quarta-feira, 19 de fevereiro de 2020

É isto um homem?

Vocês que vivem seguros
em suas cálidas casas,
vocês que, voltando à noite,
encontram comida quente e rostos amigos,

pensem bem se isto é um homem
que trabalha no meio do barro,
que não conhece paz,
que luta por um pedaço de pão,
que morre por um sim ou por um não.
Pensem bem se isto é uma mulher,
sem cabelos e sem nome,
sem mais força para lembrar,
vazios os olhos, frio o ventre,
como um sapo no inverno.

Pensem que isto aconteceu:
eu lhes mando estas palavras.
Gravem-na em seus corações,
estando em casa, andando na rua,
ao deitar, ao levantar;
repitam-nas a seus filhos.

Ou, senão, desmorone-se a sua casa,
a doença os torne inválidos,
os seus filhos virem o rosto para não vê-los.
Primo Levi

Tristeza não tem fim

“A felicidade do pobre parece/ A grande ilusão do carnaval/ A gente trabalha o ano inteiro/ Por um momento de sonho/ Pra fazer a fantasia/ De rei ou de pirata ou jardineira/ E tudo se acabar na Quarta-Feira.” – esses versos acima são da pungente A “Felicidade”, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes, e me voltaram à mente de forma recorrente depois da fala de Paulo Guedes a respeito dos malefícios do real sobrevalorizado.

O ministro da Economia atravessou o samba e acabou por contribuir com uma fantasia candidata a hit do carnaval de 2020: além de reis, piratas e jardineiras, vem aí uma legião de

Porque a tal “festa” das domésticas no exterior só é imaginável em blocos e carros alegóricos, uma vez que, ainda que o real estivesse na base do “um para um” com o dólar, não sobra dinheiro para a grande maioria dos empregados domésticos viajar.


Então, por que raios o homem mais importante do governo, aquele em quem o “deus mercado” aposta todas as fichas, a ponto de tapar o nariz para os despautérios do presidente e a incompetência gerencial em quase todas as outras áreas, se põe a fazer perorações sem nexo dia sim, outro também?

Talvez Guedes esteja percebendo que a pauta que idealizou para 2020 vai deslizando como a felicidade do pobre, e que a euforia com o “boom” da economia brasileira neste ano 2 da gestão Bolsonaro já passou antes mesmo da Quarta-Feira de Cinzas que anuncia a tristeza sem fim do clássico da bossa nova.

Diante das dificuldades, o ministro viaja na maionese ao tentar fazer o jogo do contente da Pollyana. Sim, existem várias razões de teoria econômica para defender o dólar apreciado sobre o real. E nenhuma delas passa nem perto da fictícia festa das domésticas na Disney. Guedes sabe disso, percebeu por onde estava indo quando já era tarde demais e, em vez de encerrar a fala ali, se pôs a tentar emendá-la.

Não pode ser atribuída só à falta de tato retórico a reiteração de declarações atravessadas do ministro: ele está claramente pressionado e desgostoso com o ritmo dos seus projetos, e não pode culpar quem deveria.

Guedes imaginou que a tal linha de produção de reformas estaria mais azeitada neste ano. Depois de segurar a reforma administrativa, Bolsonaro começou 2020 enaltecendo sua urgência. Para, logo em seguida, engavetá-la de novo.

E que aqui ninguém tente culpar sua fala comparando servidores a “parasitas”, outro meme instantâneo pela referência ao grande ganhador do Oscar deste ano. A má vontade com a reforma já havia sido replantada na cabeça do inseguro presidente pelos seus assessores palacianos, com os quais o titular da Economia vem se estranhando não é de hoje.

Sem poder mandar ao Congresso a reforma tributária que gostaria, com a administrativa engavetada, tendo de apagar incêndio de Bolsonaro com os governadores depois do ridículo “desafio” de zerar o ICMS dos combustíveis, tendo sido bucha de canhão em Davos para ouvir as críticas que deveriam ser destinadas ao colega do Meio Ambiente, Ricardo Salles, há de se convir que o Posto Ipiranga está numa fase “tristeza não tem fim”.

O duro é que a conjuntura internacional, com um surto do novo coronavírus cujos alcance e duração não são possíveis de estimar, e o calendário local, com eleições logo ali, não prenunciam que as coisas vão melhorar depois da Quarta-Feira. Dependerá da articulação política, que, por ser naturalmente desconjuntada, precisa da atuação direta de Guedes.

