terça-feira, 30 de junho de 2020

Febeapá, crônicas que ironizavam a ditadura e que 'estão mais vivas que nunca'

O dia do jornalista carioca Sérgio Porto (1923-1968) começava cedo. Logo pela manhã, ele ia à Praia de Copacabana - bairro da Zona Sul do Rio onde nasceu, viveu e morreu -, levando as três filhas: Ângela, Solange e Gisela. Enquanto as meninas brincavam perto da água, o pai, sentado na areia, lia uma pilha de jornais e revistas. Com uma tesoura, ele recortava as notícias mais controversas do dia.

Foi assim que, em junho de 1966, Porto tomou conhecimento da estreia do espetáculo Electra no Theatro Municipal de São Paulo. Agentes do Departamento de Ordem Política e Social (Dops), órgão de repressão do regime militar, foram mandados ao local para prender o autor da peça, acusado de subversão. Ao chegarem lá, descobriram que o sujeito, um tal de Sófocles, tinha morrido em 406 a.C.

A tentativa frustrada de prisão do subversivo dramaturgo grego é apenas uma das mais de 250 histórias que Stanislaw Ponte Preta, o 'alter-ego' de Sérgio Porto, publicou no extinto jornal Última Hora, de Samuel Wainer. Entre 1966 e 1968, essa e outras histórias foram reunidas em três volumes de uma antologia intitulada Festival de Besteira que Assola o País. Ou, simplesmente, Febeapá.

"As crônicas do Stanislaw ironizavam a onda conservadora da ditadura militar. Naqueles anos de censura e repressão, ele registrava as situações absurdas e as declarações estapafúrdias das autoridades", afirma Cláudia Thomé, doutora em Teoria Literária pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e autora de O olhar crítico do cronismo do Febeapá contra a onda conservadora que levou ao AI-5 em 1968 (2018).

O festival de despautérios incluía de capitães a prefeitos, de generais a delegados. Em São Paulo (SP), agentes do Dops invadiram a casa da escritora Jurema Finamour e, entre outros objetos considerados suspeitos, apreenderam um aparelho de liquidificador. Em Belo Horizonte (MG), policiais davam voz de prisão a torcedores que insistissem em soltar mais de três palavrões por jogo de futebol.

Aliás, quase tudo era proibido na "Redentora" - apelido "carinhoso" dado por Stanislaw Ponte Preta ao golpe militar de 1964: de serenata, em Ouro Preto (MG), a vodca, em Brasília (DF), de namoro no jardim da praça, em Mariana (MG), a máscara em baile de carnaval, em São Luís (MA). No caso da vodca, a bebida destilada de origem russa foi proibida por um nobre "depufede" - neologismo criado pelo autor para designar "deputado federal" - para "combater o comunismo".

"O que será que o Stanislaw diria hoje da descoberta de que nossos livros didáticos 'têm muita coisa escrita' (em referência a frase dita pelo presidente Jair Bolsonaro em janeiro), da defesa da abstinência sexual (campanha promovida pela ministra Damares Alves) como política pública ou, então, da afirmação de que o 'índio está evoluindo e, cada vez mais, é um ser humano igual a nós' (frase também dita por Bolsonaro)?", indaga a professora Cláudia Thomé, da UFJF. "Imagine isso tudo aos olhos do Stanislaw Ponte Preta. Penso que nossas prateleiras seriam pequenas para tantos volumes novos do Febeapá".

Stanislaw não livrava a cara de ninguém. Nem mesmo de seus colegas jornalistas. Volta e meia, citava uma ou outra manchete, como "Todo fumante morre de câncer a não ser que outra doença o mate primeiro", do Correio do Ceará, de Fortaleza (CE), ou "É necessária muita cautela para revidarmos uma autocrítica", do Jornal da Cidade, de Gravatá (PE).

