quarta-feira, 28 de agosto de 2024

Pensamento do Dia

 


Economia da destruição

Existe um dito popular que se refere a agosto como sendo o mês de cachorro louco. Esta seria uma das possíveis explicações para a recorrência com que fatos dramáticos têm afetado a sociedade brasileira ao longo da História neste período do ano. Outras pessoas preferem atribuir ao fenômeno astrológico de Plutão retrógrado a desgraceira toda que estamos vivendo por estes dias em termos das queimadas que assolam o país. Enfim, apesar da possibilidade de se buscar razões deste tipo, o fato inegável é que boa parte dos incêndios que estão provocando imensos prejuízos materiais e sociais têm uma base criminosa.

Ao que tudo indica, há uma clara confluência das queimadas provocadas nas regiões Norte e Centro Oeste com os efeitos dos incêndios provocados nas regiões de cultura da cana de açúcar em estados do Sudeste. No primeiro caso, estamos diante do conhecido processo de derrubada de vegetação nativa em biomas como Amazônia, Pantanal e Cerrado, com o objetivo de comercializar madeiras de forma ilegal, abrir campos para pastagem e mesmo iniciar a agricultura de “commodities”, como a soja. Já no segundo caso, trata-se de incêndios em regiões de tradição consolidada de plantio e processamento de cana.


Por mais que a eliminação ilegal dos biomas de fronteira seja caracterizada como atividade criminosa, o fato é que existem dificuldades efetivas para o monitoramento e a imposição de dificuldades por parte do Estado brasileiro para a continuidade de tal fenômeno. A dimensão continental de nosso território, as questões de logística para penetrar em tais áreas de difícil acesso e a influência dos grupos econômicos sobre o poder político local são alguns dos fatores. No entanto, apesar de explicarem, eles não podem servir de justificativa para a incapacidade crônica das instituições estatais de todos os níveis e esferas poderem atuar de forma a inibir e punir tais crimes.

É óbvio que a linha política e programática do governo federal pode atuar em um ou outro sentido. A eleição de Jair Bolsonaro em 2018 contou com o forte apoio dos setores ligados ao agronegócio, incluindo também os grupos envolvidos com a grilagem de terras, o garimpo ilegal, a invasão de áreas destinadas a populações originárias e outras ilegalidades. A chegada desse defensor da tortura e da ditadura no Palácio do Planalto teve o significado de abrir as porteiras para a boiada passar, no dizer de seu Ministro do Meio Ambiente. Uma completa inversão valores e de implementação de políticas públicas.

Assim, logo no primeiro ano de seu governo, Bolsonaro estimulou um conjunto de ações desencadeadas pelos produtores rurais. Assistimos à pulverização de atos criminosos por todo o nosso território com apoio do setor público federal. O evento ficou conhecido como o “Dia do Fogo”. Talvez por coincidência ou sincronicidade, mas deu-se também em agosto de 2019. O dia 10 daquele mês foi marcado por uma quantidade incomensurável de atos de degradação ao meio ambiente, sempre contando com a segurança de impunidade para os responsáveis.

Esse tipo de orientação de conivência e cumplicidade para os órgãos públicos teve igual repercussão quando se tratava de apoio à invasão de terras indígenas, ao desmatamento ilegal e na passividade de tratamento de atividade de garimpo ilegal. As direções de órgãos como Ibama, ICMBio, Funai e outros passaram a colaborar com os criminosos e não aturam em defesa das populações atingidas e de preservação do meio ambiente. Além disso, tais instituições foram submetidas a processos de desmonte e de sucateamento, passando a sensação para o conjunto da sociedade de que o momento era para ser aproveitado para políticas de terra arrasada e de vale-tudo.

A partir de janeiro de 2023, as coisas mudaram de orientação. Com o terceiro mandato de Lula, o meio ambiente voltou a ser considerado prioridade na agenda governamental, inclusive com a nomeação simbolicamente relevante de Marina Silva para a pasta responsável pela sustentabilidade. No entanto, o desmonte provocado no setor durante os 6 anos de Temer e Bolsonaro ainda deixa raízes terríveis. Os indicadores apresentam melhoria mas o nível do desastre ainda é bastante levado.