Se ele não sair dessa maré braba, e rápido, a euforia da virada de ano terá sido como a felicidade do pobre. Ou das domésticas, que não conseguem viajar nem para Cachoeiro do Itapemirim, quem dirá para a Disney.

O que assombra os Bolsonaro e o que pode derrotá-los

O que fez Jair Bolsonaro mudar de opinião? E logo ele que sempre pregou: “Bandido bom é bandido morto”?

O país estava acostumado a ver seu presidente sair em defesa de policial que matasse bandido.

Agora, pela primeira vez, vê-se Bolsonaro preocupado com um bandido que pode ter sido executado pela polícia baiana.

O Natal mudou ou foi Bolsonaro? Estamos diante do que tantos esperavam – a normalização do antes tosco capitão?



Devagar com o andor. Bolsonaro não mudou um tantinho assim. E se mudou foi para pior.

Onde já se viu um presidente da República agredir uma jornalista com grosseiras insinuações sexuais?

Donal Trump, o ídolo de Bolsonaro, foi gravado dizendo baixarias sobre as mulheres e seu órgão genital.

Mas Trump não sabia que fora gravado. A gravação era antiga. Ele não seria louco de dizer o que disse diante de câmeras de TV.

O aprendiz superou o mestre. Achou que com o ataque à jornalista distrairia a atenção do público do caso do miliciano.

Milícia, miliciano, Marielle Franco, Queiroz e rachadinhas são fantasmas que assombram Bolsonaro e seus filhos.

O miliciano Adriano da Nóbrega, morto a tiros ou executado na Bahia, já foi defendido por Bolsonaro em discurso na Câmara.

Na época, era suspeito de assassinato. Isso não impediu Bolsonaro de tratá-lo como um herói.

Dois anos depois, Bolsonaro compareceu ao julgamento de Nóbrega e auxiliou com conselhos seus advogados de defesa.

Partiu de Bolsonaro a orientação para que seu filho Flávio, então deputado estadual, homenageasse Nóbrega duas vezes.

A primeira, por “relevantes serviços prestados” à Polícia Militar do Rio de Janeiro. Os serviços jamais foram nominados.

Em 2005, preso e acusado de homicídio, Nóbrega foi condecorado com a “Medalha Tiradentes”, a mais alta honraria da Assembleia.

Nóbrega já era um dos líderes do Escritório do Crime quando Flávio empregou no seu gabinete a mãe e a irmã dele.

Mais tarde, para engordar a rachadinha de Queiroz e Flávio, as duas devolveram 203 mil reais do dinheiro que haviam ganhado.

Milicianos e os Bolsonaro sempre se deram bem. Renanzinho, o Zero 4, namorou uma filha de Ronni Lessa. Que vem a ser…

Lessa foi o miliciano, vizinho de Bolsonaro no condomínio Vivendas da Barra, que matou a vereadora Marielle Franco.

Bolsonaro é réu no Supremo Tribunal Federal por apologia ao estupro. O processo foi suspenso porque ele se elegeu.

Nada lhe causa mais horror do que a possibilidade de ser apontado como cúmplice de matadores de aluguel.

Seus filhos padecem do mesmo horror. Acusá-los por tomarem parte dos salários de funcionários, não lhes mete tanto medo.

Pegaram carona no combate à corrupção por mero oportunismo político. O assunto já lhes rendeu o que tinha de render.

O maior inimigo da família é ela mesma. Hoje, os Bolsonaro só perderiam para os Bolsonaro. O pai parece se esforçar para isso.
Ricardo Noblat

Carnaval do Brasil


A presidência desonrada

O presidente Bolsonaro avilta a Presidência da República. Ao caluniar e difamar uma jornalista com uma afirmação machista e uma insinuação sexual, ele não atinge só a Patrícia Campos Mello. Num efeito bumerangue, Bolsonaro desrespeita o próprio cargo que ocupa. A Presidência tem poderes e tem obrigações. O presidente tem usado os seus poderes para descumprir suas obrigações. Diariamente. Ele tem escalado diante dos olhos da nação. Até quando as instituições brasileiras permanecerão tão incapazes de responder a um chefe do Executivo que quebra o decoro da instância máxima da República?