Antes de ganhar a vida como escritor, radialista e teatrólogo, entre outras profissões, Sérgio Marcos Rangel Porto trabalhou 23 anos no Banco do Brasil. Lá, conheceu e tornou-se amigo de outro Sérgio, o Jaguaribe - nome de batismo do cartunista Jaguar. "Sérgio não trabalhava menos que 15 horas por dia. A qualquer hora do dia ou da noite, quando ia visitá-lo em casa, lá estava ele batucando as teclas de sua Remington semiportátil. Numa dessas visitas, ao buscar os originais de um livro, soltou uma de suas muitas pérolas: 'Só levanto o olho da máquina para botar colírio'", diverte-se.

Porto ainda batia ponto como bancário quando, em 1947, aos 24 anos, começou a trabalhar como jornalista no Folha do Povo, de Aparício Torelly (1895-1971), o irreverente Barão de Itararé. Não parou mais. Ao longo da carreira, deu expediente em uma infinidade de jornais (Diário Carioca, Tribuna da Imprensa e Última Hora) e revistas (Manchete, Senhor e O Cruzeiro). Por dois anos, chegou a produzir duas crônicas diárias: uma para o Tribuna da Imprensa e outra para o Última Hora.

"À tarde, papai se recolhia em seu 'escritório', ou seja, a parte da sala dividida por uma estante de madeira. Ali, ficava até tarde na máquina de escrever, produzindo sua crônica diária para jornal. Aos de casa, era exigido fazer silêncio. Tinha o hábito de ouvir música e, enquanto trabalhava, tinha preferência por jazz. À noite, saía para entregar os textos no jornal, na rádio ou na TV, e íamos com ele, já de pijama no carro", relembra a historiadora Ângela Porto, uma das três filhas de Sérgio com Dirce Pimentel de Araújo, com quem ele se casou em 1952.

Como escritor, Sérgio Porto lançou dez livros: sete como Stanislaw e três como Sérgio. "Não considero o Stanislaw Ponte Preta um pseudônimo do Sérgio Porto e, sim, um heterônimo", explica Raquel Solange Pinto, doutora em Literaturas de Língua Portuguesa pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas) e autora de Espaços da crônica: espetáculo e bastidores do Febeapá (2003).

"A personagem é construída com todo um histórico: tinha família, amigos e até data de nascimento: 22 de novembro de 1955".

A "família" a que Raquel se refere era formada, entre outros membros, pela Tia Zulmira, uma senhora muito culta e inteligente; o Primo Altamirando, um típico mau-caráter, corrupto e autoritário; e Rosamundo das Mercês, um sujeito distraído, mas tão distraído que nasceu de dez meses. No livro Dupla Exposição: Stanislaw Sérgio Ponte Porto Preta (1998), o jornalista Renato Sérgio explica que a criação foi "coletiva". Participaram dela, além do próprio Porto, o ilustrador do jornal Diário Carioca, Tomás Santa Rosa, e o crítico musical Lúcio Rangel. Cada um deles sugeriu um nome tomando como referência o personagem-título de Serafim Ponte Grande (1933), de Oswald de Andrade (1890-1954).

Ao contrário do dramaturgo grego, Sérgio Porto nunca teve agentes do Dops batendo em sua porta. "Ele não chegou a sofrer censura e perseguição simplesmente porque morreu antes, em 30 de setembro de 1968", explica o jornalista Luís Pimentel, organizador de A Revista do Lalau (2008). "Foi a partir de 13 de dezembro de 1968, quando o AI-5 foi decretado, que as coisas pioraram".

Censura ou perseguição, Sérgio Porto pode até não ter sofrido. Mas, tentativa de envenenamento, sim. Em julho de 1968, ele estava apresentando o Show do Crioulo Doido no Teatro Ginástico, no Rio, quando, no camarim, sentiu um gosto amargo no café. Na mesma hora, vieram à lembrança as ameaças que estava recebendo em represália ao espetáculo.