No caso da cana de açúcar, a questão é mais complexa. Os setores envolvidos com a defesa dos interesses das usinas argumentam que as práticas de queima da terra após a safra para preparar o novo plantio são seculares. De fato, os incêndios deste mês não podem ser explicados apenas por esta causa. A legislação é ambígua e abre uma brecha de interpretação que permite uma leitura favorável a se utilizar deste tipo de queimada. Uma alternativa de método de planto equivocada em todos os sentidos e que compromete sobremaneira os solos, as águas, a flora, a fauna e o meio ambiente de forma geral.

As primeiras notícias e análises do processo atual, por exemplo no interior do estado de São Paulo, apontam para a possibilidade de ocorrência de atos criminosos contra inclusive os interesses das próprias usinas. Será necessário avaliar com mais calma os resultados das investigações para se ter maior clareza a respeito dos fatos. De toda forma, trata-se de medidas que precisam ser apuradas e os responsáveis de ser incriminados e processados. É fundamental romper o círculo vicioso da impunidade que existe também neste setor.

Enfim, mas o que importa reter no conjunto da análise dos eventos de mais este agosto trágico é que se trata de mais um fenômeno associado à economia da destruição. A começar da inserção do Brasil nesse modelo da divisão neocolonial das atribuições em escala internacional. Nossas elites aceitaram passivamente a transformação do país em um grande produtor-exportador de bens primários de baixo valor agregado. Que seja na exportação de minério de ferro e petróleo ou então da produção para venda no mercado externa de soja e carnes. A especialização e a concentração de toda nação nestas atividades implicam a destruição do meio ambiente e promovem a desindustrialização de nossa estrutura produtiva.

Os atuais incêndios são apenas uma faceta mais extremada e violenta do processo de destruição econômica. É claro que a tarefa atual é combater esse tipo de crime, mas não basta que os céus sejam mais claros e azuis.
Paulo Kliass

Das palavras e da guerra


Não só os sentimentos criam palavras, também as palavras criam sentimentos. São a vida e quase toda a vida – a razão e a essência desta barafunda. É com palavras que construímos o mundo. Mas agora que os valores mudaram, de que nos servem estas palavras? É preciso criar outras, empregar outras, obscuras, terríveis, em carne viva, que traduzam a cólera, o instinto e o espanto.
Raul Brandão









Não sei que palavras utilizar , quando os dias que correm são dias de vergonha . Queria registar toda a perplexidade dorida que cresce , sempre que eclodem as notícias diárias. Mas « os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo» escreveu Wittgenstein, no século XX. Perante a barbárie, esgotam-se os caminhos da linguagem. Perante a crueza das realidades emergentes do mundo actual, é impossível ser claro , sem que a emoção nos embargue e o horror nos tome.

A verbalização é uma capacidade inerente à pessoa humana, à sua relação com o mundo e respectiva materialização. Eis porque se quedam as palavras numa agónica aporia, num silêncio de espanto perante o terror que milhares e milhares de seres humanos vivem, numa parte deste nosso mundo. E, quando esse terror é propagado pela tirana ambição de um só homem, de que nos servem as palavras que conhecemos? Recusam-se a traduzir a ferocidade do homem capaz de negar o outro homem. Teriam de ser medonhas , numa obscuridade indefinível , que logo ficariam opacas pela sua enormidade. Como criá-las ? E inventá-las para quê , quando são glosadas infamemente pela boca do carrasco. A inversão de posições, o plano da realidade é empurrado para a vítima invadida, quando o agressor se diz ser ele próprio a vítima. O Ocidente está a sofrer o resultado da sua ambição, grita o louco facínora, enquanto lança bombas sobre crianças e gente desprotegida. Não lhe basta dizimar um país, mas quer estender a ameaça ao mundo ocidental. Que tipo de homem tem tamanha ambição?