O espetáculo de horror se repete toda manhã. Bolsonaro chega com seus seguranças e sua claque, ofende alguém ou alguma instituição, ataca e debocha dos jornalistas, faz gestos obscenos, manda os repórteres calarem a boca. Diariamente, ele exibe seu mandonismo primitivo. A qualquer momento do dia, em edição extraordinária, pode ser retomado o show de ofensas que é a comunicação presidencial. A lista dos alvos do presidente é imensa: os governadores, os portadores de HIV, os indígenas, os ambientalistas, a primeira-dama da França, os estudantes, Paulo Freire. Jornalistas são uma “raça em extinção”, governadores do Nordeste são os “governadores Paraíba”, o repórter na porta do Palácio tinha uma cara de “homossexual terrível”, ONGs incendiaram a Amazônia e ambientalistas devem ser confinados, os índios “estão evoluindo e cada vez mais são seres humanos como nós”, os portadores de HIV custam caro ao país, Paulo Freire não pode descansar em paz, é o “energúmeno”.

O que Bolsonaro fez ontem foi repugnante. Ele repetiu a mentira do depoente da CPI da Fake News na semana passada e que seu filho, o deputado Eduardo Bolsonaro, ecoou da tribuna. Bolsonaro deu sequência à calúnia, usou de deboche obsceno para as gargalhadas da sua claque. O que houve foi um ataque serial à jornalista da “Folha de S.Paulo”, e dele o presidente fez parte. A reportagem que provocou toda a ira do presidente ilumina um fato que precisa ser cada vez mais entendido, a compra de disparos em massa de fakenews através do WhatsApp. O país precisa proteger a democracia do risco de interferências e manipulação do processo de escolha do eleitor através de mentiras difundidas pelas redes sociais. Ou a democracia entende esse submundo ou correrá riscos.

Todo governante pode gostar ou não de uma reportagem, reclamar, dar o seu lado, desmentir, combater a informação que considera errada com mais informação. Mas um governante não pode levar a Presidência ao nível de baixeza que foi levada ontem por Bolsonaro, na difamação sexista contra a portadora da notícia da qual ele não gostou. Essas ofensas a Patrícia Campos Mello atingem a imprensa independente e responsável, que não vai se calar diante dos gritos e das injúrias, mas que o governante tenta intimidar.

Este é apenas um caso. Mas é extremo. Nele, o presidente ultrapassou todos os limites impostos pelo decoro que o cargo exige. Nos últimos dias, ele provocou uma crise federativa ao desafiar os governadores a adotar uma proposta que ele sabe ser impraticável, de zerar todos os impostos sobre combustíveis e, depois, fez um acusação direta ao governador da Bahia. Uma das obrigações do presidente é zelar pela federação, Bolsonaro atormenta a federação. Ele a fragiliza.

Um presidente não é inimputável. Ele pode não responder pelos atos que cometeu antes de assumir. E essa prerrogativa existe para proteger a Presidência em si e não a pessoa que ocupa o cargo. Mas Bolsonaro entendeu que entre os seus poderes está o de dizer o que lhe vier à cabeça, agredindo qualquer brasileiro, grupo social ou instituição. Contra isso existem os freios e contrapesos, para que um Poder alerte o outro dos excessos cometidos. O problema no Brasil neste momento é que o presidente radicalizou, exibe uma agressividade descontrolada, e os outros poderes se encolheram diante desse extremismo.

É assim que as democracias morrem. Elas vão sendo desmoralizadas aos poucos, as instituições vão se omitindo e se cansando das batalhas diárias, as pessoas vão se acostumando aos absurdos. O país passa a achar normal o que é na verdade inconcebível e acaba por aceitar o inaceitável, como um presidente que ofende o cargo que ocupa. E assim nascem as tiranias.

Foda-se quem, cara pálida?

Nós não podemos aceitar esses caras chantagearem a gente o tempo todo. Foda-se
Augusto Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional, em resposta à pressão do Congresso para derrubar os vetos do presidente, a quem orientou “convocar o povo às ruas”

Bolsonaro faz do ódio e do jogo sujo ferramentas do poder

Não foi o tal gabinete da raiva, a ala ideológica do Planalto, as redes de apoio ao governo ou um aloprado da burocracia palaciana. Mais uma vez, quem distribui ofensas asquerosas e faz manobras desesperadas para obter ganhos políticos é o próprio presidente da República.