"O show não tem nada demais, a não ser suas irreverências. E ninguém puxa irreverência e atira. É arma de humorista, não machuca tanto quanto cassetete na cabeça da Marília Pera ou pontapés na barriga de moça grávida, como fizeram lá em São Paulo", declarou em entrevista à revista Manchete, de 10 de agosto de 1968, referindo-se à invasão do Teatro Ruth Escobar, em São Paulo, em 18 de julho de 1968, quando integrantes de um grupo paramilitar chamado Comando de Caça aos Comunistas (CCC) agrediram o elenco da peça Roda Viva.

Já em casa, Porto tomou um comprimido para dormir, mas, em vez de cair no sono, passou 30 horas acordado. Foi levado para um hospital. "Sérgio concedeu várias entrevistas, associando esse possível atentado a outros cometidos contra espetáculos teatrais no Rio e em São Paulo", relata a historiadora Dislane Zerbinatti Moraes, doutora em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (USP) e autora de O trem tá atrasado ou já passou: A sátira e as formas do cômico em Stanislaw Ponte Preta (2003). "Esse atentado nunca foi devidamente investigado ou comprovado, mas podemos deduzir que houve, sim, uma reação dos militares à obra do Stanislaw como um todo".

Sérgio Porto morreu em 1968, aos 45 anos, vítima de um terceiro infarto. Em 2005, o jornalista Clóvis Rossi (1943-2019) declarou, em uma de suas colunas, que "se vivo fosse, Stanislaw teria hoje material para uns 500 festivais por dia, tal o nível de besteiras que caracteriza a política brasileira".

"O Febeapá continua mais vivo que nunca", endossa o historiador Hélio Dias da Costa, autor de Stanislaw Ponte Preta e a desconstrução da imagem da ditadura: uma análise da representação satírica do Febeapá (2008). "Stanislaw continua vivo nos espetáculos de 'stand up comedy', nos canais interativos de humor e até nos colunistas de jornal, rádio e TV que atuam na desconstrução de mitos. Era um mestre na arte de aliar informação e humor, e oferecer denúncia sob a forma de gracejo", diz.

Quinze anos depois da declaração de Rossi, o ator e humorista Gregório Duvivier, apontado pelas filhas de Sérgio Porto como 'herdeiro literário' do pai, por fazer "uma crítica feroz da política e dos costumes", assina embaixo. "Sérgio Porto é um gigante. Foi com ele que entendi que humor político é redundância. Millôr Fernandes, que tive a sorte de conhecer, falava dele como de um irmão. Os dois, ao lado do Nelson Rodrigues, formam a santíssima trindade do humor brasileiro. Que sorte a nossa!".

Pensamento do Dia


O falso ministro da Educação

Se finalmente acertou na estratégia, procurando pacificar a área de ensino ao demitir Abraham Weintraub da chefia do Ministério da Educação (MEC) e propor a retomada de diálogo com os secretários municipais e estaduais de Educação para evitar o colapso de um setor estratégico da administração pública em tempos de pandemia, o presidente Jair Bolsonaro errou na escolha de seu sucessor, Carlos Alberto Decotelli.

No mesmo dia em que foi anunciado por Bolsonaro como mestre, doutor e pós-doutor e de contar com experiência no setor por ter presidido o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), surgiram as primeiras suspeitas de que Decotelli teria maquiado seu currículo Lattes. O currículo Lattes é a plataforma do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico sobre a titulação acadêmica dos professores do País. As informações são autodeclaratórias e dispensam a apresentação de documentos.


A primeira suspeita foi de que Decotelli não teria o título de doutor pela Universidade Nacional de Rosário, na Argentina, o que foi confirmado no dia seguinte pelo reitor da instituição, Franco Bartollacci. Reagindo à nota, Decotelli apressou-se em revisar o currículo Lattes. Tentando remediar a situação, ele afirmou que, apesar de ter obtido os créditos para apresentar a tese de doutorado, não o fez por não ter recursos para continuar residindo na Argentina. Segundo o reitor, porém, Decotelli não fez a defesa oral da tese porque ela seria reprovada pelos examinadores. Agravando ainda mais as suspeitas com relação ao seu currículo, a segunda acusação foi de que a dissertação que Decotelli apresentou no término de seu curso de mestrado na Fundação Getúlio Vargas (FGV) seria um plágio. Submetida a um programa de informática elaborado para detectar plágio, verificou-se que trechos inteiros da dissertação são cópias - sem os devidos créditos - de relatórios de órgãos governamentais e de trabalhos acadêmicos, o que é tipificado como crime contra a propriedade intelectual pela legislação penal.

