o óbvio) a apoiou: “Se eu estivesse na Saúde, eu teria apertado a mão daqueles caras todos. Ao receber (os representantes) ... ele não estava sentado à mesa. Geralmente, teria uma fotografia dele sentado à mesa e negociando. E se fosse propina, (Pazuello) não daria entrevista, meu Deus do céu, não faria aquele vídeo”. Em geral, feio não é roubar, é ser flagrado.


De fato, ninguém tomaria conhecimento da bandalheira encenada no Ministério da Saúde, em plena vigência de gemelares desgoverno Bolsonaro e pandemia da covid-19, se não houvesse a comissão parlamentar de inquérito do Senado para investigá-la. Depoimentos nela tomados revelaram que delongas nas transações com laboratórios na compra de vacina esclarecem que nunca houve razão ideológica (negacionismo) para isso, mas acertos com picaretas ralé vendendo doses inexistentes de imunizantes (negocionismo) sem o “atrapalho no trabalho” (apud John Lennon) do compliance. Dois bandos recebiam, sob a chefia do intendente incompetente Eduardo Pazuello, atravessadores com reconhecida experiência em negociar com governos e não entregar a mercadoria. Segundo os primeiros depoentes da CPI, o QG de um era a sala do secretário executivo, coronel da reserva do Exército Elcio Franco. Outro se subordinaria ao civil Roberto Dias, egresso do Paraná.

O primeiro compliance zero a oferecer doses com sobrepreço atraente, Francisco Emerson Domiciano, mora em Brasília, “paraíso dos lobistas, dos espertalhões”, segundo Bolsonaro. Mas também tem endereços em São Paulo. Sua empresa Global tinha vendido remédios caríssimos para doenças raras ao Distrito Federal, à época em que o paranaense Ricardo Barros foi ministro da Saúde, no governo Temer. Nunca entregou o que vendeu, nunca devolveu o que recebeu. O líder do governo no Senado, Fernando Bezerra Coelho, atestou sua “lisura”, por nunca ter sido condenado. O primogênito da famiglia presidencial, Flávio, levou-o ao presidente do Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), Gustavo Montezano, para apresentar um projeto de banda larga para o Nordeste, uma “boa ideia” de uma de suas 13 empresas, a Xis Internet Fibra. Flávio mudou-se do Rio para Brasília em 2019. A Precisa Medicamentos intermediou compra de 20 milhões de doses de AstraZeneca, parceira da Fiocruz, por R$ 1,67 bilhão. A verba foi empenhada, o contrato foi suspenso e só agora cancelado. E o laboratório britânico desconhece qualquer entrega de tal vulto. A famiglia em primeiro lugar.

Depois da famiglia, Cristo, conexão entre o clã e o reverendo Amilton Gomes de Paula, presidente do Serviço Nacional de Assuntos Humanitários (Senah, antes Senar, de religiosos). A venda sem compliance foi muito mais volumosa (e, claro, mais vantajosa): 400 milhões de doses. O atravessador é o mais distante dos lobistas de Brasília: Herman Cardenas, dono da Davati, loja de material de construção, e de um escritório de negócios imobiliários, no Texas, EUA. Seu representante no Brasil, Cristiano Carvalho, mora em São Paulo, mas mostrou adestramento nos costumes dos “lobistas” de Bolsonaro: para ele, não existiu corrupção, mas “comissionamento”. Foi nesse negócio que o cabo PM-MG Luiz Paulo Dominguetti acusou Dias de ter cobrado um centavo de dólar de “comissão” por dose de AstraZeneca, de fornecimento “garantido” por um médico amigo do texano da origem do “rolo”.

A World Brands Distribuição, cujos representantes estrelam o vídeo com Pazuello, é de Jaime José Tomaseli, um dos três condenados pela Justiça Federal de Itajaí (SC), a milhares de quilômetros da capital federal, em 2014, por participar de conluio que fraudou documentos de importação de produtos.

O parco espaço destinado a este artigo não comporta a lista dos oficiais da ativa e da reserva das Forças Armadas envolvidos nas negociações tenebrosas que explicam parte considerável dos mais de 540 mil óbitos por covid-19 que teria sido evitada com o uso de imunizantes de laboratórios com compliance: Fiocruz, Butantan, AstraZeneca, Sinovac, Pfizer, Moderna e Johnson.

A diferença dos recentes “lobistas” em relação aos antigos é o ponto comum dos novos: o bolsonarismo de raiz pôs em contato o cabo PM de Minas na ativa e em horário de expediente, Dominguetti, e o “terrivelmente evangélico” Amilton sem agá. O resto é papo de latrina, outra rima podre de propina.