É inútil tratar os ataques do bolsonarismo e de suas hordas digitais como desvios impulsivos ou acidentais. O homem que ocupa o posto mais importante do país prova diariamente que o ódio e o jogo sujo irradiam do topo. São o método definitivo do grupo que está no poder.

Jair Bolsonaro não comete nenhum deslize quando desfere suas barbaridades. O insulto baixo e misógino à repórter Patrícia Campos Mello, da Folha, reflete sua inclinação permanente em difamar quem incomoda e desqualificar uma imprensa que vigia seus passos.

O ataque feito aos risos não representa apenas uma degradação da Presidência. A exigência de decoro não é mera frescura. Está inscrita em lei para evitar que os detentores de cargos públicos abusem de suas posições de poder para perseguir críticos e praticar arbítrios.

Bolsonaro já mostrou que não se importa com as consequências desses atos. Construiu sua carreira na base da ofensa e cercou-se de bajuladores que gargalham com cada grosseria. Pouco antes de chegar ao Planalto, ainda foi absolvido pelo Supremo Tribunal Federal depois de dar declarações abertamente racista sobre um grupo de quilombolas.

As preocupações com a moralidade do cargo já estão superadas há tempos —e Bolsonaro ainda insiste em quebrar seus recordes. Nos últimos dias, o presidente da República se dedicou a espalhar hipóteses desvairadas e conspirações para tentar desatar os laços de sua família com um suspeito de chefiar uma milícia.

Não importa se os generais estrelados dão prestígio ao Planalto, se Paulo Guedes faz girar os números do PIB ou se Sergio Moro leva camisetas amarelas às ruas para apoiar o combate à corrupção. Todos são movidos por essa mesma máquina.

Populistas de direita distribuem livros de colorir xenófobos na Alemanha

A polícia está investigando um evento realizado por deputados estaduais do partido populista de direita Alternativa para a Alemanha (AfD) na Renânia do Norte-Vestfália, segundo noticiou nesta terça-feira a imprensa alemã.

No evento, que ocorreu na segunda-feira em Krefeld, no oeste da Alemanha, foram distribuídos livros de colorir com desenhos xenófobos. Intitulado Renânia do Norte-Vestfália para Colorir, traz numa de suas páginas, por exemplo, uma imagem com diversos homens em carros com armas e bandeiras da Turquia na mão.

"Renânia do Norte-Vestfália para Colorir" tem
várias imagens com estereótipos de estrangeiros
Em outra imagem, aparece uma faixa com a inscrição "Nós pagamos o pato" em cima de uma piscina, onde há várias mulheres usando burcas e homens com ossos no cabelo atacando mulheres que estão de maiô. Um dos desenhos apresenta mulheres com véu islâmico cercadas de vários filhos.O autor da publicação seria um suposto Roberto Obscuro.

Pelo Twitter, a polícia local afirmou que tem conhecimento sobre o livro de colorir e que já foi apresentada uma queixa contra a bancada estadual da AfD na Renânia do Norte-Vestfália por incitação ao ódio.

Segundo a emissora alemã WDR, a Assembleia Legislativa também está apurando se verbas públicas destinadas aos deputados foram usadas para a produção e impressão do controverso livro.

Diante das críticas, os parlamentares da AfD alegaram que a publicação era uma sátira e que estariam sofrendo um ataque à liberdade de expressão. A bancada populista disse que as imagens são "desenhos satíricos sobre a situação no país" e que a obra foi "inspirada em livros de colorir para adultos".

Os populistas acusaram ainda "extremistas de esquerda" por fotografarem o livro e "querem ver um suposto escândalo". O líder da bancada, Markus Wagner, disse que "ataques à liberdade artística" devem ser respondidos com "mais cópias".

O líder da bancada do Partido Social-Democrata (SPD) na Renânia do Norte-Vestfália, Thomas Kutschay, condenou a publicação. "A AfD publicou um livro de colorir racista. Agora quer incitar até crianças com sua ideologia desumana. Nota sobre reciclagem de resíduos: esse livro pertence à lixeira marrom", escreveu no Twitter. Na Alemanha, o marrom é a cor associada ao nazismo.
Deutsche Welle

Coliseu virtual

Vem crescendo nas redes sociais a prática do chamado “cancelamento” – ato de boicotar uma pessoa com o intuito de causar seu esquecimento ou prejuízos à sua imagem.