Além do plágio no mestrado e do falso doutorado, Decotelli incluiu no currículo Lattes a informação de que teria feito pós-doutorado na Universidade de Wuppertal, na Alemanha. E, como já ocorrera na Universidade Nacional de Rosário, o reitor da Universidade Wuppertal contestou a informação, afirmando que Decotelli passou três meses na Alemanha como pesquisador e que não adquiriu título algum nesse período. Na área administrativa, Decottelli também foi apontado como um dos responsáveis por um estranho edital de licitação publicado em 2019 pelo FNDE, para a compra de 1,3 milhão de laptops e notebooks para a rede pública de ensino. Ao examinar o edital a Controladoria-Geral da União descobriu que 350 colégios receberiam mais de um laptop por aluno e que a Escola Municipal Laura de Queiroz, de Minas Gerais, seria agraciada com 30.030 laptops para seus 255 estudantes. Decotelli deixou o cargo e o edital foi anulado.

Quando Bolsonaro anunciou Decotelli para o MEC, sua nomeação despertou a esperança de que finalmente o governo poderia definir com os Estados e municípios uma política comum para assegurar o futuro dos estudantes brasileiros, comprometido pelo avanço da covid-19. Cinco dias após sua indicação, porém, fica evidente que ele está longe de ser a pessoa certa para o cargo. Como pode transmitir algo construtivo quem não tem credibilidade nem autoridade moral? Como pode ser levado a sério um ministro da Educação que falsifica currículo?

Além de informação especializada transmitida com rigor metodológico, educação pressupõe formação moral e intelectual - e isso implica caráter, preparo para cidadania e integridade. Entregar a quem não tem essas virtudes a responsabilidade para conduzir a formação das novas gerações não é apenas um erro político que pode ser tolerado em nome da pacificação na gestão do sistema educacional brasileiro. Acima de tudo, é um crime contra as novas gerações.

Cobrança do Eça

Pilriteiros que dás pilritos
por que não dás tu coisa boa?
Cada um dá o que pode
conforme a sua pessoa!

Eça de Queirós

Trégua fake

Pregação coletiva pelo entendimento, agrados aos presidentes da Câmara, do Senado e do STF, homenagem às vítimas da Covid-19. Jair Bolsonaro parece ter sido inoculado pelo vírus do bem, capaz de fazê-lo humano diante da pandemia, afastando-o da paranoia de só enxergar inimigos por todos os lados. Mas como sua personalidade é conflituosa por natureza, a prudência recomenda esperar para ver até onde a calmaria vai.

A repentina conversão de bílis em mel tem sido atribuída aos militares que orbitam no entorno de Bolsonaro. Esse grupo teria sido decisivo nos acenos aos STF e no convencimento do presidente para que ele indicasse um nome técnico para o Ministério da Educação.


Bolsonaro também estaria menos temeroso depois do sucesso das negociações com deputados do Centrão. Aqui, além de trair os ditos de campanha, quando enxovalhava a “velha política” assentada na troca de cargos para garantir governabilidade, Bolsonaro fez pior: abriu a porteira apenas para derrubar um eventual processo de impeachment. Mesmo sendo uma turma sabidamente volátil, o presidente acredita ter ganhado fôlego – e sobrevivência.

Outros creem que os gestos de paz são fruto de um governante solitário e acuado em várias frentes. Em especial pela prisão do ex-companheiro e faz-tudo Fabrício Queiroz e pela carga explosiva da fala destrambelhada de Frederick Wassef, que até o último domingo defendia o primogênito Flávio no escândalo das “rachadinhas”, e o papai dele no caso Adélio Bispo.