E lembro-me de repente dum filme muito antigo
Em que o criminoso perguntava:
“De quoi est fait un homme, monsieur le comissaire?”
e nos seus olhos lia-se o pavor
de quem viu um abismo e não lhe sabe o fundo...
De quoi est fait un homme? De que são feitos os homens
que queimaram vivos outros homens? Que tinham centos de crianças
a morrer de fome e pavor, escravos como os pais?
que matavam ou deixavam morrer homens aos milhões,
que os faziam descer ao mais fundo da degradação,
torturados, esfomeados, feitos chaga e esqueleto?
Eram esses mesmos homens
que faziam pouco da liberdade,
que vinham salvar o mundo da desordem,
que vinham ensinar a ORDEM ao planeta!
Sim, que traziam a paz com as grades das prisões,
a ordem com as câmaras de tortura...

Assim disse Adolfo Casais Monteiro, no magnífico poema Europa.

Sei que não sei dizer as palavras nem exactas nem reais .Tento reconhecê-las em quem as soube produzir. Mas sei, isso sim, que há dor a mais nos rostos de quem sobrevive à morte encomendada por um só homem. Homem que traz as grades da tortura para impor a Ordem do seu amordaçado mundo. As palavras emudecem. E, se algumas sobreviverem, talvez repitam como Sartre: «Ces mots durs et noirs, je n’ en ai connu le sens que dix ou quinze ans plus tard et, même aujourd’hui, ils gardent leur opacité : c’est l’humus de ma mémoire. »
Maria José Vieira de Sousa

Polarização é ato de má-fé

Temos corpos repartidos em esquerda e direita. Mãos, pés, olhos, narinas, ouvidos, dedos, hemisférios cerebrais, tudo tem um outro polo que não é “reserva” ou “duplicata”, mas complemento. Somos constitucionalmente duplos, e nossa natureza bipolar facilita a automistificação.

Polarizar é parte de nossa natureza. Entretanto ela tem sido usada mais para dividir e condenar que para compreender. Os lados se complementam, mas, na politicagem, o conceito bloqueia a relativização. Passa a ser prova de certezas, quando o que está em jogo são circunstâncias e limites.

Polarização é uma palavra mais apropriada para uma enfermidade em que represento a verdade, enquanto você exprime erro e ignorância. Tudo o que digo traduz boa consciência do mundo e das coisas; ao passo que você é a personificação da má-fé. Estamos afundados nessa dualidade não complementar e destrutiva faz tempo.


Lula 3 diz que o regime de Maduro na Venezuela é “desagradável”, mas não hesitou em equacionar a reação de Israel ao terrorismo do Hamas como genocídio. Aliás, esse episódio revela nossa infortunada capacidade de somar selvagerias...

Tudo o que está comigo é verdadeiro e não é relativizável, mas seu lado é, invariavelmente, falso, hipócrita ou mentiroso. Hitler e Stálin não exterminaram ninguém; simplesmente foram antipáticos. Como Fidel ou Ortega.

A má consciência revela um autoritarismo rigoroso e, no limite, é o berço dos fascismos. O Diabo, que sempre desejou a morte de Deus e de suas incertezas, é fascista. Para ele, não pode haver outro lado além do seu. Eu tenho amor; você, ódio. A outra mão deve ser englobada em todas as situações. O aleijão resultante não é problema. Podemos viver sem um lado, como manda a lógica da má-fé e dos ficcionalismos modernos.

A má consciência é madrinha dos particularismos. Ser diferente é ser particular ou singular. Somos exclusivos em nossas identidades, mas não podemos equacionar peculiaridades com privilégios, exceto em casos especiais. Quando somos muito ricos, grandes ou poderosos.

Quando julgamos a esquerda subversiva e a direita reacionária, não contribuímos para a clareza. Pelo contrário, apagamos a luz do lado que consideramos inútil, malvado ou demoníaco.

Polarizar não é opor com objetivos de esclarecer ou enxergar melhor. É, como tristemente testemunhamos, um modo de esvaziar o outro lado de razão.

No fundo, trata-se de mutilar o debate, o contraste, a identidade e a compreensão pela eliminação moral ou ideológica do outro, porque temos a bala de prata do certíssimo, do claríssimo e do crudelíssimo. Só nós contamos, porque estamos absolutamente certos de que ultrapassamos a eterna dúvida humana que faz parte de nosso caminhar.