O fenômeno teve origem nos Estados Unidos, em meados de 2017, quando celebridades acusadas de assédio foram atacadas e desprestigiadas no Twitter, como ocorreu com o cineasta Woody Allen. Nesses casos, o cancelamento tem um aspecto positivo ao promover o debate sobre temas relevantes como o abuso sexual e o preconceito.

A partir daí, o modismo norte- americano foi importado para o Brasil e tem sido modificado pelas peculiaridades de um país politicamente polarizado. O caso mais emblemático por aqui foi o da cantora Anitta, linchada na internet por não ter posicionado contra Jair Bolsonaro em defesa de grupos LGBT na época das eleições de 2018.

Nem Nelson Mandela escapou. O ícone da resistência negra foi cancelado pelos membros do Movimento Brasil Livre (MBL). O grupo tachou o líder político como “terrorista” ao se referir à luta revolucionária dele na África.

A atriz Alessandra Negrini entrou no radar dos “canceladores” nos últimos dias por ter usado uma fantasia de índia no Carnaval. Lideranças indígenas deram uma lição ao dizerem que se deve diferenciar quem se apropria da cultura para diricularizá-la de quem empresta seu corpo a serviço das causas mais urgentes.

Essa estratégia expõe a fragilidade da linha que separa o público e o privado nos tempos atuais.

Além dos alvos famosos citados, pessoas comuns perdem emprego e a liberdade ao serem expostas na rede por se desviarem minimamente de cartilhas ideológicas.

Além disso, cancelar alguém por simples discordância ou deslize retórico é encerrar o debate. É bater o pé e fazer birra. Atitude que não é bem-vinda em uma sociedade democrática.

Pensamento do Dia


Os partidos políticos ainda servem para manter a democracia?

Em meio à crise da política em nível mundial e especificamente aqui no Brasil, surge uma pergunta difícil, mas necessária: os partidos políticos ainda servem para sustentar a democracia, ou estão virando um estorvo? E, neste caso, como a participação dos cidadãos no governo dos povos poderia mudar e ser mais representativa?

Neste momento, o Chile, por exemplo, está sendo um laboratório mundial que pôs em carne viva, com suas grandes manifestações de protesto contra as injustiças sociais, a fragilidade das instituições políticas e especificamente dos partidos. Conforme noticiou este mesmo jornal, os partidos políticos no Chile estão perdendo milhares de filiados, e hoje só um pequeno percentual da população acredita neles como instrumentos para manter viva a democracia. Será que os partidos tradicionais, em vez de serem meras correias de transmissão das necessidades e desejos das pessoas, se transformaram em donos e senhores dos mesmos?

O crescimento, por exemplo, dos movimentos autoritários e de ultradireita no mundo todo não terá a ver com a crise dos partidos tradicionais, incapazes de representarem os novos problemas que surgiram na sociedade? Terá envelhecido a própria estrutura dos partidos, cada vez mais afastados da realidade das pessoas, sobretudo as mais marginalizadas?


No Brasil, é sintomática a crise que sacudiu, por exemplo, o Partido dos Trabalhadores, que deixou de ser um dos mais modernos e vitais da América Latina, com grande base popular, para se ver envolvido numa crise existencial, porque seus dirigentes se apropriaram do partido e até se corromperam, transformando-se em meras empresas e incapazes de dar lugar a uma geração mais jovem. E não só o PT, mas também muitos outros aos quais de nada serviu mudar de nome na tentativa de renová-los. São disfarces inúteis, que pouco servem para deter o grave câncer que os corrói.

Daí os cientistas políticos se perguntarem hoje em dia se os partidos já não terão concluído sua missão e se não estaríamos necessitados de criar novos organismos de representação dos cidadãos, capazes de responder às mudanças planetárias às quais está fadada a humanidade.

Cabe perguntar se é possível que a vida política e suas novas exigências continuem sendo regidas por velhos partidos, hoje fossilizados e burocratizados. De fato, nada no mundo é para sempre e definitivo, e o Homo sapiens precisa abrir horizontes e procurar respostas e soluções aos problemas novos que se apresentam.

Se a democracia em todo o mundo começa a estar em crise, não é só por estarmos renunciando aos valores de liberdade que tínhamos conquistado. Talvez seja, na verdade, que os velhos conceitos de convivência que nos regiam se tornaram insuficientes por não encarnarem os problemas novos que a sociedade confronta.