Bolsonaro teria esticado a corda por demais e agora, diante do cerco a ele e aos seus, o recuo era a única saída. O armistício, portanto, seria tático.

Sob o título “Bolsonarinho paz e amor”, em abril do ano passado chamei atenção aqui neste espaço para uma metamorfose do presidente que, depois de tomar bordoadas do Parlamento e até perder o PSL, partido pelo qual se elegeu, passou a distribuir sorrisos e abraços. Em um café da manhã com jornalistas, contou piadas, pediu desculpas por arroubos, foi até divertido.

“Não há como maldizer uma conversão para melhores modos, especialmente se eles podem pacificar ânimos, destravar o governo e fazer o país andar”, escrevi. “O problema é acreditar em mudança de humor tão repentina e radical”, dúvida que continua a se impor.

A versão adocicada durou pouquíssimo à época. Coincidência ou não, o filho 02, Carlos, criara um quiprocó gigantesco com a comunicação oficial do governo, o que desembocou na derrocada do general Carlos Alberto Santos Cruz.

Há um ano ou agora, o fato é que nada no ânimo do presidente está relacionado com a governança do país que o elegeu.

Desafiando a pandemia, doentes, familiares de mortos, profissionais de saúde e todos que fazem o possível para manter o isolamento social, Bolsonaro adora se exibir em abraços. Faz visitas sorridentes em comércios das cidades periféricas de Brasília, participa de manifestações contra o STF e o Congresso, de inaugurações lotadas. Ameaça comemorar seu aniversário com um churrascão, se diverte de motocicleta aquática e no asfalto, pratica tiro esportivo em horário de trabalho. Faz piada com o sofrimento dos outros.

E vira fera se algo parece chegar perto dele e dos seus, como se viu na fatídica reunião de abril – “eu não vou esperar f... minha família toda, de sacanagem, ou amigos meus...” -, uma das provas arroladas no processo que investiga a interferência confessa que fez na Polícia Federal em benefício próprio.

As variações repentinas de humor, para o bem ou para o mal, costumam ocorrer quando ele se sente ameaçado ou vê os filhotes em apuros, ou quando ele ou alguém da sua prole obtém algum sucesso.

Agora, regozija-se pela vitória apertada do filho Flávio na 3ª Câmara Criminal do Tribunal Justiça do Rio, por 2 x 1. Respira. Mas algumas provas de fogo estão logo à frente: o depoimento no processo sobre a interferência na PF, o inquérito das fake news que corre no STF. E a provável revisão do privilégio de foro do filho no caso das “rachadinhas” pelo pleno do TJ-RJ e até por instâncias superiores.

Ao primeiro revés Bolsonaro voltará a espumar.

O que se vê hoje são elogios a uma trégua tão falsa quanto os milagres da cloroquina.
Mary Zaidan

Prioridade aos ruminantes

O pandemônio na pandemia avançou: o governo Jair Bolsonaro decidiu dar prioridade aos ruminantes. 

Na última quinta-feira, enquanto o país contava 55 mil humanos mortos pela da doença e por deficiências na rede hospitalar, o ministro Marcelo Álvaro Antônio (PSL-MG), do Turismo, resolveu investir na “revitalização” do Bodódromo de Petrolina (PE), onde ruminantes de chifres ocos podem ser degustados a céu aberto, em geral assados. 

Pernambuco é dos estados mais afetados pelo vírus, com mais de 4,5 mil mortos. O governo, porém, achou mais urgente investir R$ 32 milhões em obras turísticas no reduto eleitoral dos herdeiros de Clementino de Souza Coelho (1885-1952), o “coronel” Quelê, construtor de um império político regional no início do século passado.


O prefeito beneficiário, Miguel de Souza Leão Coelho, é candidato à reeleição pelo MDB. Seu pai, Fernando Bezerra Coelho, é o atual chefe do clã. Foi prefeito três vezes, ministro de Dilma (Integração) e está sob investigação no Supremo por suspeita de corrupção (R$ 41 milhões) em contratos da Refinaria Abreu e Lima. Bolsonaro o escolheu como líder da sua “nova política” no Senado. 

