Adepto da Teologia da Libertação e leal à visão de que é papel da igreja adaptar o Evangelho à realidade atual em defesa dos pobres, Allegri viu formar-se contra si uma espécie de patrulha aos seus sermões depois de fazer críticas, no início do mês, ao descaso de Bolsonaro na crise sanitária e dizer que o presidente também tem responsabilidade pelos mais de 544.000 mortos registrados no país. O grupo, apelidado pejorativamente pelos outros frequentadores de “pijamas patriotas”, achou que a missa daquele domingo seria celebrada por Allegri e compareceu em peso. Todos prontos para reagir caso ele voltasse a criticar o Governo. Do lado de fora, policiais militares vigiavam para evitar que a situação saísse do controle.
Mas Allegri não celebrou a missa na Igreja da Paz naquele dia por “orientação” de seus superiores, que argumentavam questões de segurança. O padre acatou. Já havia sido intimidado logo que acabou a missa de 4 de julho, o fatídico dia em que fez críticas à política bolsonarista frente a uma das maiores tragédias sanitárias do país. O culto transcorreu normalmente, mas após a missa um grupo de cerca de oito pessoas entrou na sacristia aos gritos. “O senhor deveria rezar pelo presidente, que é um exemplo de cristão”, ouviu. Tentou dialogar sobre o que significava ser um bom cristão, sem sucesso. “O senhor deveria voltar para a Itália. Nós não precisamos do senhor aqui”, bradou outro fiel bolsonarista, segundo fontes ouvidas pelo EL PAÍS.
Na missa do domingo seguinte, uma nota da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e outra de várias entidades foram lidas em solidariedade ao padre Lino Allegri, que não estava presente. Uma das entidades apoiadoras era o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST). Foi o suficiente para que um coronel reformado do Exército levantasse e desse gritos em protesto. “Este padre transformou o altar em um palanque político”, bradou. Acabou deixando a igreja após alguns fiéis gritarem “respeito”. O militar passou então a organizar, com outros bolsonaristas, uma presença massiva à igreja em protesto ao que considera “comunismo”. No último domingo, 18, eles comemoravam o sucesso do boicote em áudios que circulavam pelo Whatsapp. “Estava cheio de general, coronel, foram tudo de verde-amarelo. Não apareceu um dos vermelhos. Os padres pediram arrego, perdão. ʽAqui é pra rezarʼ... Já afastaram o padre lá. (...) Foi uma beleza a missa com a nossa presença”, diz um integrante do grupo. “Botamos os comunistas pra correr”, emenda no mesmo áudio. Allegri diz que cancelou uma celebração após ser aconselhado por superiores, mas espera voltar para a Igreja da Paz em breve.
“Foi uma intimidação”, define o padre italiano em entrevista ao EL PAÍS, com uma voz tão baixa quanto assertiva. “O presidente criou uma situação de antagonismo e ódio”, acrescenta ele, que teme que a situação piore com as eleições do ano que vem. Há semanas ele sofre ameaças e xingamentos pelo Whatsapp e pelas redes sociais. O vocabulário usado contra ele e o padre Oliveira Braga Rodrigues ―pároco oficial da Igreja da Paz, que passou a sofrer represálias por lhe dar espaço― é vasto: “comunista safado”, “picareta”, “imbecil”, “desagregador”, “comunista com a batina de padre” e por aí vai. Em alguns áudios, militantes bolsonaristas afirmam que a polícia destacada pelo governador petista Camilo Santana “será pouca” para o que preparam, sem dar detalhes. Santana mandou instaurar um inquérito para apurar as ameaças à segurança do padre.
“A tolerância precisa ser recíproca, mas eles não querem dialogar. Me chamam de comunista e esquerdista. Essas palavras não me ofendem”, diz Allegri. Ele não minimiza a gravidade da intolerância política que nos últimos anos vem ganhando mais espaço nas igrejas. Instado pela Defensoria Pública, aceitou se inscrever no programa estadual de proteção aos defensores de direitos humanos por precaução. Mesmo assim, o padre diz que ainda não perdeu o sono pela patrulha dos autointitulados patriotas.