Os partidos parecem incapazes de dar resposta aos novos e assustadores problemas da neurociência, da neurotecnologia, da revolução planetária das comunicações e da transformação do trabalho, que estão mudando os antigos paradigmas da existência.

E o que criticamos nos partidos serve também para as outras instituições que foram até aqui os pilares firmes das democracias no mundo, como os Parlamentos, os Governos, os Poderes Judiciários e os sindicatos. Parlamentos que já mal representam a nova sociedade que está surgindo. Parlamentos que foram comprados por partidos que deixaram de ser correias de transmissão dos problemas da sociedade e se tornaram máquinas de fazer votos e grupos privilegiados de poder à margem dos gritos de uma sociedade que exige mais.

Os Parlamentos e os Governos foram por sua vez transformados em fábricas de privilégios pessoais, ferindo os cidadãos que lutam para sobreviver. Junto a eles, um Judiciário burocratizado e gigantesco, com seus processos eternos e seletivos e com o Supremo Tribunal Federal que, de fiador indispensável da Constituição, corre o perigo de se transformar em uma instância a mais de deliberação judicial, onde seus magistrados perdem tempo e dinheiro para decidir, por exemplo, se um cidadão que tinha roubado 28 reais, e inclusive os havia devolvido, devia ser condenado ou absolvido, como acaba de acontecer aqui no Brasil.

São sistemas judiciais que deveriam ser ágeis e em sintonia com a consciência popular e que acabam virando máquinas gigantescas de burocracia, afastadas do sentido comum. Instituições judiciais que no parecer dos cidadãos servem mais para proteger os políticos, os ricos e os poderosos.

E os velhos sindicatos? Que sentido fazem num mundo em que o trabalho está sofrendo uma transformação total, em que o problema já não é mais a defesa dos que trabalham, considerados privilegiados, e sim dos desempregados e sem esperança de conseguir trabalho?

Não, não acredito que estejam hoje em crise no mundo as essências da política criativa, ligada estreitamente à evolução da sociedade e de suas ânsias de bem-estar e felicidade. Uma humanidade nova, como a que está surgindo em todo o planeta, necessitaria de respostas e soluções criativas capazes de sentir o coração destas novas exigências que estão nascendo.

Talvez não seja que a humanidade se cansou de viver em democracia e em liberdade, mas sim que, ao perceber que os velhos partidos e as velhas instituições não são capazes de absorver a nova modernidade, se refugiam, como autodefesa, nos velhos sistemas nazifascistas em que acreditam se sentir protegidos. A liberdade, agora e sempre, infunde mais medo do que a segurança e a conservação.

O problema de fundo é que tudo isso que chamamos de política é visto como o planeta de um grupo de pessoas que se apropriaram do governo do mundo, depois de terem perdido seu sangue genuíno, que, assim como os rios e as florestas, foi envenenado. Envenenado pela cobiça de quem se esqueceu de que a política só faz sentido se estiver a serviço das pessoas, com suas necessidades e sua rica diversidade, e não nas mãos de pessoas e grupos que parecem alienígenas que se esqueceram para que foram eleitos.

Tempo demais



Para o mau governante, quatro anos é muito tempo
Paulo Marinho, empresário que abrigou em casa o comitê de campanha de Bolsonaro e hoje preside o PSDB fluminense

Por que a América Latina é a 'região mais desigual do planeta'


A América Latina é tão desigual que uma mulher em um bairro pobre de Santiago, capital do Chile, nasce com uma expectativa de vida 18 anos menor que outra de uma área rica da mesma cidade, segundo um estudo.

Em São Paulo, essa lógica também ocorre. Quem mora em Paraisópolis, uma das maiores favelas da cidade, vive em média 10 anos menos do que os moradores do Morumbi, bairro rico ao lado da comunidade, de acordo com o Mapa da Desigualdade, da ONG Rede Nossa São Paulo, que compila dados públicos.

A grande disparidade latino-americana também envolve a cor da pele ou a etnia: em comparação com os brancos, os negros e indígenas têm mais possibilidades de ser pobres e menos de concluírem a escola ou conseguirem um emprego formal.


A América Latina foi apontada como a região do mundo com a maior desigualdade de renda no relatório de desenvolvimento humano de 2019 do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), lançado em dezembro.

Os 10% mais ricos da América Latina concentram uma parcela maior da renda do que qualquer outra região (37%), afirmou o relatório. E vice-versa: os 40% mais pobres recebem a menor fatia (13%).