Em plena pandemia, o governo separou R$ 5 bilhões para o Ministério do Turismo. No início de maio, Bolsonaro editou uma Medida Provisória (nº 963) atribuindo urgência e relevância a esse crédito extraordinário, com a justificativa de emergência por causa da Covid-19. 

É caso único de governo que confere às obras turísticas importância e urgência para enfrentar o novo coronavírus. O problema é que não há turismo. As pessoas não saem de casa porque temem a morte nas filas de hospitais públicos onde falta quase tudo, de respiradores a analgésicos. E 76% das empresas do setor estão fechando as portas, segundo o Sebrae, porque não têm acesso ao crédito prometido pelo governo.

 Bolsonaro e o ministro do Turismo perceberam no vírus uma oportunidade para ajutório aos aliados nas eleições municipais. Prioridade aos ruminantes é o novo símbolo do pandemônio governamental na pandemia. 
José Casado

Dados indicam crescimento do neonazismo no Brasil

Grupos extremistas que propagam discursos de ódio contra minorias, embasados por argumentos nazistas e fascistas, estão aumentando no Brasil. Pesquisadora há 18 anos sobre movimentos do tipo, a antropóloga Adriana Dias, doutora pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), identificou um crescimento tanto no número de células neonazistas quanto no engajamento de seus integrantes nos últimos seis meses.

No fim do ano, segundo ela, estavam em atividade 334 grupos no país. Em junho, são 349. Mas o que mais aumentou não foi a quantidade de células, e sim o número de membros de cada grupo. Se há seis meses os engajados nesses grupos não passavam de 5 mil no Brasil, agora já são cerca de 7 mil.

Dias monitora periodicamente o cenário por meio de rastreamento das atividades desses grupos pela internet. "É como se uma parte do país tivesse perdido completamente o contato com a civilização", comenta ela, em conversa com a DW Brasil.

Sua pesquisa vai ao encontro de um levantamento da organização não governamental SaferNet Brasil, entidade brasileira que promove e defende os direitos humanos na internet.

Dados levantados com exclusividade para a DW Brasil mostram que este mês de junho de 2020 foi o período em que a ONG mais recebeu denúncias de neonazismo desde o início da série histórica, em janeiro de 2006. Foram 3.616 denúncias recebidas pela SaferNet sobre o assunto, referentes a 1.614 páginas diferentes, segundo números consolidados no dia 28 de junho.

Em junho de 2019, foram 31 denúncias, referentes a 25 páginas. O aumento, portanto, é de 11.564%. E a curva é ascendente. Em abril, foram 307 denúncias, referentes a 109 páginas; em abril de 2019, 87 denúncias e 46 páginas. Em maio deste ano, foram 498 denúncias e 204 páginas, frente a 53 denúncias e 42 páginas do mesmo mês do ano passado.

De acordo com a administração da ONG, depois de recebidas as denúncias, são coletadas evidências da materialidade dos crimes e disponibilizadas para análise e investigação do Ministério Público Federal, com quem a organização possui convênio.

Nazismo é crime no Brasil. O artigo 20 da lei 7.716/1989 ressalta que "fabricar, comercializar, distribuir ou veicular símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos ou propaganda que utilizem a cruz suástica ou gamada, para fins de divulgação do nazismo", é passível de "reclusão de dois a cinco anos e multa". O material deve ser recolhido imediatamente, e as mensagens ou páginas respectivas na internet devem ser retiradas do ar.

Conforme ressalta o advogado Rodolfo Tamahana, coordenador de pesquisa e professor da Faculdade Presbiteriana Mackenzie Brasília, o Brasil é signatário de dois acordos internacionais contra discriminações a minorias: a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, de 1968 – integrada ao ordenamento jurídico brasileiro –; e a Convenção Americana de Direitos Humanos, mais conhecida como Pacto de São José da Costa Rica, de 1992.