A trajetória de mais de meio século no sacerdócio ajuda a entender a postura do italiano. Filho de operários, Lino Allegri foi ordenado padre na Itália em 1965. Tentou atuar em seu país como padre-operário, um missionário que atua em ambientes de trabalhadores, mas recebeu negativa de seus superiores na igreja. “Naquele tempo eu era bastante obediente”, ri. Poucos anos depois, na década de 1970, conseguiu ser enviado ao Brasil. Movido por uma forma diferente de viver a religião e ancorado nos resultados do Concílio Vaticano II ―uma série de conferências realizadas entre 1962 e 1965 para modernizar o catolicismo―, Allegri queria mergulhar na vertente da igreja latinoamericana cuja missão extrapola os muros dos templos, pois parte da premissa de que o Evangelho exige a opção preferencial pelos pobres.
Chegou ao país em plena ditadura militar, durante o duro Governo Médici (1969-1974), quando padres considerados subversivos eram presos e reprimidos. Mesmo assim, sempre direcionou sua atuação religiosa para além das paredes da igreja. Trabalhou na Paraíba com comunidades de base, braço da igreja que atua em locais mais pobres. Depois, já no interior da Bahia, viu-se no centro das ameaças de grileiros e fazendeiros a agricultores que lutavam pelo direito à terra. Recebia tantas ameaças de morte ao apoiar os mais pobres que precisou buscar o Ministério da Justiça por proteção. “Eu sabia que não era brincadeira”, diz.
Somente nos anos 1990, Allegri seguiu em missão para Fortaleza, onde abraçou trabalhos sociais especialmente nas comunidades carentes, com apoio a menores em vulnerabilidade e à população em situação de rua. Coordena atualmente a Pastoral do Povo da Rua e, já aposentado, tornou-se também padre auxiliar da Paróquia da Paz, onde faz celebrações pontuais e agendadas a cada início do mês. Seu interesse é trabalhar nas “ilhas de pobreza” como as comunidades das Quadras e Trilhos do Senhor, que resistem na “área nobre” da capital cearense. “Não queria ser pároco nem vigário. Sempre trabalhei nas pastorais sociais”, conta.
Seu perfil progressista, porém, pode soar como um contraste ao perfil conservador e elitista da comunidade que cerca aquela igreja, localizada no bairro de maior IDH (índice de desenvolvimento humano) e com um dos mais caros metros quadrados de Fortaleza, o Meireles. A Igreja da Paz também está a poucos metros do maior palco da direita e da ultradireita fortalezense: a Praça Portugal. É lá que bolsonaristas costumam se reunir para protestar. Já houve manifestações em favor do presidente, contra o Supremo e o Congresso e até em prol da ditadura militar. Curiosamente, o bairro da igreja está na 3ª Zona Eleitoral, a única da capital cearense em que Bolsonaro venceu no primeiro turno das eleições de 2018, desbancando até mesmo o então candidato local, Ciro Gomes.
Padre Lino Allegri conta que, especialmente nos últimos anos, vinha percebendo que parte das pessoas que frequentam aquela paróquia não estava afinada às suas pregações, mas sempre considerou normal que nem todos concordassem com ele. “O jeito que falo e o que prego é igual para ricos e para pobres. O que eu faço é juntar a palavra de Deus com a vida das pessoas. Me sinto mais confortável nas comunidades, mas não agrado a todos lá. Haver discordâncias é normal, mas chegar a este ponto é uma violência e um desrespeito”, afirma.
Ele diz que acredita na igreja que exalta um Evangelho “pé no chão” e que não se fecha apenas às celebrações e ao culto a Deus. Seu papel, aponta, é também trazer reflexões sobre os ensinamentos de Jesus Cristo. “Quando há injustiça social, a gente toma uma posição”, defende. É por isso que, em uma de suas missas, trouxe à tona o assassinato da travesti Dandara dos Santos, linchada por ao menos dez pessoas no Ceará em 2017. “Vocês acham que Deus estava com Dandara ou com os homofóbicos?”, questionou aos fiéis. E deu sua própria visão: “Eu tenho certeza que Deus estava com a Dandara”.