A certeza castra a competição. E a competição é a base do liberalismo democrático. É ela que testa a riqueza de certos caminhos e posições. Por causa disso, regimes democráticos têm como sina e determinação a mudança periódica dos cargos públicos. Todos regulados por ideais diversos, mas unidos num acordo pela transitoriedade do poder. Uma transitoriedade fundada em direitos individuais.

Para realizar tal objetivo, regimes democráticos articulam eleições — competição eleitoral em que se submetem ao julgamento da população de cidadãos, aqueles que votam e elegem seus candidatos por um período delimitado. A regra eleitoral é um dos melhores exemplos de norma universalista, pois vale para todos os candidatos e todos os votantes. Trata-se de “jogo inclusivo” e, como sabemos, arriscado.

Como um jogo de poder, ele desperta paixões espúrias e, em países cuja estrutura social se funda em valores aristocráticos e elitistas, existe permanente tentação de eliminar o opositor. O golpe nasce e cresce como malfadado projeto, justamente quando a polarização assegura certezas e armazena os argumentos das balas de prata que salvariam a sociedade. Trata-se de um pantanal ético de que — valha-me Deus! — ninguém escapa!

Inocentes condenados

Neste planeta há estimados dois bilhões de animais humanos com idade menor que 10 anos, e cerca de 650 milhões que ainda não fizeram o sexto aniversário. Todos eles são inocentes. Inocentes, e condenados!

É triste saber que meus filhos e netos, assim como os dos leitores, estão condenados, mesmo sendo inocentes. Condenados a quê? Inocentes de quê?

Nesse subconjunto da humanidade estão pessoas que, em sua maioria, estarão vivas no ano 2100, quando terão menos de 90 anos. Claro, muitos terão morrido, mas a maioria ainda estará viva, salvo alguma possível – provável? – guerra nuclear. Afinal, o aumento da expectativa de vida é um dos feitos positivos da humanidade. E os ainda estiverem vivos, em que mundo viverão?


No Brasil de hoje, do Sudeste ao Norte, estamos respirando ar seco, poluidíssimo, cheio de gases venenosos, agravado pela fumaça de incêndios, alguns dos quais criminosos, feitos em nome do progresso, em nome de abrir áreas para aumentar a produção de alimentos! Estamos vendo também a quase totalidade deste país, e de muitos outros, sob ameaça de mais incêndios queimando árvores que deveriam viver para reter água para nossa sobrevivência. Mas, em nome do “progresso”, continuamos a degradar a biosfera, a base da nossa sobrevivência.

Hoje, a Organização Mundial da Saúde estima em sete milhões as mortes, a cada ano, decorrentes “apenas” da poluição do ar. Quantas serão dentro de vinte, cinquenta anos, se seguirmos acreditando que explorar e queimar petróleo trás riqueza? É fato que quando tal queima começou, há quase dois séculos, ela ajudou a melhorar a vida de muitos, mas continuar a usá-lo passou a piorar e a condenar a vida de muitos mais, inclusive aqueles que hoje são crianças. Não é novidade comparar os combustíveis fósseis às drogas: euforia nos primeiros usos, morte quando se torna dependente!

Não são só os incêndios que preocupam, e matam. Há pouco, vimos o Rio Grande do Sul devastado por enchentes e, na Arábia Saudita, estimados 1.300 fiéis morreram em poucos dias, em decorrência do calor extremo, que afeta inúmeras regiões do planeta.

A rapidez com que aumenta a frequência e a gravidade dos desastres derivados dos extremos climáticos assusta até mesmo os cientistas, pois sua progressão tem se mostrado mais veloz e grave que as previsões. Nessa aceleração, já se aceita que o objetivo de limitar o aquecimento global a 1,5oC já não é mais viável, acréscimos bem maiores sendo prováveis. Com eventos ainda mais extremos, e sofrimentos maiores.

Daí a se concluir que, embora nossos filhos e netos sejam inocentes, pois nós é que decidimos por eles, somos nós, e principalmente os dirigentes de países e empresas que, ao insistir em manter nosso modo de vida poluente e insustentável, os estamos condenando a vidas bem mais difíceis.

Trata-se de uma nova versão de holocausto e genocídio, realizado a cada dia de forma mais acelerada, em nome do “desenvolvimento”.

Espécie humana, se és sapiens, acorda e age!