"Pessoas que participem ou não de grupos nazistas podem responder por crime caso fabriquem, comercializem, distribuam ou veiculem quaisquer símbolos ou propaganda que utilizem a cruz suástica ou gamada, com a finalidade de divulgar o nazismo. Nesse caso, para configurar o referido crime é necessária a intenção específica de divulgar o nazismo, não sendo suficiente, por exemplo, apenas a publicação da cruz suástica em um perfil pessoal do Facebook, de acordo com alguns julgados que encontramos", explica o professor.

"Falta penalização rígida nesse sentido", avalia o advogado criminalista José Beraldo, que atua na área desde 1981. Ele afirma que o atual cenário não favorece a "diminuição" dos casos.

Especialistas associam gestos do governo Jair Bolsonaro como gatilhos para essa onda neonazista. Além da política armamentista, atos recentes são associados ao movimento. Em janeiro, o então secretário de Cultura Roberto Alvim divulgou discurso parafraseando Joseph Goebbels (1897-1945), ministro da Propaganda da Alemanha nazista, com o compositor favorito de Adolf Hitler (1889-1945), Richard Wagner (1813-1883), ao fundo.

Ainda ministro da Educação, Abraham Weintraub declarou em reunião ministerial ocorrida em 22 de abril que odeia os termos "povos indígenas" e "povo cigano".

No início de maio, a Secretaria de Comunicação Social da Presidência divulgou um post em redes sociais com frase que lembra slogan nazista. "Parte da imprensa insiste em virar as costas aos fatos, ao Brasil e aos brasileiros. Mas o governo, por determinação de seu chefe, seguirá trabalhando para salvar vidas e preservar o emprego e a dignidade dos brasileiros. O trabalho, a união e a verdade libertarão o Brasil", publicou o órgão, sobre a pandemia de covid-19. "O trabalho liberta" é a frase que os nazistas afixavam nas entradas dos campos de concentração.

Bolsonaro também compartilhou em seu Facebook um vídeo com a citação "melhor um dia como leão do que cem anos como ovelha", atribuída ao líder fascista Benito Mussolini (1883-1945).

Em live transmitida em 29 de maio, o presidente tomou um copo de leite. Ele argumentou que se travava de uma homenagem aos produtores rurais. Mas o gesto é visto como de conotação extremista, já que é adotado por supremacistas brancos.

"O aumento da atividade de células neonazistas no Brasil está diretamente associado à retórica violenta e discriminatória do governo Bolsonaro, que, ao sistematicamente estigmatizar grupos vulneráveis, acaba por legitimar e empoderar pautas do movimento neonazista, como a eugenia e a segregação de pessoas negras, LGBTs e estrangeiros não europeus", afirma, em nota, a organização SaferNet Brasil.

O ativista Agripino Magalhães, da ONG Aliança LGBT+, conta que os ataques em relação a esse grupo, monitorados por ele, aumentaram 90% no último semestre. Ele próprio diz que tem sido ameaçado constantemente, pela internet e por telefone, pelo seu ativismo. "E não somos só nós as vítimas. Eles incitam o ódio aos negros, às mulheres e a outras minorias", afirma.

De acordo com o mapeamento de Adriana Dias, o estado de São Paulo segue sendo a unidade da federação com maior atividade neonazista: são 102 células na localidade, três a mais do que no fim do ano passado.

Segundo dados enviados à reportagem pela Secretaria de Segurança Pública do estado, a Delegacia de Polícia de Repressão aos Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (Decradi) registrou 57 boletins de ocorrência e instaurou 31 inquéritos para apurar ocorrências de intolerância na capital paulista, de janeiro a abril deste ano.

Em segundo lugar no levantamento da antropóloga, o Paraná ultrapassou Santa Catarina no último semestre – são 74 grupos paranaenses em atividade, frente a 69 catarinenses.

Foi um crescimento grande no estado, que há seis meses tinha 66 células extremistas. "Isso é preocupante", avalia Dias. De acordo com a pesquisadora, o perfil dos novatos paranaenses é basicamente formado por gente ligada ao meio rural e a igrejas evangélicas fundamentalistas.