Muitos têm apontado essa desigualdade como uma das explicações para a onda de protestos que varreu recentemente alguns países da América Latina, como Chile, Peru e Bolívia.

Apesar dos avanços econômicos e sociais nos primeiros anos deste século, a América Latina ainda é "a região mais desigual do planeta", alertou a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) em várias ocasiões.

A questão, então, é por que esse cenário ainda continua.

A resposta, segundo historiadores, economistas e sociólogos, começa alguns séculos atrás.

"Pode-se dizer que o passado colonial criou as condições para a desigualdade", diz à Joseph Stiglitz, Prêmio Nobel de Economia, à BBC News Mundo, serviço de notícias em espanhol da BBC.

Segundo Stiglitz, a exploração dos colonizadores semeou a desigualdade na América Latina, bem como a distribuição desigual de terras nas economias agrárias contribuiu para "a criação de algumas famílias muito ricas e muitas famílias muito pobres".

Em vários países da América Latina, assim como nos Estados Unidos, um grande elemento racial desempenhou um papel em pelo menos uma dimensão da desigualdade", diz o ex-economista-chefe do Banco Mundial e atual professor da Universidade de Columbia, em Nova York.

E isso parece longe de ser apenas uma questão do passado.

Na América Latina, a incidência de pobreza é ainda maior nas áreas rurais, e entre indígenas e negros, afirmou a Cepal em relatório de 2019 sobre o cenário social da região.

De acordo com o documento, embora tenha havido uma leve redução recente, a taxa de pobreza dos indígenas em 2018 foi de 49%, o dobro do registrado para a população não indígena nem negra. E a taxa de extrema pobreza alcançou o triplo (18%).

No México, os indígenas representam aproximadamente 15% da população, e quase três quartos deles vivem na pobreza. Um estudo da organização Oxfam indicou, em agosto, que 43% dos indivíduos que falam um idioma nativo não concluíram o ensino fundamental, e apenas 10% têm trabalho formal ou é empregador.

Existem outros fatores por trás do abismo social na América Latina, que carrega a reputação de região "mais desigual" desde os anos 1980.

Hoje, a região também é uma das mais urbanizadas do mundo. As rápidas migrações da população rural para as cidades, porém, ocorreram no último meio século de maneira desordenada.

Em muitas áreas de expansão das cidades, o Estado não foi eficiente em promover serviços públicos como educação ou saúde.

Um estudo publicado pela revista The Lancet em dezembro descobriu grandes diferenças na expectativa de vida nas cidades da América Latina. E essas lacunas dependem, por exemplo, do bairro onde as pessoas moram: se ele for mais pobre, a tendência é de que seus moradores vivam menos do que os habitantes de regiões mais ricas.
Em Santiago, as mulheres mais pobres vivem quase 20 anos a menos que as mais ricas. Na Cidade do México, os homens de bairros mais pobres morrem 11 anos antes que os mais ricos.

Stiglitz, que escreveu vários livros sobre desigualdade, observa "um círculo vicioso" na região.

"Um alto nível de desigualdade econômica cria sistemas políticos que ajudam a perpetuar essa economia", explica. "Então esses sistemas não investem muito em educação, por exemplo."

Ele também afirma que economias baseadas em recursos naturais, como as da América Latina, tendem a ser caracterizadas pela desigualdade. "A riqueza do continente vem da renda associada aos recursos naturais", explica. "E, na sociedade, há uma briga por quem recebe a renda."

No entanto, outros países ricos em recursos naturais, como a Noruega ou a Austrália, escapam dos grandes problemas da desigualdade latino-americana.

A chave nesses casos, dizem os especialistas, é ter instituições que permitam um gerenciamento mais eficiente das receitas para impulsionar o desenvolvimento. E isso também é escasso na América Latina.
As evidências mostram que as classes médias latino-americanas pagam mais impostos do que recebem em serviços sociais como educação ou saúde. Em resposta, elas recorrem a provedores privados, o que tende a aumentar a desigualdade, segundo o relatório do PNUD sobre desenvolvimento humano.

"Uma resposta natural seria recolher mais recursos dos mais ricos. Mas esses grupos, embora sejam minoritários, costumam ser um obstáculo à expansão dos serviços universais, usando seu poder econômico e político por meio de mecanismos estruturais e instrumentais", diz o documento.