“Há assuntos que não se pode tocar na igreja”
Allegri conta que reações a comentários como este no sermão tornaram-se mais enérgicas nos últimos dois anos, durante o Governo Bolsonaro. O presidente coleciona uma série de declarações machistas, racistas e de ódio a minorias que, nas palavras dele, devem “se curvar às maiorias” ou serão “esmagadas”. “Não quero um Deus como o dele [Bolsonaro] acima de todos. Quero seguir o que Jesus Cristo nos ensinou. Se for para ter um Deus como o dele, prefiro ser ateu. Bolsonaro contraria tudo o que Jesus nos ensinou”, declara o padre, em alusão ao lema bolsonarista “Brasil acima de tudo. Deus acima de todos”. Vários ativistas sociais alertam, desde o início do mandato, que as declarações controversas do presidente têm potencial em estimular a cultura do ódio. “Há assuntos que não se pode tocar. Não se pode usar a palavra pobre na igreja. A Teologia da Libertação é como se fosse o capeta. E eu tenho orgulho de ser da Teologia da Libertação”, segue Allegri, referindo-se à corrente teológica cristã latinoamericana.
Allegri prepara seus sermões com antecedência e, várias vezes, usa o ministério contra a homofobia, o racismo, a intolerância. Não costuma falar em candidatos a cargos públicos ou pedir votos. “Acho que eles têm o direito de votar em Bolsonaro. Vivemos em um Estado Democrático de Direito”, lembra. “Mas o respeito e a tolerância têm que ser recíprocos”, reforça ele. O padre toma muito cuidado ao falar sobre que tipo de política acredita caber dentro dos templos religiosos. “Não sei se essa palavra política é a mais adequada porque as pessoas entendem equivocadamente”, pondera. “A política que cabe na igreja é no sentido amplo, é a do bem comum. É a do Evangelho com os pés no chão. Não acredito que a religião seja apenas um culto a Deus, mas é aquela que deixa as pessoas mais humanas.'
“A fala de padre Lino na Igreja da Paz é como se fosse um corinthiano no meio da torcida do Palmeiras que gritou: Vai Corinthians!”, compara, com alguma dose de humor, o articulador paroquial da Igreja da Paz, Mário Fonseca. “É um público majoritariamente de classe média alta, politicamente ultraconservador e religiosamente pentecostal”, define. O episódio com o Padre Lino Allegri, analisa, não está restrito apenas à intolerância política, mas também ao embate de duas vertentes antagônicas da igreja: uma mais tradicional e focada nas celebrações dentro dos templos (pentecostal); e outra mais alinhada a um modelo defendido pelo Papa Francisco e pelo Movimento Igreja Em Saída, que pressupõe uma atuação fora dos templos e junto às comunidades.
O cientista político Ricardo Moura, que integra a Rede de Observatórios da Segurança e tem acompanhado as mensagens de ódio contra padres nas redes sociais, afirma que há um acirramento no discurso de confrontamento ideológico no país, e a igreja não está isenta de repercutir internamente este tipo de discurso. Os casos de hostilidade a religiosos de perfil mais progressista são vários. Também no Ceará, o frei Lorrane Clementino, da Ordem dos Frades Menores, vem sofrendo ataques pessoais e ameaças de morte por defender a população LGBTQIA+. Moura avalia que esses casos são ainda isolados e estão distantes de lideranças da política tradicional, mas têm potencial de repercutir em 2022.
“São padres que vivenciaram a ditadura, passaram por áreas bastante vulneráveis da cidade na luta por direitos básicos. Quando esta trajetória chega na atual fase, já octogenários, tendo que pedir proteção governamental para que possam exercer seu ministério, é um fato que preocupa. É um ponto de virada na degradação do nosso tecido social importante″, diz. O próprio Lino Allegri vê a hostilidade como um ensaio para as próximas eleições. “É um sinal do que virá no próximo ano, um acirramento violento”, prevê. “As religiões todas deveriam ajudar as pessoas a serem mais humanas.”
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