As políticas tributárias são uma fonte fundamental desses problemas.

Comparados a outros países em desenvolvimento, os sistemas tributários latino-americanos tendem a ter uma parcela maior de impostos indiretos (sobre consumo), que favorecem menos a igualdade do que os impostos diretos (sobre renda ou propriedade).

Assim, impostos e transferências diretas reduzem muito mais o coeficiente de desigualdade nas economias avançadas do que nas economias emergentes e em desenvolvimento, "incluindo países da América Latina com algumas das maiores desigualdades de renda do mundo", alertou no mesmo relatório David Coady, do departamento de assuntos tributários do Fundo Monetário Internacional (FMI).

Apesar de tudo isso, cerca de 100 milhões de latino-americanos saíram da pobreza entre as décadas de 1990 e 2000, com base em programas sociais e políticas salariais em meio ao boom das commodities.

A desigualdade estrutural nesse período, no entanto, variou muito pouco.

E a disparidade de renda em países como Brasil, México, Colômbia ou Chile ofuscou os recentes avanços no índice de desenvolvimento humano da ONU, que inclui variáveis ​​como expectativa de vida ou qualidade da educação. No ano passado, a Venezuela, Nicarágua e Argentina tiveram recuos, mergulhando os países ainda mais em suas crises políticas e sociais.

Além disso, após o boom econômico, a taxa de pobreza na América Latina aumentou de 28%, em 2014, para 31% no ano passado, segundo dados da Cepal. Do total de pobres que a região "ganhou" nos últimos cinco anos, 26 milhões sofrem com a pobreza extrema, sendo o Brasil a principal fonte desse retrocesso.

Em meio a esse panorama, a inquietação social foi expressa recentemente através de votos contra os governo atuais em todo o subcontinente e, principalmente, com fortes protestos de rua em países como Chile, Colômbia ou Equador.

"Há um protesto generalizado contra aqueles que estão governando", diz Nora Lustig, professora de economia na Universidade de Tulane (EUA) e diretora do Instituto do Compromisso com a Igualdade. "Combina-se o fim da festa para todos com uma situação em que a distribuição de renda começa a piorar novamente."
Gerardo Lissardy

O poder da língua solta

Só há uma explicação para a incontinência verbal que assola com frequência membros do governo: a atração pelo desconhecido. Não se dão bem com as palavras, quase sempre não conhecem seu significado, mas vivem às voltas com elas. A falta de intimidade com a linguagem começa pelo presidente, que ultimamente passou a recorrer também aos gestos obscenos, como a banana. Mas sem abrir mão da sórdida infâmia com que, por exemplo, insultou a jornalista Patrícia Campos Mello e os termos impróprios com que xingou o Greenpeace: “Quem é essa porcaria? Isso é um lixo”. No seu acesso de fúria, Bolsonaro não sabe ou finge não saber que “essa porcaria” é uma organização não governamental que atua em 55 países e cuja luta em defesa do meio ambiente é reconhecida e respeitada internacionalmente há quase meio século. 

Desta vez, porém, o protagonismo ficou com o “Posto Ipiranga”, o ministro Paulo Guedes, que, ao debochar das empregadas domésticas e chamar os funcionários públicos de “parasitas”, virou boneco nos blocos carnavalescos, meme nas redes sociais e manchete de jornal como Caco Antibes, popular personagem humorístico de Miguel Falabella que se orgulhava de detestar pobre.

Pior: despertou a curiosidade da imprensa para a própria situação de servidor do ministro. Descobriu-se, por exemplo, que, além do salário de R$ 30,9 mil por mês, ele recebe R$ 8 mil em auxílio-moradia e alimentação, sem contar as passagens aéreas pagas pelo governo. Outra revelação é a de que um grupo de funcionários do Ministério da Economia ganhou em 2019 quase R$ 1milhão em gratificações.

A propósito. Ao comentar a redução do espaço da biblioteca da Presidência da República para abrigar a primeira-dama e sua equipe, Ancelmo Gois escreveu: “Bolsonaro e biblioteca é quase um oximoro”. Como o capitão pode achar que se trata de um palavrão e querer usá-lo contra a mãe de algum repórter, um esclarecimento: oximoro é uma figura de linguagem que ocorre quando duas palavras incompatíveis aparecem juntas. É o mesmo que contradição.